Imagine se o leitor fosse prefeito de São Caetano ou governador do Estado. Imagine o leitor o impacto da notícia bombástica de que a fábrica da General Motors em São Caetano seria desativada por falta de competitividade gerada, entre outras fontes, por custos exorbitantes do Estado pantagruélico. O que o leitor faria?
O prefeito José Auricchio Júnior e o governador João Doria correram para segurar o rojão dos estragos econômicos e políticos. E conseguiram. Mas segurar rojão é uma ação explicitamente temporal, pontual.
O que ninguém se atreveu a revelar é a repercussão das medidas anunciadas. Resumidamente, jogou-se o setor automotivo do Estado de São Paulo na guerra fiscal nacional, com recortes municipais. Nada tão diferente da política administrativa que se espalhou durante o período de descentralização geográficas das montadoras e autopeças.
Ao analisar o resultado final dessa enrascada em que a multinacional norte-americana meteu tanto Auricchio quanto Doria, levo em conta o interesse da sociedade fora do curto prazo que as medidas supostamente corretivas indicam.
Os ganhos políticos pontuais, aos olhos do contribuinte que também é eleitor, são expressivos. Sobretudo porque não há senso crítico dos consumidores de informação. Mesmo os supostos bem informados não distinguem o que de fato é bom e o que na realidade é a postergação de novas crises fiscais.
A mídia em geral é relapsa. Não se aprofunda. Sem contar que, todos sabem, adora mandachuvas de plantão, sobremodo quando mandachuvas de plantão não são hostis. Desde que a Operação Lava Jato começou a fazer estragos, a mídia tradicional entrou em parafuso porque o mecanismo de corrupção primava pela democratização de recursos financeiros. Aliados voluntários ou involuntários jamais foram esquecidos.
Analiso em seguida os asfixiados desdobramentos que as medidas de João Doria e José Auricchio Júnior provocarão no tecido econômico e social além do prazo de validade do marketing político.
Desprezo a programas de desenvolvimento econômico municipal.
A desconsideração dos administradores municipais de São Caetano ao longo dos anos ao planejamento de desenvolvimento econômico tem origem na facilidade com que se arrecadam impostos, derivados de três fontes pródigas: a General Motors e seus satélites de autopeças, a Casas Bahia e o terminal de combustíveis. Nos últimos anos houve drástica redução dos valores não só por causa da recessão nacional, mas também ou principalmente como resposta à desindustrialização local continuada. O PIB Industrial e o PIB Geral de São Caetano desabaram neste século. A General Motors esvaziou gradativamente a produção de novos modelos e transferiu o setor de ferramentaria para Mogi das Cruzes. Não será a iniciativa anunciada agora que vai mudar a situação municipal que se arrasta há mais de três décadas.
Direcionamento arbitrário de recursos da sociedade a canais seletivos e privilegiados do mundo empresarial.
O pacote municipal de incentivos da Prefeitura de São Caetano à permanência da General Motors (IPTU, ISS e serviços públicos de água de esgoto) seria, segundo as contas oficiais, ao longo de 10 anos, apenas 10% da previsão dos valores a serem investidos pela multinacional. Aparentemente se tem uma contabilidade vantajosa na forma de repasse de ICMS no mesmo período, além de empregos formais. Tudo isso parece perfeito, mas só o tempo poderá comprovar a projeção. Esses números também precisariam passar pelo escrutínio do conjunto de valores das atividades industriais em São Caetano no mesmo período. A equação investimentos tecnológicos e mais empregos não fecha em lugar algum do mundo. Tecnologia gera produtividade que por sua vez reduz o número de trabalhadores e do entorno que alimentam as linhas de produção.
Punição complementar às pequenas e médias empresas do Município.
Quanto mais se oferecem vantagens às grandes companhias para investirem em modernização tecnológica e aumento da produção, mais os pequenos e médios negócios sofrem reveses de um jogo bruto no suprimento produtivo. A General Motors fez um rapa geral nos custos para seguir no Estado de São Paulo, estendo a cartilha de quebra de despesas aos fornecedores e concessionários, além dos trabalhadores. Dessa forma, não será apenas o valor adicionado da empresa que deverá ser medido criteriosamente como um dos pontos de sucesso do programa de investimentos.
Entorpecimento das fragilidades do setor produtivo do Município.
Ter um grande player automotivo num Município demograficamente pequeno como São Caetano é um sério risco numa situação como a imposta pela ameaça da General Motors. Ao pretensamente resolver a situação, como se anunciou com pompa e circunstância, a tendência ao agravamento do ambiente de desinteresse pelo setor produtivo, que vem do passado, poderá se acentuar durante a longa ressaca de comemorações. Embora seja uma estrela reluzente na constelação produtiva de São Caetano, o valor adicionado gerado pela GM depende do equilíbrio econômico-financeiro de empresas satélites. Embora as estatísticas municipais sejam guardadas a sete chaves, a situação industrial é dramática. Números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) são reveladores. São Caetano ocupa os últimos lugares entre os municípios da Região Metropolitana de São Paulo quando se trata de PIB Industrial. Acumula derrota após derrota desde o começo do século. Como se antes desse século a situação fosse diferente. E durante todo esse período a General Motors seguia e segue instalada na Avenida Goiás.
Desvios de recursos orçamentários a uma atividade econômica em detrimento do conjunto.
Cada tostão que beneficiar a General Motors e as demais fábricas de automóveis no Estado de São Paulo com a isenção do ICMS será retirado do bolo geral de todos os municípios paulistas. Dois terços dos recursos monetários do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços entram na contabilidade geral do governo paulista, enquanto o terço complementar é distribuído a mais de 650 municípios. Quando se beneficia um setor de atividades, os demais e as populações dos municípios sofrem as consequências. Desfilar a bandeira de que os investimentos vão permitir impulsos arrecadatórios trafega pelos descaminhos da subjetividade. Nesse ponto, será indispensável analisar os resultados práticos da medida tomando-se por base um conjunto de variáveis, entre os quais não só o volume de produção de novos veículos decorrente desses mesmos investimentos, mas também a massa salarial do setor como um todo. Há excesso do potencial de produção de veículos no País. A ociosidade é preocupante. Eventuais melhorias em determinadas localidades poderiam vender a falsidade de que tudo se alterou por conta da iniciativa. Um eventual avanço da General Motors em São Caetano pode causar estragos em outras geografias do Estado.
Possibilidade de os critérios de isenção de ICMS contar com mensuração não necessariamente adequada.
Essa é uma questão que precisa ser vista com todo o cuidado. Como se daria essa armadilha? Anunciou-se que a General Motors vai desativar a produção dos quatro veículos da fábrica de São Caetano. Veículos de gerações que já deveriam ter virado sucatas, segundo os critérios que se colocam como modernidade tecnológica. Faça uma conta simples: se os quatro veículos geram “x” de valor adicionado para a empresa e os novos que sairiam da linha de montagem gerarem “xx”, a base de cálculo à habilitação ao programa de desconto do ICMS seria o “x” de saldo geral de obsolescência, o “xx” por conta dos investimentos ou o mais apropriado seria o “xx” menos x”, ou seja, o resultado do “xx” da modernização deduzido do “x” do descartável? Para tornar mais apropriada a leitura de algo que parece uma arapuca fiscal: a fábrica da GM em São Caetano, e tantas outras fábricas de veículos no Estado de São Paulo, vai colocar como saldo positivo de ingresso na fila de redução fiscal o que for contabilizado exclusivamente por força dos novos investimentos ou o conjunto da obra das atividades estabelecerá encaminhamento sem truques? Se o governo estimula um produtor de galinhas a investir no aumento da oferta e se esse mesmo produtor de galinhas decide desativar a linha de produção menos competitiva, optando, portanto, por um modelo mais atualizado, o benefício fiscal levará em conta apenas a nova linha de montagem, desprezando-se, portanto, a desativada, ou prevalecerá o saldo geral?
Abertura de precedente de incentivo à demanda de privilégios de outros setores econômicos.
O socorro do governo do Estado ao setor automotivo poderá gerar a multiplicação de ações semelhantes caso protagonistas de outras atividades alardearem, como a General Motors, baixa competitividade nacional e internacional. Quando se abrem as portas do que o governador João Doria nega, mas que não passa de guerra fiscal, tudo se torna possível. Quem garante que lideranças de sindicatos empresariais já não se mobilizam para arrancar um pedaço de vantagem nessa farra do boi?
Permissividade a ações de marketing triunfalista.
O que o governador do Estado vendeu à sociedade em forma de marketing político com as ações que reverteram a decisão da General Motors de deixar o País, medida que internamente também o prefeito José Auricchio Júnior replicou, não passa de marketing de oportunidade, quando não de oportunismo. Eleito prefeito de São Paulo e titular do Palácio dos Bandeirantes, João Doria jamais apresentou à sociedade qualquer coisa que oferecesse o indício de que buscara num grupo de planejadores econômicos alternativas ao desenvolvimento econômico do Estado de São Paulo. Seguiu, assim, rigorosamente, os antecessores tucanos. Em linhas gerais, a liderança econômica paulista decorre de ações da iniciativa privada. Administradores municipais menos descuidados também colaboraram ao longo dos anos nesse sentido, atuando principalmente com o ferramental de isenções fiscais e benefícios de infraestrutura. A orfandade da economia no âmbito estratégico sob a responsabilidade do governo paulista é comprovada pela perda de participação absoluta e relativa no bolo do PIB Nacional.
Aprofundamento da excessiva dependência automotiva.
As vantagens implícitas no campo de desenvolvimento econômico pelo setor automotivo, exceto em situações autofágicas, conduz administradores públicos a permanente dedicação a privilégios. Não seria diferente no caso General Motors. A repercussão que causaria a debandada da empresa no exato momento em que outra montadora, a Ford, decidiu bater assas, exigiu medidas emergenciais cujos pressupostos de aplicação se tornaram estruturais, ou seja, invadirão o tempo. Trata-se, portanto, de algo como o enforcamento iminente que se torna de fato enforcamento fatal na medida em que a vítima se debate na tentativa de salvamento. O governo do Estado e o prefeito José Auricchio sabem que a linha do tempo é curta para a manutenção de uma montadora rebelde. A atividade passará nos próximos tempos por transformações ainda pouco dimensionadas, a bordo de investimentos que contemplarão produtos elétricos e digitais demandantes de muito dinheiro. Nem João Doria nem José Auricchio gostariam que a bomba estourasse em suas mãos, como estourou nas mãos de Orlando Morando, prefeito de São Bernardo, no caso da Ford. Alguém vai pagar o pato mais adiante. Como a sociedade sempre paga no jogo de perde-perde da guerra fiscal. A penúria fiscal da maioria dos Estados brasileiros prova.
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