Imprensa

Quando máquinas
valem muito mais

DANIEL LIMA - 05/02/2001

Há latente contrassenso na empresa. Da linha de montagem saem produtos personalizados, que supostamente exigem a melhor mão-de-obra disponível no mercado, mas o dono do negócio, o seu Antonio, continua apaixonado por máquinas e equipamentos. A ele pouco importa quem produz de fato o que vende em profusão de pão quente. Seus olhos e mente estão nos ativos fixos. As más línguas dizem que seu Antonio não faz jus a qualquer referência coronária em suas preocupações com a empresa, mesmo com as máquinas e equipamentos, porque se duvida que ele tenha aquela pecinha de carne que bate no meio do peito. 

A empresa de seu Antonio é um primor de contradição. Ao mesmo tempo em que investe milhões em material de suporte à produção da equipe que domina o chão-de-fábrica, o ainda chamado Departamento Pessoal lembra essas casas de tolerância, tanto é o movimento de entra-e-sai. Sim, o turnover da empresa de seu Antonio é intenso. Mas isso não preocupa seu Antonio. Nem a seus sócios, com os quais divide as ações. A empresa é de seu Antonio para todo mundo porque ele efetivamente trata com os trabalhadores. O RH está subordinado a sua sabedoria muito peculiar de valorizar máquinas e subestimar pessoas. Aliás, o próprio RH é peça de ficção, porque se limita a alguns funcionários que controlam cartões de ponto e à burocracia inerente de um País extremamente regulamentado.  

A empresa de seu Antonio já viveu melhores momentos como monopolista territorial. Mas tem público-alvo bem definido. Não interessa se o consumidor poderia ser mais bem atendido em termos de qualidade. Seu Antonio administra com a perspectiva no hoje e agora. Os trabalhadores da empresa de seu Antonio se dizem engajados politicamente, mas no fundo, no fundo, são todos, ou quase todos, essencialmente individualistas. Estão ali temporariamente na maioria dos casos. Seus olhos voltam-se mesmo para empresas de maior porte do mesmo setor, cujos tentáculos comerciais ainda não alcançam o território de seu Antonio. A empresa de seu Antonio é um entreposto profissional. Da mesma forma que seu Antonio finge que produz produtos de boa qualidade, os funcionários fingem comprometimento com o negócio. 

É verdade que seu Antonio e os sócios dão sorte. De vez em quando, na febre de turnover da companhia, aparecem alguns profissionais de nível mais elevado e que, confiantes no esperado comprometimento da cúpula, lançam-se com muito empenho ao trabalho de empinar a qualidade do produto. Não demora, entretanto, para as novas contratações serem atingidas pela realidade. Os mais antigos trabalhadores da empresa de seu Antonio quebram o encanto dos novatos com relatos dos desajustes e também com o notório comodismo de quem não tem maiores ambições profissionais.

Verdade que os salários da empresa de seu Antonio jamais atrasam, mas não se pode dizer que há justiça na remuneração. Os pratas-da-casa são discriminados nos salários e nos cargos. Quem chega de fora é tratado a pão de ló. Só falta contratar bufê para a recepção. Invariavelmente a história se repete e aqueles que chegam como heróis saem como vilões. Geralmente são oportunistas escorraçados de empresas do mesmo setor de outras regiões. 

A empresa de seu Antonio continua existindo porque o monopólio territorial ainda persiste, mas novas tecnologias estão ameaçando o conceito de territorialidade. Seu Antonio ainda não percebeu que a bomba relógio foi acionada e mais dia, menos dia, seus recursos humanos vão ter de estar no topo das preocupações. Ele vai descobrir que cada vez mais entrará para o anedotário corporativo a peregrinação sistemática que faz com seus convidados, na maioria dos casos clientes da empresa, levados ao chão de fábrica e apresentados ao que chama de coração da empresa -- as máquinas e equipamentos cada vez mais atualizados tecnologicamente e, também, dependentes de sua mão-de-obra menos qualificada do que antes, mas que ainda dá conta do recado. 


Leia mais matérias desta seção: Imprensa

Total de 1884 matérias | Página 1

13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)
11/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (32)
08/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (31)
06/11/2024 Maioria silenciosa sufoca agressão de porcos sociais
06/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (30)
04/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (29)
31/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (28)
29/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (27)
28/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (2)
25/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (1)
24/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (26)
21/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (25)
18/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (24)
16/10/2024 PAULINHO SERRA É PÉSSIMO VENCEDOR
15/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (23)
11/10/2024 MEIAS-VERDADES E MENTIRAS NA MIRA
09/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (22)
03/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (21)
01/10/2024 CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS