Jenivalton da Silva virou empresário por acaso. Durante anos suou o macacão de metalúrgico de uma grande montadora nos tempos em que os veículos produzidos no Brasil pareciam carrinhos de rolimã na comparação com modelos fabricados em países globalizados. Estava contente-contentíssimo com a rotina de assalariado da multinacional. Tinha vencimentos muito acima da média dos trabalhadores brasileiros e usufruía de pacote de benefícios que só não incluía tratamento odontológico para o vira-lata da família.
É verdade que o trabalho no chão de fábrica exigia resistência e preparo físico acima da média, porque lidar com tornos e outros maquinários pesados por horas a fio não é tarefa para qualquer franguinho crescido no berço macio dos privilegiados. Tinha é de ser macho, mutcho macho-cho, e isso Jenivalton da Silva era de sobra. Afinal, a vida no tórrido Nordeste brasileiro era muito mais dura. Além disso, a cachaça vendida largamente em frente à fábrica garantia energia adicional no intervalo do almoço. O trabalho pesado e repetitivo era apenas a prova de que não existia emprego perfeito.
O salário e os benefícios oferecidos pela indústria de automóveis eram tão dissonantes em relação à pobre realidade brasileira que Jenivalton da Silva -- por parte de mãe, uma vez que o pai era desconhecido -- conseguiu subir na vida a patamares inimagináveis para empregado de empresa mais modesta. A casa própria e o carro zero quilômetro na garagem espaçosa de quem não tinha sequer terminado o Ensino Fundamental -- e ainda esbanjava o tempo livre jogando sinuca e baralho -- formavam uma constatação soletrada com pontinha de inveja pelos primos-pobres que ficaram na terra natal: Jenivalton tinha dado sorte na vida.
Mas só os desgraçados da infértil terra nordestina enxergavam privilégio na vida do retirante que chegou a Sumpaulo com uma mão na frente e outra atrás. Jenivalton engrossava as fileiras dos grevistas para reivindicar sempre mais. E sempre recebia. Bastava ameaçar virar alguns carros no pátio para os executivos concederem acréscimos substanciais a salários e benefícios já surreais. A farra do boi de Jenivalton e demais companheiros terminou com a internacionalização do mercado brasileiro de veículos no início dos anos 90. A montadora endureceu nas negociações porque já não podia mais fazer vistas grossas à planilha de custos. Resultado: Jenivalton foi para o olho da rua na primeira greve mal-sucedida.
Com o dinheiro do Fundo de Garantia e a experiência de muitos anos, Jenivalton abriu respeitável estamparia de componentes. Pequena, mas bem estruturada para fornecer peças às montadoras que ele conhecia bem. A posição de dono de firma, inimaginável nos tempos de guerrilheiro-metalúrgico, trouxe sensação de segurança que ele nunca havia experimentado enquanto vestia o macacão e comia no bandeijão. Os pedidos adensavam e os projetos de expansão pipocavam na cabeça de quem tinha nascido para figurante, não para protagonista.
O pesadelo começou com o recrudescimento da concorrência de gigantes internacionais. Empresas estrangeiras mil vezes maiores entraram no jogo dispostas a não brincar, obrigando Jenivalton da Silva a pendurar as chuteiras de empreendedor. A imposição de custos microscópicos com qualidade superlativa formava uma equação que Jenivalton jamais conseguiu solucionar. Teve de fechar a metalúrgica, sob protesto dos empregados indignados e em greve. Jogado no sofá da sala-de-estar, Jenivalton se entregava a cálculos de relação custo/benefício entre as vidas de empregado e patrão. Como empregado, tinha o refresco da reivindicação coletiva, além da pinguinha na hora do almoço, do ônibus na porta de casa e da assistência médica estendida à mulher e filhos. Como ex-dono de pequena autopeça engolida pelos tubarões internacionais, nem os ombros amigos de companheiros de invernada lhe restaram. Fazer o quê? criar o Movimento Nacional dos Sem-Empresa? Jenivalton era feliz e não sabia.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)