Imprensa

O colecionador de
fantasmas metálicos

DANIEL LIMA - 05/01/2001

Ramon tem condecorações de todos os tipos. É comendador das ordens mais diversas. Também é barão e duque.  E mais uma porção de títulos dos quais nem se lembra mais. Ramon não sabe ao certo quantas homenagens recebeu ao longo da vida ativa como gerente de filial de grande banco. Foram dezenas. Outro dia resolveu remexer nos pertences em casa e ficou surpreso com a própria herança heráldica: chegou a contar mais de 30 adereços que representam a profusão de premiações que tantos outros recebem como se fossem exemplares únicos. 

Ramon se desencantou com as distinções logo depois de ver seu mundo profissional desabar. Mas já andava desconfiado de que havia uma relação carnal entre poder, dinheiro e homenagens. Teve uma noite, ainda nos bons tempos de salários e mando, que Ramon se perguntou para que lhe serviam aqueles badulaques recebidos em festas então memoráveis. Ou não são noitadas especiais, dignas dos deuses do olimpo, vestir-se de smooking, reunir amigos, encontrar-se em local requintado, mesa farta, vinho farto, uísque farto, e jorrar-se com a distinção? Comendador Ramon. Barão Ramon. Duque Ramon. Honrarias não lhe faltaram durante o período em que detinha o poder de aprovar créditos a comerciantes enrolados, a empresários à beira da falência e a amigos mais chegados. Eram tempos inflacionários em que os bancos ganhavam rios de dinheiro com a ciranda financeira e não tinham lá critérios dos mais rigorosos para aprovação de créditos. É claro que Ramon cobrava garantias, mas havia flexibilidade. O importante era atender o bom cliente. 

Diretamente, Ramon não chegou a comprar nenhum título de nobreza. Mas sua influência na liberação de empréstimos tinha peso preponderante. Não ignorava também que a representatividade da gerência lhe dava status suficiente para ser reverenciado pela sociedade. As portas lhes eram abertas com pompa e circunstância. O ritmo frenético dos empréstimos correspondia à bajulação que recebia. Os títulos heráldicos consolidavam o relacionamento financeiro que o cargo impunha nos contatos apenas aparentemente de amigos.  

Os litros de uísque, as camisas, as gravatas, as calças, os relógios e tantas outras oferendas que recebia no final de ano como gerente de banco pródigo em empréstimos já não povoam as recordações de Ramon. Nem se comparam esses objetos aos títulos de nobreza dos quais fôra a opção senão preferencial, pelo menos sistemática desses caçadores de egos exacerbados. Esses Indianas Jones da sociedade das aparências. Os uísques, as gravatas, as calças, as camisas, os relógios e tantos outros brindes o tempo tratou de consumir. Eram perecíveis como os almoços e jantares com amigos circunstanciais. Já os títulos heráldicos não, porque se tornaram fantasmas permanentes na escrivaninha de casa. Sim, Ramon escolheu um móvel específico para guardar aquelas fitas coloridas, aquelas medalhas, aquelas provas materializadas do quanto o dinheiro e o poder podem fazer juntos.  

De vez em quando Ramon remexe o material que ainda hoje novos Ramons veneram em cerimônias de gosto duvidoso. Ramon olha desconsolado para tudo aquilo. Não tem mais o poder da caneta, como ele mesmo define seu passado. E nem dinheiro. Afinal, a vida anda difícil num País que já não oferece ganhos fartos no mercado financeiro e numa região onde o desemprego é irmão siamês da criminalidade. Quando Ramon está irritado com a vida, e motivos não lhe faltam, prefere observar todo o arsenal de homenagem apenas de soslaio, como se pensasse em se livrar dos penduricalhos do passado. 

Cada pedacinho dos troféus heráldicos que repousam no móvel de casa traz um fragmento de histórias de clientes e amigos que se aproximaram da caneta decisiva de Ramon. Quando está de bom humor, Ramon ri da própria sorte. Zomba dos escombros metálicos que recheiam sua casa. Quando está de mau humor, tem vontade de sair à rua, pendurar tudo aquilo no pescoço e escrever numa tabuleta, em letras garrafais, para todos lerem e se sensibilizarem: "Troco tudo isso por um emprego digno, porque ainda não estou morto". 


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