Imprensa

Tempos de macacão
eram bem melhores

ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/04/2001

Jenivalton da Silva virou empresário por acaso. Durante anos suou o macacão de metalúrgico de uma grande montadora nos tempos em que os veículos produzidos no Brasil pareciam carrinhos de rolimã na comparação com modelos fabricados em países globalizados. Estava contente-contentíssimo com a rotina de assalariado da multinacional. Tinha vencimentos muito acima da média dos trabalhadores brasileiros e usufruía de pacote de benefícios que só não incluía tratamento odontológico para o vira-lata da família. 

É verdade que o trabalho no chão de fábrica exigia resistência e preparo físico acima da média, porque lidar com tornos e outros maquinários pesados por horas a fio não é tarefa para qualquer franguinho crescido no berço macio dos privilegiados. Tinha é de ser macho, mutcho macho-cho, e isso Jenivalton da Silva era de sobra. Afinal, a vida no tórrido Nordeste brasileiro era muito mais dura. Além disso, a cachaça vendida largamente em frente à fábrica garantia energia adicional no intervalo do almoço. O trabalho pesado e repetitivo era apenas a prova de que não existia emprego perfeito.

O salário e os benefícios oferecidos pela indústria de automóveis eram tão dissonantes em relação à pobre realidade brasileira que Jenivalton da Silva -- por parte de mãe, uma vez que o pai era desconhecido -- conseguiu subir na vida a patamares inimagináveis para empregado de empresa mais modesta. A casa própria e o carro zero quilômetro na garagem espaçosa de quem não tinha sequer terminado o Ensino Fundamental -- e ainda esbanjava o tempo livre jogando sinuca e baralho -- formavam uma constatação soletrada com pontinha de inveja pelos primos-pobres que ficaram na terra natal: Jenivalton tinha dado sorte na vida. 

Mas só os desgraçados da infértil terra nordestina enxergavam privilégio na vida do retirante que chegou a Sumpaulo com uma mão na frente e outra atrás. Jenivalton engrossava as fileiras dos grevistas para reivindicar sempre mais. E sempre recebia. Bastava ameaçar virar alguns carros no pátio para os executivos concederem acréscimos substanciais a salários e benefícios já surreais. A farra do boi de Jenivalton e demais companheiros terminou com a internacionalização do mercado brasileiro de veículos no início dos anos 90. A montadora endureceu nas negociações porque já não podia mais fazer vistas grossas à planilha de custos. Resultado: Jenivalton foi para o olho da rua na primeira greve mal-sucedida.

Com o dinheiro do Fundo de Garantia e a experiência de muitos anos, Jenivalton abriu respeitável estamparia de componentes. Pequena, mas bem estruturada para fornecer peças às montadoras que ele conhecia bem. A posição de dono de firma, inimaginável nos tempos de guerrilheiro-metalúrgico, trouxe sensação de segurança que ele nunca havia experimentado enquanto vestia o macacão e comia no bandeijão. Os pedidos adensavam e os projetos de expansão pipocavam na cabeça de quem tinha nascido para figurante, não para protagonista.

O pesadelo começou com o recrudescimento da concorrência de gigantes internacionais. Empresas estrangeiras mil vezes maiores entraram no jogo dispostas a não brincar, obrigando Jenivalton da Silva a pendurar as chuteiras de empreendedor. A imposição de custos microscópicos com qualidade superlativa formava uma equação que Jenivalton jamais conseguiu solucionar. Teve de fechar a metalúrgica, sob protesto dos empregados indignados e em greve. Jogado no sofá da sala-de-estar, Jenivalton se entregava a cálculos de relação custo/benefício entre as vidas de empregado e patrão. Como empregado, tinha o refresco da reivindicação coletiva, além da pinguinha na hora do almoço, do ônibus na porta de casa e da assistência médica estendida à mulher e filhos. Como ex-dono de pequena autopeça engolida pelos tubarões internacionais, nem os ombros amigos de companheiros de invernada lhe restaram. Fazer o quê? criar o Movimento Nacional dos Sem-Empresa? Jenivalton era feliz e não sabia. 


Leia mais matérias desta seção: Imprensa

Total de 1884 matérias | Página 1

13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)
11/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (32)
08/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (31)
06/11/2024 Maioria silenciosa sufoca agressão de porcos sociais
06/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (30)
04/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (29)
31/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (28)
29/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (27)
28/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (2)
25/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (1)
24/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (26)
21/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (25)
18/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (24)
16/10/2024 PAULINHO SERRA É PÉSSIMO VENCEDOR
15/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (23)
11/10/2024 MEIAS-VERDADES E MENTIRAS NA MIRA
09/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (22)
03/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (21)
01/10/2024 CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS