Engana-se quem pensa que já viu tudo no setor brasileiro de autopeças, que na última década presenciou o capital estrangeiro assumir o comando de 73,5% dos negócios. Mesmo tombando frente a guilhotina armada pela globalização, que fez sucumbir nomes sagrados como Cofap, Metal Leve, Albarus e Nakata, as fabricantes de componentes ainda vivem um período transitório e de muita instabilidade. "A revolução esperada ainda está longe de ser finalizada" -- avisa Carlos Mendez, diretor da Booz Allen & Hamilton em São Paulo, consultoria que tem feito inúmeros diagnósticos para o setor. Mendez é taxativo sobre o novo paradigma de montadoras e autopeças produzirem conjuntos integrados, dentro do conceito de sistemistas. Quem não investir, não ficará de pé, sentencia ele, com um complemento inapelável: "Investimentos não são uma opção, mas questão de sobrevivência".
O consultor reconhece que as pressões implacáveis das montadoras por qualidade e redução de custos asfixiam tanto as autopeças da linha de frente -- que submontam veículos dentro das automobilísticas -- quanto as de terceiro escalão nessa hierarquia, mas acha que não há alternativa. O ambiente competitivo é inerente à reestruturação da indústria e o sucesso do novo modelo automotivo -- de consórcios modulares e condomínios industriais -- depende da capacitação ao longo de toda a cadeia produtiva. Tanto que Carlos Mendez não duvida da capacidade de as autopeças atenderem as encomendas para a meta de o Brasil produzir 1,9 milhão de veículos este ano. "Capacidade produtiva existe. O que se questiona é a eficiência do setor" -- teme. O diretor da Booz Allen admite que a instabilidade econômica do passado desestimulou investimentos das autopeças brasileiras. Depois, com a chegada de novas plataformas e de dezenas de outros modelos, a baixa escala em cada veículo não tornou compensador injetar recursos em novos ferramentais. Há, entretanto, uma luz no final do túnel: quem fizer a lição de casa e sobreviver, emergirá maior e mais forte, a seu ver. Sobre o Grande ABC, que sedia quase um quinto das 400 autopeças brasileiras, Carlos Mendez vê como natural a migração de fábricas, seja para ficar junto das novas plantas automotivas ou devido ao custo da mão-de-obra. Por isso, vislumbra redução, mas não total desativação, das unidades produtivas no Grande ABC. "Pelo menos no curto e médio prazo" -- ressalva.
Além da redefinição do papel das autopeças de primeira linha, que passaram a ser sub-montadoras dentro das automobilísticas, qual é o fato novo no relacionamento do setor?
Carlos Mendez -- Embora os últimos anos tenham presenciado mudanças estruturais significativas neste segmento, a revolução esperada ainda está longe de ser finalizada. No nosso entender, a concretização, ou melhor, o sucesso deste novo modelo de negócio dependerá em grande parte do desenvolvimento de novas capacitações internas ao longo de toda a cadeia produtiva.
Desde o início dos anos 90, em resposta às várias mudanças iniciadas pelas montadoras, o segmento de componentes vem sofrendo um contínuo processo de consolidação, na busca frenética por redução de custos e ganhos de escala. Contudo, à medida que os fabricantes de componentes avançam na cadeia produtiva --assumindo responsabilidades não apenas pelo desenvolvimento de partes individuais, mas também pela especificação, planejamento e execução de todo o sistema, inclusive gerenciamento de riscos -- a habilidade das autopeças em desenvolverem capacitações até então inexistentes passa a ser o principal fator crítico de sucesso.
Essa é, porém, uma tarefa bastante desafiadora, principalmente se considerarmos o fato de que provavelmente as margens continuarão deprimidas ainda por um bom tempo, até que esse aumento de responsabilidades se traduza efetivamente em aumento de margens. Até o momento, isto não ocorreu. O aumento de responsabilidade trouxe, sim, mais dinheiro para as autopeças. Mas as necessidades de investimentos no desenvolvimento das competências necessárias para se operar dentro do novo modelo sistemista impediram que os ganhos se convertessem em margens.
Como está o cenário depois do furacão globalizante que engoliu autopeças nacionais tradicionais, a ponto de o capital estrangeiro dominar hoje 73.5% do setor? Segundo o vice-presidente do Sindipeças, Detlof Von Simson, 30% das 400 empresas do setor estão no limite da insolvência -- sobretudo aquelas no terceiro degrau da cadeia automotiva, sem relacionamento direto com as montadoras. O que prever de horizonte futuro para esse, digamos, terceiro escalão? Fechar, diversificar para outros nichos, continuar aliando-se a capital estrangeiro?
Carlos Mendez -- As empresas do terceiro escalão, por serem menores e menos globalizadas, enfrentam maiores dificuldades em conseguir recursos para os investimentos necessários, tanto em termos de desenvolvimento de produtos e processos quanto de melhorias operacionais. Primeiro, sua capacidade de geração de caixa é menor. Segundo, por serem regionais, elas dificilmente têm acesso a capital de investimento fora do país, ao contrário das grandes autopeças, que são empresas multinacionais. Esta maior dificuldade em conseguir recursos para investir torna as empresas do terceiro escalão mais vulneráveis aos impactos da restruturação do setor de autopeças. Por outro lado, a cadeia automotiva como um todo não pode prescindir do terceiro escalão. Dessa forma, não diria ser este apenas um problema localizado, mas sim de toda a cadeia.
Quanto às possíveis alternativas para as empresas deste escalão, poder-se-ia imaginar serem elas o alvo da próxima onda de globalização da indústria. Todavia, as probabilidades são baixas, uma vez que a maioria dos "players" neste elo da cadeia, independentemente do país, são empresas relativamente pequenas, com pouca vocação para o papel de consolidador. Portanto, a busca de capital através da consolidação horizontal nos parece pouco provável. Uma outra opção, obviamente, seria a consolidação vertical -- com as grandes empresas do segundo escalão adquirindo as pequenas do terceiro. Aqui, novamente, as probabilidades deixam a desejar. Certamente, os problemas do terceiro escalão não são os mesmos em todos os países, e dificilmente as grandes autopeças teriam interesse em verticalizar ao longo da cadeia em apenas algumas regiões, e não em outras.
Por outro lado, observa-se que este elo da cadeia é, ainda hoje no Brasil, dominado por empresas de cunho familiar, onde as políticas de processos administrativos pouco evoluíram na busca da eficiência. Nossa visão é a de que a profissionalização dessas empresas, com conseqüente aumento da eficiência, poderá promover o aumento de lucratividade do setor, oferecendo, assim, uma solução com melhores chances de sucesso. Vale ressaltar que, no caso do primeiro e segundo escalões, as chances de sucesso de um "player" regional e solitário são comparativamente menores, devido à maior importância da escala para amortização dos altos custos de investimento em tecnologia. No caso do terceiro escalão, esta questão, embora importante, é menos relevante, e é possível que a simples melhoria da gestão seja em si suficiente para a recuperação das margens.
Ao entrarem no regime de sistemistas (ou sub-montadoras) com o bônus da co-fabricação de veículos, as grandes autopeças acabaram assumindo também o ônus das negociações com fornecedores. Veja o novo embate que se arma com produtores de aço. Foi um bom ou mau negócio essa parceria, já que as autopeças estão assumindo papel de vilão que até recentemente cabia às montadoras-famosas pela fama de serem exigentes na qualidade e duras nas concessões de aumento? Como tem sido o tête-à-tête entre grandes e pequenas autopeças?
Carlos Mendez -- A questão não é se este é ou não um bom negócio. O fato é que este é o modelo operacional atualmente vigente na indústria, e a princípio traz benefícios para a cadeia como um todo. Sob o ponto de vista do consumidor, por exemplo, pode-se afirmar que ele tem sido um bom negócio, uma vez que custos estão sendo retirados da cadeia e os benefícios repassados ao consumidor final. Na maioria dos casos, os preços dos produtos mantiveram-se relativamente constantes, apesar do significativo aumento de conteúdo tecnológico dos veículos, incluindo a incorporação de itens de segurança, melhorias de desempenho, e projetos de redução de peso. Obviamente, este aumento de conteúdo tecnológico dos veículos não se fez sem investimentos, e certamente os custos foram significativamente impactados. O modelo atual, por ser mais eficiente, impediu o repasse dos custos decorrentes dos avanços tecnológicos ao consumidor final.
Quanto ao relacionamento entre os grandes e pequenos fabricantes de componentes, este é um assunto realmente delicado. Embora as grandes autopeças possuam indiscutível poder econômico, elas não podem destruir as pequenas, uma vez que delas também dependem. Desta forma, e levando-se em conta o elevado nível de insolvência das empresas do setor, principalmente as do terceiro escalão, pode-se afirmar que a presente situação não deverá perdurar por muito tempo. É chegado o momento de se pensar em um novo modelo de negócio e relacionamento para tais empresas, de forma a garantir o crescimento sustentável do setor como um todo.
Há consenso de que montadoras e autopeças partilhando áreas em just-in-time e despesas de infra-estrutura tornariam o processo de produção pelo menos 25% mais barato. Esse número foi muito comentado em relação ao Celta da GM, em Gravataí. Quem está se apropriando desse novo conceito de linhas de montagem enxutas e em co-parceria, já que os preço dos veículos não barateiam?
Carlos Mendez -- Na verdade, todos estão se beneficiando desse novo modelo. O fato de os preços ao consumidor permanecerem constantes não significa necessariamente que o modelo atual não seja mais eficiente, tampouco que os benefícios não estejam sendo repassados ao longo da cadeia. Na verdade, é exatamente o contrário. Conforme já mencionado anteriormente, é justamente esta maior eficiência do modelo que tem impedido, na maioria das vezes, o repasse ao consumidor de custos decorrentes do aumento de conteúdo tecnológico dos veículos.
No caso do Celta, em particular, constata-se que ele é de fato mais barato que o seu antecessor -- o Corsa -- embora não exatamente 25%. Portanto, é lógico pensar que parte dos ganhos tenha sido apropriado tanto pela montadora quanto pelas autopeças envolvidas no consórcio. Vale ainda ressaltar que o projeto do Celta exigiu investimentos de ambas as partes para que se tornasse realidade. Dessa forma, o aumento das margens da montadora e das autopeças se justifica em função da necessidade de recuperação dos investimentos realizados.
Pelo menos 70% do PIB da Grande ABC estão vinculados diretamente às cadeias automotiva e petroquímica/plástica (esta última também enlaçando dezenas de autopeças). Dentro da histórica descapitalização decorrente de dificuldades de repassar aumentos de custos para as montadoras, o senhor poderia detalhar melhor sua colocação de que as autopeças devem investir cada vez mais, com retornos menores? Levantamento de Serasa indica que a rentabilidade das vendas do setor foi 5% negativa em 1998, -3% em 1999 e zero em 2000.
Carlos Mendez -- A situação atual deve ser analisada em contexto, considerando-se o processo evolutivo da indústria como um todo. Indiscutivelmente, quem não investir não sobreviverá. Obviamente, os investimentos aqui mencionados são de várias dimensões: vão desde a compra de outras empresas até investimentos em novos produtos e processos propriamente ditos. O importante, no entanto, é ressaltar que tais investimentos não são uma opção, mas sim uma questão de sobrevivência. Quem não investir, seja de uma forma ou de outra, não terá condições de competir e certamente sucumbirá.
Toda e qualquer empresa que quiser permanecer no jogo deverá, portanto, continuar a investir, ainda que as margens atuais pareçam não justificar tal esforço. Hoje as margens são baixas em virtude do acirramento do ambiente competitivo inerente ao próprio processo de reestruturação da indústria. No longo prazo, porém, os sobreviventes deste processo emergirão ainda maiores e mais fortes, e seu maior poder de negociação junto às montadoras lhes garantirá margens melhores, capazes inclusive de justificar os altos investimentos feitos hoje. Vivemos um período transitório e de muita instabilidade, mas que tende a se resolver no médio e longo prazo. Aqueles que sobreviverem terão oportunidade de conseguir um retorno justo sobre seus investimentos, ainda que com certo atraso.
Qual o desenlace para a Grande ABC da desconcentração das plantas das montadoras sob o novo conceito de consórcios modulares e sistemistas nos seus quintais? Chegou-se a prever que, pelos custos mais baratos de mão-de-obra e infra-estrutura, as montadoras arrastariam as matrizes das autopeças para outras localidades e o ABC teria apenas armazéns distribuidores.
Carlos Mendez -- É preciso diferenciar local de produção de local de integração. Nem todo investimento feito próximo às novas instalações das montadoras foram e serão necessariamente de produção. É pouco provável que a produção do ABC seja inteiramente transferida para outro local, apesar de sua mão-de-obra reconhecidamente mais cara. Vários componentes continuarão a ser produzidos onde já existe capacidade instalada. Veja o caso da TRW, por exemplo. A empresa hoje produz direções em sua fábrica no ABC, mas leva parte delas para a unidade de Betim, onde as mesmas são integradas antes de serem entregues à FIAT. É bastante provável, portanto, que a TRW mantenha sua unidade produtiva no ABC, mesmo porque ela também fornece peças para a WV em São Paulo. Por outro lado, poderá haver certa redução no número de unidades produtivas no ABC -- não apenas porque as montadoras estão se deslocando para outras regiões do país, mas também em razão do alto custo da mão-de-obra em São Paulo. Não obstante, várias unidades continuarão a operar no Grande ABC, pelo menos no curto e médio prazo.
O último indicador do Sindipeças sobre ociosidade mostra que as associadas trabalham a um ritmo de 80%. Seria o melhor dos mundos não fosse a realidade de que (apagões à parte) há um gargalo de produção pela frente devido à falta de fôlego das autopeças para acompanhar o derrame de US$ 20 bilhões de investimentos das montadoras nos últimos anos. Como o senhor analisa esse limite? A meta de as automobilísticas produzirem 1,9 milhão de unidades em 2001 está comprometida? Vamos continuar com déficit na balança comercial setorial, isto é, importando mais do que exportando?
Carlos Mendez -- Realmente o setor de autopeças não tem sido capaz de acompanhar o ritmo das montadoras. Obviamente, houve investimento, porém aquém do desejado. Acontece que o aumento no número de plataformas e modelos diferentes promoveu redução da escala média de produção por plataforma. Isso, de certa forma, limitou a capacidade de as autopeças investirem, uma vez que as deseconomias de escala criadas pela multiplicidade de modelos constituem um grande obstáculo à recuperação destes investimentos. Some-se a isso o fato de o Brasil ainda ser um mercado altamente volátil, o que aumenta o risco dos investimentos tornando-os menos atrativos, principalmente para empresas que, na média, são menos capitalizadas que as montadoras.
A meta de produção de 1,9 milhão de veículos para este ano não está necessariamente vinculada aos investimentos realizados. Na verdade, o cumprimento dessa meta depende muito mais da capacidade da demanda interna do que de qualquer outro fator. A questão energética, por exemplo, poderá sim comprometer esta meta -- não por questões relativas à capacidade produtiva, mas simplesmente porque o consumidor poderá reduzir suas compras. Veja bem, capacidade produtiva existe. O que não houve foram investimentos em eficiência e gestão operacional. O setor hoje, como um todo, possui capacidade produtiva suficiente para cumprir o que desejam as montadoras. O que se questiona é sua eficiência.
Bottlenecks (gargalos) na cadeia sempre existiram e continuarão a existir. Tudo depende do setor. Alguns têm e sempre tiveram problemas; outros não. Há segmentos de autopeças que trabalharam e fizeram os investimentos necessários para garantir a meta de 1,9 a dois milhões de veículos já este ano. Há, ainda, aqueles em que os investimentos não seriam feitos aqui de qualquer forma, devido à falta de escala mínima de produção. E há, obviamente, setores em que os investimentos necessários deveriam ter sido feitos, mas não o foram. Estes, certamente, terão que importar, ou melhor, continuar a importar, pois a maioria já vinha sendo tradicionalmente importada. A balança comercial do setor, ao meu ver, deverá ser mais influenciada pela questão cambial do que pela produção propriamente dita. A desvalorização cambial tende a impactar os preços, que poderão subir forçando uma queda na demanda interna. Dessa forma, é até possível que a balança se torne mais favorável. Vale lembrar que a mudança do câmbio em 1999 trouxe aumento de competitividade para o produto nacional que, infelizmente, ainda não foi traduzida em novos programas de exportação.
Quais as possibilidades de termos um carro com 100% de conteúdo nacional? Temos tecnologia e certificações à altura, sobretudo num setor que considera a ISO café-pequeno e criou selos como QS, VDA, EAQF, AVSQ e todo um mundo de normas e exigências?
Carlos Mendez -- Na realidade, nunca. Teoricamente, até que seria possível, mas o produto dificilmente seria competitivo. Se o Brasil quisesse hoje produzir o Fusca com 100% de conteúdo nacional, até poderia fazê-lo. Entretanto, o modelo certamente não incorporaria as inovações tecnológicas dos veículos mais recentes, sem mencionar os elevados custos de fabricação. Veja bem, nenhum lugar do mundo pode se dar ao luxo de ter hoje um carro com 100% de conteúdo local; nem mesmo os países mais desenvolvidos. Trata-se de uma limitação estrutural da indústria relacionada não só a questões tecnológicas e de escala, mas também às atuais práticas de global sourcing (compras globais).
Quanto à qualidade da indústria nacional, existem hoje certificações para alguns componentes e peças -- certamente não para todos. Todavia, em uma indústria de tal complexidade é praticamente impossível conseguir fazer de tudo bem feito. O Brasil tem indiscutível competência tecnológica e qualidade em vários setores; em outros, naturalmente, não possuímos nem um nem outro. Há ainda setores em que a competitividade é limitada não pela tecnologia ou qualidade, mas sim pela falta de escala. E há no País fábricas que possuem todas as qualificações existentes, mesmo porque muitas qualificações são na verdade equivalentes.
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