Entre os males que atrasam o desenvolvimento econômico brasileiro, talvez um dos mais perniciosos seja o histórico distanciamento entre empresas e escolas. Não há exagero em comparar a falta de convergência entre empresas e instituições de ensino à corrupção endêmica, à avassaladora carga tributária, à falta de senso de cidadania e outros obstáculos que impedem o ingresso definitivo do Brasil no Primeiro Mundo. Afinal, quando empresas e universidades não falam a mesma língua, quando a escola insiste em enfatizar teorias do passado enquanto empresas estão ávidas por práticas do futuro, a competitividade do País se vê seriamente comprometida. E sem competitividade que garanta investimentos não há como reduzir o passivo social.
Em meio ao quadro de tradicional desencaixe entre escolas e instituições de ensino, uma iniciativa entre Volkswagen do Brasil e Uni-A (Centro Universitário de Santo André) sinaliza ser completamente possível compatibilizar interesses habitualmente distantes. A maior montadora do País estabeleceu sistema de co-gestão educacional com uma das mais antigas instituições educacionais do Grande ABC para lapidar os recursos humanos de acordo com as especificidades do setor em que atua. Quase 300 trabalhadores do chão de fábrica fazem curso superior de Tecnologia em Processos de Produção. O programa foi configurado sob medida para a multinacional alemã segundo o conceito de universidade corporativa. O ineditismo da empreitada transforma a parceria em ferramenta obrigatória de benchmarking para executivos insatisfeitos com o ensino tradicional e educadores com dificuldades em sintonizar as demandas do mercado.
Para compreender melhor a parceria entre Volks e Uni-A é indispensável conhecer a conjuntura macroeconômica que envolvia a montadora no momento em que buscou apoio externo para formação dos recursos humanos. A abertura da economia e a instalação de uma dezena de novas automotivas durante os anos 90 obrigaram as indústrias automobilísticas mais antigas do País a se reinventar. Volkswagen, Ford, General Motors e Fiat tiveram de investir maciçamente em novas tecnologias de produção para aperfeiçoar produtos destinados a um consumidor que passou a ter referências internacionais.
A incorporação de novos equipamentos e processos para conseguir competitividade veio acompanhada pela necessidade de recursos humanos com novo perfil. Foi aí que a roda pegou a Volkswagen de São Bernardo, planta veterana da marca no País, instalada em 1957, e que agora se rejuvenesce sob o rigoroso programa Masterplan. A preparação de trabalhadores com muitos anos de casa não encontrava resposta nos cursos padronizados do sistema educacional. Por isso, executivos da área de Qualificação e Geração de Competências da montadora optaram por cursos sob medida.
A escolha da Uni-A, como foi batizada a antiga Faculdades Senador Fláquer ao ser convertida em centro universitário em janeiro de 2000, resultou de empatia de propósitos. A Volkswagen precisava de universidade que tivesse desprendimento para aceitar influências externas no conteúdo didático. Mais do que isso: buscava escola de nível superior com disposição para adequar curso oficial, reconhecido pelo Ministério da Educação, às particularidades do segmento automotivo, aos projetos da Volkswagen e, em nível ainda mais específico, à cultura corporativa. "Não nos interessava um curso padrão, mas a possibilidade de interagir com a escola para inserirmos no conteúdo conhecimentos de interesse da Volks" -- define o gerente de Qualificação e Geração de Competências Clébio Ribeiro, há 25 anos na empresa.
A disposição da Uni-A para se enquadrar aos novos desafios enfrentados pela Volkswagen não surpreende quem conhece a trajetória da instituição. As antigas Faculdades Senador Fláquer sempre priorizaram o mercado de trabalho. A origem em 1937 está ligada à formação de profissionais, com cursos de caligrafia e datilografia. "A parceria foi facilitada pela cultura da Uni-A" -- afirma Clébio Ribeiro.
O curso de Tecnologia em Processos de Produção foi lançado em fevereiro de 2000 para atender 190 trabalhadores. Outros 100 ingressaram em 2001. O curso de três anos atende às exigências do Ministério da Educação. Ao final, os empregados da Volkswagen agregarão diploma de Terceiro Grau na condição de tecnólogos. As aulas são desenvolvidas no Campus de Tecnologia da Uni-A, instalado na Vila Assunção, em Santo André. Os alunos enxergam as salas de aula e os laboratórios da Uni-A como extensão do ambiente de fábrica ao qual estão acostumados.
A projeção do ambiente produtivo nas instalações da universidade se dá em grande parte graças à participação do corpo docente, prevista no contrato de parceria. Os professores visitam sistematicamente a estamparia, a armação e os demais setores de produção da montadora para adequar as lições teóricas e práticas aos elementos corporativos que os alunos conhecem bem. Por trás da iniciativa está o conceito segundo o qual as teorias se tornam mais palatáveis quando estão relacionadas à prática do dia-a-dia. As visitas ao setor de estamparia, por exemplo, fornecem subsídios para aula sobre resistência de materiais. "As portas da fábrica estão sempre abertas aos professores" -- destaca Clébio Ribeiro. "Os empregados da manufatura são muito cinestésicos; necessitam que o conhecimento transmitido pelo professor seja aplicado na prática" -- afirma Marco Artur Constantino, diretor do Centro de Formação Profissional da Volkswagen.
A adequação do conteúdo das aulas às necessidades da Volkswagen não descaracterizou o curso porque as sugestões dos executivos foram reunidas nas disciplinas exigidas pelo Ministério da Educação. Na matéria Redação Técnica, por exemplo, os alunos aprimoram a capacidade de relacionamento e comunicação interpessoal. Em Sociologia, professores trabalham habilidades de negociação. Nos estágios iniciais da disciplina de Matemática Aplicada, foram incluídas revisões dos conceitos básicos vistos no Ensino Médio. Nos estágios mais adiantados da mesma disciplina enfatiza-se a estatística descritiva, que os empregados utilizam para monitorar o processo produtivo por meio de gráficos.
Os conhecimentos inseridos nas matérias reguladas pelo MEC emergiram de pesquisa da Volkswagen com profissionais relacionados à manufatura e líderes do setor produtivo.
A participação dos alunos em palestras de executivos da Volks também aproxima os empregados de novos referenciais produtivos. No último evento promovido nas instalações da universidade, Clébio Ribeiro falou sobre o papel do profissional no mundo globalizado. Na palestra anterior, outro executivo de ponta discorreu sobre a importância do design em novos produtos.
A mobilização da Volkswagen na abordagem prática e humanística está baseada na constatação de que conhecimentos técnicos deixaram de ser suficientes para a formação de um bom profissional. Funcionários meramente executores estão com os dias contados. O mundo moderno passou a exigir gente com capacidade de criar, vislumbrar oportunidades, catalisar interesses e se comunicar com eficiência. "Competência apenas sob o ponto de vista técnico e tecnológico já não é mais suficiente. O profissional precisa compreender de que forma seu trabalho interage com a companhia, ter postura ética adequada e mente aberta para a evolução contínua da qualidade, além de disposição ilimitada para mudanças e trabalho em equipe. Competências que geralmente não são trabalhadas nos cursos convencionais" -- afirma Clébio Ribeiro.
O diretor do Centro de Formação Profissional, Marco Artur Constantino, adianta que o trabalho de conclusão do curso consistirá de pesquisa e monografia sobre qualquer problema detectado na empresa. "A banca examinadora será formada por executivos da Volks, além de professores" -- destaca.
Revezamento de aulas -- A sensibilidade da Uni-A para assimilar inovações inerentes à dinâmica do setor automotivo explica muito da decisão da Volks em moldar uma universidade corporativa em parceria com a escola fundada por Valdemar Mattei. Mas não é tudo. Também pesou à favor da Uni-A a disposição de oferecer aulas idênticas em dois períodos do dia para atender alunos que trabalham em sistema de revezamento. "As aulas ministradas de manhã e à tarde têm até os mesmos professores" -- explica Jaime Guedes, diretor de Ensino da universidade.
O ensino em horário flexível exigido pela Volkswagen era adotado há dois anos pela Uni-A para atender grupos de funcionários de outras empresas. O sistema criado em 1998 para acolher 50 funcionários da Bridgestone Firestone contabiliza hoje 1.250 empregados de empresas do setor químico e metal-mecânico matriculados nos cursos de Tecnologia em Processos de Produção e Administração de Empresas. A sugestão de criar curso superior para atender quem trabalha em turnos partiu do norte-americano Mark Emkes, ex-presidente da Bridgestone Firestone do Brasil e atual presidente de Operações Internacionais das Américas. "Mark Emkes deu a sugestão ao ser convidado para participar da formatura de uma turma de alunos" -- lembra Jaime Guedes.
Além de colocar a didática em benefício dos conceitos valorizados pela Volkswagen, a Uni-A investiu R$ 1,2 milhão em recursos pedagógicos para o curso de Tecnologia em Processos de Produção. O montante inclui um minicentro de usinagem, três laboratórios de informática com 45 microcomputadores e um laboratório de CAD-CAM com 10 equipamentos, além de laboratórios de elétrica e de metrologia. Na sequencia, a universidade buscou parceria com outras empresas automotivas para otimizar a estrutura pedagógica montada no Campus de Tecnologia. General Motors e Mercedes-Benz também aderiram ao curso sem causar mal-estar ou constrangimento à Volkswagen.
"A luta pela qualificação dos recursos humanos no contexto globalizado não é da Volks, da GM ou da Mercedes. É de todos" -- afirma Clébio Ribeiro, da Volkswagen. "A diferença é que a Volks iniciou o processo com a Uni-A" -- ressalva. É curioso observar funcionários de corporações que se digladiam no mercado sentados lado a lado na sala de aula. "Todas as montadoras são beneficiadas" -- comenta Ronald Kyrmse, gerente de Educação e Treinamento da General Motors.
A parceria com a Volkswagen representa o ápice do relacionamento com o meio empresarial, mas não é o único exemplo de aproximação da Uni-A com o mercado. Além dos R$ 1,2 milhão traduzidos na estrutura voltada para a Volks e outras montadoras, a escola investiu R$ 300 mil em laboratórios para Tecnologia em Telecomunicações. O curso foi lançado no início de 2001 a pedido da Cooperativa de Empregados da Telefônica. São 10 estações telefônicas analógicas e duas estações digitais, entre outros recursos didáticos à disposição de mais de 100 alunos entre trabalhadores da cooperativa e da Net Globo Cabo.
O próximo curso para formação de tecnólogos na mira da universidade é o de Segurança do Trabalho, voltado para o Pólo Petroquímico de Capuava. Jaime Guedes comenta que já estabeleceu contato com diretores de empresas do pólo interessados em firmar parceria. O curso também seria oferecido em diversos horários para atender aos funcionários que trabalham em regime de revezamento.
Mais quatro prédios -- O crescimento da demanda por qualificação profissional leva a Uni-A a expandir o Campus de Tecnologia. O projeto prevê novos quatro prédios de seis pavimentos. "Estamos pleiteando empréstimo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para cobrir parte dos R$ 10 milhões necessários à construção" -- explica o pró-reitor financeiro Jacks Grinberg.
Jacks Grinberg afirma que a expansão do Campus de Tecnologia será nos mesmos moldes do novo bloco de salas de aula no centro de Santo André. Terá estilo americano, com uso de estruturas metálicas. O prédio erguido na Rua Abílio Soares, próximo à sede na Rua Senador Fláquer, tem 4,3 mil metros quadrados construídos em três pavimentos. São 20 salas de aula, além de anfiteatro para 450 pessoas com conclusão programada para julho deste ano. Metade dos R$ 2 milhões consumidos pelo empreendimento foi financiada pelo BNDES.
A Uni-A também se aproxima das empresas por meio de eficiente política de descontos aos funcionários. A escola estabeleceu convênio com cerca de 60 empresas e sindicatos. O chamariz é a mensalidade 10% menor, extensiva aos dependentes e válida para todos os cursos superiores: Administração, Comércio Exterior, Administração Hospitalar e Serviços de Saúde, Ciências Econômicas, Psicologia, Secretariado Executivo, Matemática, Processos de Produção, Condicionamento de Ar e Refrigeração Industrial, Microprocessadores e Automação Industrial e Telecomunicações, além de Letras, História, Geografia e Pedagogia. Os convênios respondem por quase 40% dos cinco mil alunos matriculados. "A aproximação com empresas e sindicatos permitiu crescer mesmo com a recente explosão na oferta de faculdades" -- comenta Jaime Guedes.
O perfil vanguardista refletido no relacionamento com montadoras e na política de descontos para adaptar-se a um País em que muitos jovens deixam de estudar por falta de condições financeiras leva a Uni-A a aderir ao ensino à distância. A universidade lançará curso de pós-graduação via Internet na área de Direito Civil e Penal até julho de 2001. Quem garante é o pró-reitor de Pós-Graduação Maurício Chermann, que também acumula a reitoria da Universidade Brás Cubas, em Mogi das Cruzes. "O curso é fruto de convênio com a Brás Cubas, que já obteve autorização dos órgãos competentes" -- comenta.
Maurício Chermann explica que os alunos acompanharão aulas de casa ou do escritório e só precisarão ir até o campus para fazer provas. Como cada um estudará de acordo com a própria disponibilidade de tempo, o prazo de conclusão previsto será flexível: no mínimo 12 e no máximo 24 meses.
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