Imprensa

O que faltou dizer
em casa e na escola

DANIEL LIMA - 05/05/2001

Percival ouvia generalidades dos pais ditos conservadores que não valia a pena se corromper por nada, que a vida pessoal e profissional tinha mais respeitabilidade se ele jamais mergulhasse no lodaçal das tramóias e dos acertos por baixo dos panos. Percival acreditava tanto nas premissas de idoneidade que não admitia sequer a possibilidade de ser abordado por um desses fazedores de mutretas que trafegam nos porões e nas cúpulas do poder. Seguia à risca os ensinamentos do velho pai aposentado depois de 35 anos de carreira bancária irretocável, dessas em que o dinheiro alheio que recheava os cofres gigantes não tinha outro sentido senão a prática secular de transações financeiras entre correntistas e instituição bancária. A mãe, que passou anos e anos cuidando da casa, do marido e dos filhos, apenas eventualmente engrossava o coro de honestidade. A família toda sabia distinguir conceitualmente o certo do errado. 

Quando menino e jovem, nem passava pela cabeça de Percival que honestidade seria ingrediente tão marcantemente forte no ranking de suas preocupações profissionais. Imaginava, na santa inocência dos primeiros anos da juventude, que bastaria ser competente para as portas lhe fossem abertas. Onde já se viu acreditar que alguém pudesse obstar sua contratação como assessor de um diretor financeiro de uma multinacional diante da informação preciosa de um headhunter? Sim, o caçador de talentos de uma empresa especializada em reforçar os quadros corporativos levou até o diretor financeiro a informação fatal: Percival é incorruptível. 

O próprio Percival teve acesso à papelada do headhunter. Está certo que foi uma inconfidência relatar o acontecido. A ética da atividade não permite escorregão. Ainda mais que é comum para esse headhunter ouvir o seguinte do diretor-financeiro que recrutava alguém com o talento de Percival: "Se o cara é tudo isso, então esqueça, porque aqui temos acertos com clientes e fornecedores que recomendam mais que confiança; exigem cumplicidade". 

Percival desconfiara tempos atrás de situações semelhantes em outras entrevistas preparadas por empresas de recrutamento de pessoal. Passou por todas as baterias possíveis dos testes técnicos. Fez tantas fichas e se submeteu a infindáveis exercícios de comprovação de habilidades que se tornou um bambambã no vestibular ao emprego. Empolgava o segundo escalão das empresas pretendentes, que aplicavam os primeiros testes. Invariavelmente o código que acompanhava sua ficha de candidato a executivo financeiro o identificava como fora de série. Espécie de Ronaldinho das finanças. Dava show de conhecimento técnico e cultural na área. Falava das crises asiática, mexicana, argentina e brasileira, entre tantas outras, como quem tivesse estado em cada país. Do euro, a moeda do consórcio de países europeus, sabia detalhes. O mais antigo e respeitado dólar era covardia. Num dos testes aos quais se submeteu, questionado sobre a relação da recessão norte-americana a bordo da Nasdaq e o crash de 1929, parecia ter reencarnado os principais financistas que acompanharam o primeiro episódio e incorporado os experts da Nova Economia. Contou em detalhes por que os Estados Unidos naufragaram no final dos anos 20 e por que estão se debatendo agora com os perigos da economia virtual. 

Não havia a menor dúvida de que Percival era brilhantíssimo. Mas o fantasma do pai bancário e da mãe dona-de-casa que vieram do Interior em busca de oportunidade de trabalho na metrópole marcou a alma do Percival. Enroscava nos testes de avaliação quando a sutileza dos requisitantes enveredava pelos caminhos tortuosos da flexibilidade de escrúpulos. Percival percebeu que não bastava saber tudo de finanças e de economia. Era indispensável somar à competência muita habilidade em maquiar ações que pudessem render trocados, muitos trocados, para a chefia. Percival não se conforma por não lhe terem mostrado mais a fundo nos bancos escolares e em casa até que ponto competência e subserviência andam juntos. Está detestando ser honesto. Talvez mande estrangular o pai, a mãe e os professores.


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