Imprensa

Quando esperar
demais é fatal

DANIEL LIMA - 05/03/2001

Pedro Prudente lembrava até a música do homônimo, costurada pela genialidade poética de Chico Buarque, o tal de Pedro Pedreiro. Pedro Prudente parecia não acreditar que algo novo surgisse no radar de sua empresa, por isso se comportava com desleixo de mãe desnaturada que não sabe o perigo que os meninos correm brincando com pneus carecas e esfolados. Pedro Prudente desdenhava que o mundo fosse mudar tanto, que o mercado fosse tão dinâmico, que os negócios pudessem surpreender tanto a ponto de o produto que produzia e que tinha mercado garantido pudesse um dia se inviabilizar. 

Avanço tecnológico era uma abstração, sustentada na singularidade de que Pedro Prudente dirigia uma empresa protegida por enormes restrições alfandegárias. A concorrência externa não tinha como furar o cerco das alíquotas de importação. Que se danassem os consumidores. Que engolissem o produto nacional mais caro e anacronicamente pouco eficiente.

Pedro Prudente não era assim tão imprudente. Lia o noticiário econômico com relativa frequência. É verdade que detestava seminários de gurus badalados. Achava pura besteira pagar tanto dinheiro por uma hora e meia, duas horas de palavras que não entendia e que precisavam de tradutor automático. Às vezes desconfiava de sua própria avaliação, porque mais e mais ouvia dizer que amigos empreendedores ajeitavam como podiam a agenda para os eventos. Vários deles até abriam enormes brechas nos compromissos de rotina para viagens internacionais rumo aos grandes palcos de feiras e exposições. 

Pedro Prudente não se esquece de que numa noite, depois de uma peça de teatro acompanhado da mulher, encontrou com casal de amigos numa dessas cantinas bem frequentadas do Bexiga, em São Paulo. Conversa vai, conversa vem, entre uma mordida na pizza e um gole de vinho, Pedro Prudente foi cutucado pelo amigo sobre o que estava reservando para o futuro de sua empresa. Fez que não entendeu a pergunta. Na verdade, para dissimular, olhou para trás como se quisesse transferir a resposta para a mesa ao lado que nem ocupada estava.

O amigo insistiu e Pedro Prudente, que gostava de esperar o tempo passar, disse com a candura dos ignorantes que o aqui e agora lhe tomavam tempo suficiente para não pensar no amanhã. O amigo não escondeu surpresa porque tinha Pedro Prudente em alta conta estratégico-empresarial. Imaginava-o pronto para a necessidade de um redirecionamento do negócio porque sabia que a linha de produção de sua empresa era monotemática e que, por isso, a qualquer momento, com a eventualidade de chegar a tão propalada abertura comercial, tudo poderia mudar. 

O jantar que transcorria descontraído e alegre ficou anuviado com a pergunta do amigo de Pedro Prudente. Não que o encontro chegasse a ficar comprometido, até porque Pedro Prudente fez o que pôde para dissimular um fio de preocupação que lhe invadira a alma. Talvez até por causa dos efeitos etílicos do vinho que não estava acostumado a engolir, Pedro Prudente estava mais sensível. Foi para casa com a mulher ainda sob o efeito duplo do vinho e da pergunta sem resposta. Nem disposição para a complementação da noite nos moldes tradicionais Pedro Prudente conseguiu ter. 

Acordou no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Desdenhou o amigo. Falou consigo mesmo que não produzia máquina de datilografia, não tinha uma frota de charretes nem marias-fumaças para se imaginar do dia para a noite sem lenço e sem documento. O produto que fazia lhe garantia mercado suficiente para viver muitos anos tranquilo. 

Pedro Prudente foi colhido em plena tempestade da globalização. Sua indústria foi arrastada pela onda de abertura da economia. A moeda valorizada e estabilizada atraiu investidores de todos os cantos do mundo. Os juros altos tornaram-se proibitivos a investimentos. Quando imaginou que poderia salvar a pele vendendo o negócio, se viu irremediavelmente encalacrado. Sem tecnologia, sem gestão, sem recursos humanos, sua empresa nada valia. Pedro Prudente esperou demais. Perdeu o bonde da história.  


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