Bem que Mercedes-Benz, Volkswagen, Chrysler e Renault tentaram ajustar ao máximo os ponteiros que cruzam logística e tecnologia com qualidade, produtividade e competitividade. As modernas e inovadoras fábricas que construíram recentemente em Minas Gerais e Paraná são modelo para o mundo inteiro. Trata-se de plantas robotizadas e silenciosas nas quais a mão-de-obra humana às vezes custa a ser percebida na linha de montagem. As quatro marcas introduziram o Brasil no mapa estratégico das plataformas de exportações porque fazem veículos idênticos aos que circulam no Primeiro Mundo e, por conta dessa característica, abrem portas de mercados exigentes, onde não falta dinheiro para gastar com luxo, conforto, segurança e tecnologia.
O esforço dessas montadoras não foi em vão. Ao mesmo tempo em que ajustam cada vez mais processos produtivos para ganhar competitividade, contribuíram com idéias, logística e tecnologia para que a General Motors construísse em Gravataí, no Rio Grande do Sul, a mais competitiva indústria automobilística do País. Inaugurada na segunda quinzena do mês passado, a nova planta da GM está muito além da tecnologia representada por 120 robôs que garantem índice de automação superior a 90% em áreas estratégicas como funilaria e pintura.
O que de fato faz diferença na fábrica gaúcha, que produzirá o subcompacto Celta com motor 1.0, é que cada um dos 2,1 mil trabalhadores vai produzir espantosas 100 unidades/ano. Para se ter idéia da agilidade, basta observar a área de pintura, equipada para trabalhar na velocidade de 30 carros/hora. O volume de produção é recorde em qualquer canto do planeta. Mais incrível é que cada trabalhador receberá no fim do mês contra-cheque equivalente à metade dos vencimentos dos metalúrgicos de pólos automobilísticos tradicionais do País, como Grande ABC e Vale do Paraíba. Nem os asiáticos, mestres em conjugar produtividade com salários baixíssimos, conseguiram tal proeza. O mundo inteiro está de olho em Gravataí -- e não poderia ser diferente.
A General Motors é a primeira montadora brasileira a valer-se plenamente dos mais avançados conceitos de logística e tecnologia para atingir meta de produtividade e competitividade perseguida há tempos pelas concorrentes e das quais só os asiáticos se aproximam. As fábricas mais modernas de Mercedes, Volkswagen, Renault e Chrysler, localizadas em Juiz de Fora (MG), São José dos Pinhais e Campo Belo (PR), conseguem atingir produtividade em torno de 60 veículos homem/ano. No Grande ABC e no Vale do Paraíba, onde se localizam unidades que produzem carros populares como o Celta, a produtividade da Ford, Volkswagen e da própria General Motors é menor ainda -- 30 veículos homem/ano.
Como o mercado é soberano e determina tanto a sobrevivência de empresas como de produtos, é óbvio que começa com a fábrica de Gravataí na pole-position uma nova corrida pela produtividade com custo salarial reduzido ao máximo. Por mais que se propague que o parque paulista é competitivo porque está no coração do consumo brasileiro, sindicatos dos metalúrgicos do Grande ABC e do Vale do Paraíba, regiões onde opera a mão-de-obra mais cara do País, podem colocar as barbas de molho. Sem condições políticas para baixar salários, as fábricas de São Paulo devem incrementar novos programas de demissão voluntária e, paralelamente, intensificar treinamentos e novas tecnologias para dobrar níveis de eficiência. A lógica é elementar -- quem mantém custo barato de produção tem condição de vender igualmente mais barato. Num País de classe média permanentemente em crise, preço é fundamental na hora de o consumidor fechar negócio.
Carro popular -- O tamanho da mudança que surge no horizonte explica-se pelo fato de a fábrica de Gravataí produzir carros populares. Ao contrário das unidades da Mercedes, Volkswagen, Chrysler e Renault em Minas e Paraná, a filial gaúcha da maior fabricante de veículos do planeta produzirá o tipo de veículo que mais se consome no Brasil, com quase 70% do mercado. Com motorização 1.0 rejeitada pelo Primeiro Mundo, o modelo representa no Brasil o batismo do consumidor de baixo e médio poder aquisitivo no universo do zero quilômetro.
Mercedes, Volkswagen, Chrysler e Renault manufaturam veículos sofisticados que conjugam luxo, potência e altíssima tecnologia embarcada, mas preço inacessível para a grande maioria dos brasileiros. O Primeiro Mundo compra do Brasil produtos como Classe A, Golf, Audi, Dakota, Clio e Scénic. Recentemente a Volks voltou a exportar para Estados Unidos e Canadá. Já partiram do Porto de Paranaguá, no Paraná, as primeiras remessas do Golf e Audi manufaturados na fábrica de São José dos Pinhais. A luxuosa e potente picape Dakota, montada pela Chrysler em Campo Belo, está chegando à Europa.
Produzir carro popular numa das fábricas mais modernas e eficientes do mundo é a novidade proporcionada pela GM. O Celta não tem a menor vocação para rodar em países de elevado poder aquisitivo, onde as ruas não são esburacadas e a expectativa do consumidor é por veículos que esbanjam, além de qualidade, muita sofisticação. Numa primeira fase, o subcompacto atenderá exclusivamente o mercado nacional e Mercosul. A expectativa é de que saiam 120 mil carros/ano da linha de montagem. É possível que em poucos anos o Celta seja exportado para outros países da América Latina e Terceiro Mundo -- como a África do Sul.
A transformação prometida pela fábrica gaúcha só irá se consolidar quando a General Motors anunciar no mês que vem quanto pretende cobrar pelo Celta. Há expectativa de que o carrinho com design muito parecido com o Corsa e que também lembra o Fiat Palio em alguns detalhes chegue ao mercado com preço entre R$ 10,9 mil (hipótese menos provável) e R$ 13 mil (valor mais alto já especulado). Não fará sentido tanto investimento em tecnologia e produtividade -- e tanto marketing -- se o subcompacto tiver preço mais elevado que os concorrentes mais diretos, o Ka, subcompacto da Ford, e o Mille Smart, da Fiat.
Distribuidores e consumidores esperam que a GM cumpra a promessa de quando deu início ao projeto da nova fábrica, há quatro anos. A montadora garantiu que produziria o veículo popular mais barato do País. Frederick Henderson, ex-presidente da corporação no Brasil e atual diretor de operações da GM na América Latina, África e Oriente Médio, afirma que o preço será o mais competitivo do mercado. André Beer, ex-vice-presidente e atual consultor da presidência da montadora, garante que será levada em conta a relação custo/benefício. Walter Wieland, o novo presidente da GM do Brasil, enfatiza que sua principal missão será elevar as vendas da corporação no País, principalmente no segmento popular. Trocando em miúdos: a aposta no Celta é grande.
No âmbito específico de mercado, duas questões preocupam distribuidores General Motors -- a montadora estaria pretendendo vender o subcompacto pela Internet em operação direta com o consumidor, e o risco do Celta canibalizar o Corsa por disputar o mesmo segmento. A GM tem respostas para os dois casos -- há entendimentos para que distribuidores participem das vendas pela Internet, e é o consumidor quem dirá se Celta e Corsa, devem competir no mercado. O Corsa passará por reformulação a partir de 2002, com possibilidades de tornar-se modelo intermediário entre o popular e o médio.
Projeto Amazon -- Gravataí é apenas o gatilho da revolução na forma de produzir carros populares no Brasil. No final do próximo ano fica pronta a fábrica que a Ford constrói no Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, onde produzirá família completa de veículos a partir de modelo também subcompacto, o chamado Projeto Amazon. Quem considera a fábrica gaúcha da GM a mais moderna do mundo não perde por esperar a Ford baiana. Será tão ou mais produtiva e competitiva que a linha de montagem do Celta. E poderá ter a vantagem adicional de contar com mão-de-obra ainda mais barata que a do Sul do País, onde os indicadores de escolaridade e qualidade de vida são mais elevados. Não foi por acaso que a Ford topou apostar fichas num Estado com pouquíssima tradição em manufatura industrial.
A fábrica de Camaçari será bastante parecida com a de Gravataí, resguardados os avanços tecnológicos que se renovam a cada ano. A Ford reunirá no terreno baiano 17 sistemistas para alimentar a linha de montagem. O ganho da GM com estratégia semelhante na fábrica gaúcha está em torno de R$ 2 mil por veículo produzido. Também com 17 sistemistas no próprio quintal, organizados pela TNT, empresa especializada em logística, a GM reduz em 60% o número de fornecedores, atinge índice de nacionalização de componentes de 95% -- o maior do País -- e economiza 50% em peças. Já se especula que a Ford poderá optar por manufaturar automóveis exclusivamente na Bahia, reservando à unidade de São Bernardo apenas a produção de picapes e caminhões. A fábrica de caminhões da montadora, que ainda opera no Bairro Ipiranga, em São Paulo, estará totalmente transferida para o Grande ABC até o fim do ano.
Ter sistemistas no mesmo quintal proporcionará outras vantagens estratégicas à Ford. A exemplo de Gravataí, ajudarão a montadora no co-design dos produtos. Seguindo na contra-corrente do veículo mundial, o Celta foi concebido para o público brasileiro. É, portanto, o que se pode chamar de carro regional. Os modelos populares do Projeto Amazon devem seguir o mesmo caminho. É a nova tendência da indústria automobilística de atender às expectativas e necessidades do consumidor. "Participar como co-designer é fundamental porque nos permite desenvolver produtos. É uma oportunidade de criar novas sinergias" -- afirma Volker Barth, presidente da Delphi para a América do Sul, empresa que fornece eixos traseiro e dianteiro para a GM em Gravataí. "Economicamente faz mais sentido o fornecedor estar ao lado da montadora" -- completa Americo Nesti, presidente da Lear para a América do Sul, fornecedora de bancos para a GM.
O tempo que separa Gravataí de Camaçari deve permear mudanças nas unidades do Grande ABC e no Vale do Paraíba que se dedicam a montar veículos populares. A mineira Fiat, fabricante do Mille e do Palio, é caso à parte -- paga salários equivalentes ao da nova unidade da GM, apesar de estar muito aquém em produtividade. Se o Celta cair no gosto do consumidor e de fato canibalizar o Corsa, haverá perdas para as fábricas da GM em São Caetano e em São José dos Campos. Dependendo do tamanho do gosto do consumidor, outras marcas, como Volkswagen e Fiat, terão de reagir à altura para manter participação no mercado. O pulo do gato está numa frase de Sten Sorensen, presidente da alemã VDO, que faz o painel do Celta: "Tecnologia é criar custo baixo".
Mais investimentos -- Novas fábricas e veículos populares à parte, a indústria automobilística continua apostando no Brasil. A própria General Motors anunciou no mês passado investimento de US$ 1,5 bilhão nas filiais do Estado de São Paulo. O objetivo é modernizar ainda mais as linhas de montagem para produzir novos modelos, como a minivan Zafira, prevista para ser lançada no Brasil em 2001. A Volkswagen continua investindo pesado -- R$ 3,5 bilhões -- na reforma estrutural e tecnológica da pioneira fábrica de São Bernardo para produzir automóvel para consumidor de médio poder aquisitivo e por enquanto conhecido pela sigla PQ-24. Veículos sofisticados montados em fábricas estratégicas, Zafira e PQ-24 reforçam a tese de que o Brasil está se transformando em plataforma de exportação para o mercado globalizado.
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