LivreMercado completa 11 anos de circulação com a dupla certeza de que surfou muito mais nas águas do comedimento construtivo do que escorregou no tomate da confiança irrestrita. Retrospecto do conteúdo jornalístico da revista revela que a linha editorial crítica e de distanciamento do triunfalismo regional pode não ser simpática a frações da sociedade econômica, política e comunitária, mas é extremamente receptiva em grande parcela da comunidade que não subordina a realidade às jogadas de marketing.
A trajetória de LivreMercado no formato revista, a partir de novembro de 1996, não difere dos mais de cinco anos em que se manteve como tablóide: uma inquietante preocupação com o futuro de uma região que se lambuzou com o açúcar do desenvolvimento econômico do passado de glórias e se descuidou irresponsavelmente com o melado do presente de comprometimento social -- uma réplica bem acabada do próprio País.
A tomada de pulso do amadurecimento permanente de LivreMercado está na coletânea de Reportagens de Capa, vitrine que expressa as diretrizes da publicação. As matérias que ocuparam o espaço mais nobre de LM podem ser divididas em três categorias: as abusadamente prospectivas, as duramente realistas e as generosamente otimistas. Sorte dos leitores que o ufanismo não contaminou a vitalidade deste produto geneticamente voltado ao questionamento e à quebra de paradigmas. Nas poucas vezes em que se deixou levar pelo entusiasmo, LivreMercado tratou de erguer mecanismos que não a tornassem refém de eventuais equívocos. Geralmente havia salvaguardas que induziam os leitores a moderar o grau de entusiasmo com determinados fatos.
Entra na categoria de matérias generosamente otimistas, por exemplo, o relacionamento entre o governo do Estado e a região. A capa de abril de 1998 com a foto do então secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Emerson Kapaz e o título O Estado de Bem com o Grande ABC inaugurou série de reportagens sobre a reação da elite política, econômica e social da região às mudanças geradas pela globalização. Em agosto do mesmo ano, como desdobramento das atividades da Câmara Regional, LM saiu com o título O Vôo da Esperança, também na Reportagem de Capa. A seguir, em novembro, foi a vez do Fórum da Cidadania ganhar a disputa pela pole-position da capa com o título Grande ABC Muda Sob a Animação do Fórum da Cidadania. Em dezembro do ano passado, depois de dar tempo ao tempo e de vasculhar o inventário de eventuais conquistas das instituições mais badaladas da região, LM saiu com a devastadora reportagem Devagar Quase Parando, em que uma tartaruga estilizada caminhava sob o peso do mapa mundi. Tratou-se de análise inédita sobre o fracasso da Câmara Regional, do Consórcio de Prefeitos, do Fórum da Cidadania e da Agência de Desenvolvimento Econômico.
Devagar Quase Parando foi, sem dúvida, um chute no traseiro de todos aqueles que se omitiram ou se entregaram muito pouco para transformar o histórico de uma região que insiste em viver das glórias da industrialização acelerada. Como se isso não tivesse sido acompanhado pela evasão de empresas e por um sindicalismo que, apesar de todos os valores intrínsecos de ajudar a reformatar a democracia no País, é extremamente corporativo e exclusivista.
LivreMercado também se equivocou ao acreditar que a indústria do entretenimento explodiria na região e minimizaria o quadro de desemprego e de falta de alternativa econômica ao setor automotivo que se contrai e à indústria química/petroquímica geradora de impostos mas escassa em empregos. É verdade que a atividade de entretenimento recepcionou uma série de investimentos nos últimos anos, mas está longe do esperado e nem se compara à exuberância da vizinha Capital. Parques temáticos, por exemplo, são miragem não só porque a região não se mostrou suficientemente atrativa aos investidores como porque a atividade sofre de raquitismo no País.
Outro voto de confiança nas ações regionais e que se insere na linha otimista da revista está expresso na reportagem que trata da recuperação dos estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo. Montadora de Sonhos foi a capa da edição de novembro de 1999. Até agora praticamente nada foi construído. Governo do Estado, Prefeitura de São Bernardo e doadores privados não mobilizaram o dinheiro necessário para obras e equipamentos que colocariam São Bernardo num foco de providencial desenvolvimento da indústria cultural.
Estão na categoria de matérias duramente realistas, além do balanço sobre o quadro institucional da região simbolizado pela tartaruga estilizada, outras abordagens que não se limitaram a seguir acriticamente o noticiário. A Reportagem de Capa de março de 1997 foi provocativa. Imensa interrogação sobreposta a uma bola de cristal aparentemente sob controle de duas mãos, Grande ABC Tem Futuro? acabou ganhando versão em formato de livro. Adeus CTBC, trazendo na capa foto do então presidente Ademir Spadafora cantou a caçapa do desaparecimento, mais de dois anos depois, da empresa que era uma das vacas sagradas do orgulho regional.
Pequenos negócios de comércio e serviços ganharam duas vezes a disputa de chegar à Reportagem de Capa. A primeira em fevereiro de 1998 com o título Quem Salva os Pequenos Negócios? e a segunda em maio do ano passado, com o título Empresa Familiar Grita por Socorro. Também a capa de janeiro último pode ser catalogada como parte do conjunto de obras de LivreMercado voltado para comerciantes e prestadores de serviços praticamente abandonados à própria sorte: Capitalismo de Terceira Classe fez interpretação minuciosa e exclusiva de pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises de Dados) direcionada a identificar e quantificar um mundo produtivo em que 74% dos envolvidos não têm a cobertura da Previdência Social e que só supera o capitalismo de quarta classe do desemprego.
Outra Reportagem de Capa que entra para a história do jornalismo brasileiro e que jamais conseguiu ser minimamente rivalizada por qualquer publicação ganhou imagem sugestiva na edição de agosto de 1998 -- Quem Vai Desativar a Bomba Sindical? A reportagem continua atual em grande parte de seu conteúdo produzido com matéria-prima insuspeita: estudos oficiais apresentados por lideranças de sindicatos, de montadoras de veículos e de autopeças sobre o desequilíbrio de custos da principal matriz econômica do Grande ABC em relação ao restante do País que também fabrica veículos. O material deveria sustentar os trabalhos do grupo automotivo da Câmara Regional para ajustar a realidade da produção das montadoras da região a outros territórios nacionais. Entretanto, jamais foi conduzido ao terreno regenerador do equacionamento dos custos automotivos na região. Ainda se acredita ingenuamente que o restante do País vai pagar o preço da baixa competitividade regional. Aliás, Só a Produtividade Pode nos Salvar, título da Reportagem de Capa de maio de 1999 com foto de José Carlos Pinheiro Neto, presidente da Anfavea (associação que reúne as montadoras de veículos no Brasil), deu sequência ao assunto abrasivo.
Por ser a atividade mais representativa da economia regional, o setor automotivo ganhou outras análises que se transformaram em Reportagem de Capa. A primeira da fase revista de LM foi publicada em setembro de 1997 com o título Apertar Parafuso Já Era. Especialistas em recursos humanos colocavam uma pá de cal em mito há anos demolido por LivreMercado -- a qualificação da mão-de-obra local era uma bobagem propagada pelos sindicatos por motivos óbvios de valorização do ativo que comandavam. O tempo e a montanha de recursos financeiros investidos pelas empresas para treinar e reciclar trabalhadores, sem contar a profusão de demissões em nome do avanço tecnológico e da produtividade, deram razão à LM. Tanto sindicalistas quanto boa parte da mídia confundiram cultura de produção fabril com mão-de-obra qualificada. Pelo histórico de industrialização, o Grande ABC é praticamente imbatível em cultura produtiva, que pode ser definida como o acúmulo de aptidões geralmente não mensuráveis. Já mão-de-obra qualificada é um conjunto de conhecimentos atualizados e adaptados aos avanços tecnológicos que durante décadas foram esquecidos na região. Quando se junta as duas partes da laranja, o resultado está próximo do ideal. Como acreditar em qualidade funcional se o autarquismo econômico tornou o chão de fábrica na região autêntico museu de processos e equipamentos que só a abertura econômica destruiu? Aliás, sobre esse mesmo assunto -- a qualificação dos trabalhadores do setor automotivo da região -- LivreMercado saiu de novo à frente em maio do ano passado com a capa Peão Uma Ova!, que esmiuçou a série de medidas de reestruturação nas montadoras locais. Mais tarde, outras publicações de porte do Brasil seguiram os passos de LM.
A categoria de capas abusadamente prospectivas de LivreMercado transborda em exemplos. Em junho de 1997 um tema aparentemente estranho ao mundo dos empreendedores foi retratado sob o título Espiritualidade Ganha Vez nos Negócios. Na edição seguinte, Grande ABC Caiu na Rede desbravava os primeiros passos da Internet na região. Em dezembro de 1998 de novo a Internet voltou à Reportagem de Capa: uma Carmem Miranda estilizada anunciava Yes, Nós Temos Software, sobre a incipiente indústria de programas de computador enlaçada pela iniciativa privada da região. Quando Arte e Negócios se Completam, em setembro de 1997, mostrou que a revista ampliava o raio de ação editorial, misturando capitalismo e arte. Bem depois, em abril do ano passado, foi a vez da revolucionária ação do Departamento de Cultura de Diadema ganhar espaço nobre na revista. Exatamente um ano depois de a Reportagem de Capa dedicar outra análise inédita na Imprensa brasileira, agora de conteúdo político, social e econômico, sobre a sucessão de governos de esquerda em Diadema, primeiro Município do País a eleger Executivo do Partido dos Trabalhadores. O título Nossa República Socialista e o conteúdo mereceram votos de congratulações até mesmo de esquerdistas da Câmara Municipal de Diadema, além de surpreender leitores mais conservadores que não admitem a uma revista voltada à livre iniciativa a abertura de espaço a eventuais inimigos do capital.
Como se observa, história consistente não falta nos 11 anos de LivreMercado. A lista de tabus, mitos e fantasmas que LM vem destruindo com a insistência de uma metralhadora é imensa e já foi motivo de peças de publicidade. São inúmeras as ações que colocam a revista num patamar de respeitabilidade e credibilidade. A alternância de matérias generosamente otimistas, abusadamente prospectivas e duramente realistas é espécie de pêndulo que identifica o padrão de comportamento editorial de LivreMercado e sobre o qual seus profissionais estão cada vez mais atentos. O risco de cometer falhas, está provado, é sempre maior quando se deixa levar, conscientemente ou não, pela onda cor-de-rosa que autoridades públicas são ávidas em reivindicar em nome de um marketing de pé quebrado que procura tentar vender gato por lebre. Esquecem-se de que a recíproca também é verdadeira -- quando se tenta vender lebre, o leitor pode entender que seja gato. Será que a história infantil do menino que insinuava afogamento foi esquecida?
O desafio de completar 11 anos de atividades sempre evolutivas numa região que colecionou no mesmo período provavelmente as maiores perdas econômicas e sociais da história, sob pressão da abertura dos portos e da estabilidade monetária, equaciona duas realidades que não podem ser dissociadas: o Grande ABC decaiu, mas nem por isso está irremediavelmente perdido, e os profissionais de LivreMercado se desdobram cada vez mais além da imaginação dos leitores para não deixar a peteca cair.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)