Beral e Leinad eram a prova provada, documentada e juramentada de que democracia e economia, mesmo com forte intervenção de um Estado gastador, garantiam mobilidade social. Não fosse assim, Beral e Leinad jamais se encontrariam numa redação de jornal, eles que eram de origens tão distintas. Beral era nativo da cidade, filho de classe média, estudante dos chamados melhores colégios. Leinad aportou no Município aos 17 anos, junto com toda a família, em cima de um caminhão de mudança. Viera do Interior de São Paulo. O pai construiu vida sinuosa como a estrada de Santos de Roberto Carlos. Saiu da pobreza para a riqueza, da riqueza para a pobreza, de novo da pobreza para a riqueza até que negócios mal-sucedidos o levaram de novo à pobreza.
Beral estudou em escolas particulares e se formou jornalista. Era um bom moço, desses de prosa farta, cativante. Leinad viera de escolas públicas, nos tempos em que escolas públicas eram sinônimo de qualidade. Leinad era alegre, falante. Diziam que esquentava a cabeça fácil. Como poderia ser diferente se o sangue espanhol lhe corria nas veias, se a família numerosa o ensinara que brigar e amar eram quase sinônimos, que rancor não tinha espaço no coração e que raiva era passageira?
Os dois jornalistas eram amigos, se respeitavam. Não discutiam futebol porque Beral era um são-paulino discreto. Leinad era corintiano apaixonado, desses que aprendera a amar o preto e o branco desde criança, quando se juntava aos tios na casa simples do Interior, radinho colado ao ouvido. Até então, torcer era sofrer porque seu time acumulava anos e anos sem títulos. Já em meados dos anos 80, quando se encontraram na redação de jornal, o Corinthians voltara a ser vencedor e o São Paulo ainda não havia conquistado os dois títulos mundiais.
Leinad tornou-se chefe de Beral no jornal regional. E não teve dúvidas de incentivá-lo a trocar de emprego, de ir para a sucursal de um grande jornal paulista quando lhe propuseram melhores salários. Beral foi com todo o seu talento de formação acadêmica. Leinad não demorou para seguir seus passos. Deixou o jornal regional e foi contratado para atuar como repórter na mesma sucursal.
Beral e Leinad mantiveram convivência estreita, mesmo sem serem amigos mais chegados, desses que saem para beber, para conversar, essas coisas que todos sabem o que significa amizade. Não frequentavam o mesmo ambiente pós-trabalho, até porque Leinad tinha dois filhos para criar e Beral era solteiro que não perdoava um rabo de saia. Juntos num ramal de um jornal paulista que tem a livre iniciativa como defesa intransigente, Beral e Leinad cultivavam, entretanto, algumas diferenças ideológicas. Beral vibrava com o movimento sindical do ABC, agitava-se com as greves, idolatrava Lula. Leinad fluía entusiasmo em direção às pequenas e médias empresas, defendia o empreendedorismo como sustentáculo da democracia política, social e cultural.
Leinad só não esquece a tarde em que Beral chegou à redação com o entusiasmo estudantil, punhos fechados, comemorando a chamada Tomada da Ford, quando metalúrgicos invadiram a fábrica de São Bernardo, viraram e atearam fogo em veículos estacionados no pátio, entre outras fanfarronices dos tempos de um ABC ebulitivo. Beral, filho de classe média beneficiária do capitalismo construtor do ABC Paulista, agitava-se pela pregação socialista. Leinad, filho de migrantes paulistas, pobre, não entendia a contradição que ele próprio vivia. Afinal, socialista deveria ser ele, não o amigo que gozava de todas as oportunidades proporcionadas pelo capitalismo.
Algum tempo depois, quando Lula desfilou em carro aberto pelas ruas de São Bernardo em campanha eleitoral, Beral fez um texto engajado que o jornal paulista da livre iniciativa publicou sem tirar uma vírgula. Leinad continuava a brandir a defesa da livre iniciativa. Uma década e meia depois, enquanto Beral virou executivo de um grande jornal econômico de São Paulo, Leinad comanda uma publicação voltada para o empreendedorismo na região que adotou como endereço. Dizem que Beral jogou a roupa ideológica no cesto do desencanto, depois da queda do Muro de Berlim. Quanto a Leinad, está convicto de que nada substitui a possibilidade de a democracia reformar o capitalismo, tornando-o mais responsável socialmente.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)