A mudança de comando da Fris-Moldu-Car anunciada no mês passado tem significado que ultrapassa os R$ 30 milhões que essa autopeças de São Bernardo planeja faturar este ano e os 400 empregos que mantém. Por trás de uma negociação que se caracterizou como operação salvamento aparentemente bem-sucedida, não há como esconder uma dura realidade: o setor automotivo virou campo de batalha por redução de custos, melhoria de qualidade, investimentos em novas tecnologias, em processos e em gestão, além de treinamento e reciclagem de mão-de-obra. E isso atinge em cheio a qualidade de vida do Grande ABC.
A Fris-Moldu-Car tem a cara, o coração e as vísceras das autopeças criadas no Grande ABC a partir dos anos 50 do último século para abastecer as grandes montadoras que se instalaram principalmente em São Bernardo. Do universo de 600 empresas que fazem parte do setor no País, quase 20% estão no Grande ABC, território cuja economia depende, direta e indiretamente, em cerca de 70% da cadeia automotiva. Por isso, a corda no pescoço das autopeças significa também ameaça de asfixia da região, como já prova um conjunto de dados estatísticos e práticos.
O sucesso da Fris-Moldu-Car seguido de escorregões a partir da abertura dos portos retrata com fidelidade absoluta o quadro em que se encontra a maioria das pequenas e médias indústrias do setor na região. Longe dos holofotes concentrados nas grandes montadoras de veículos e das principais sistemistas, as pequenas e médias autopeças lideraram o rebaixamento do nível de emprego formal nos últimos 10 anos no Grande ABC. Não foram poucos os empregos que desapareceram das fábricas. A última conta chegou a estratosféricas 125 mil carteiras de trabalho guilhotinadas.
A força destrutiva da derrubada das alíquotas de importação em proporção muito maior que a aplicada nas montadoras só é comparável aos estragos de um câmbio supervalorizado logo após a implantação do Plano Real e que provocou desarranjo na balança comercial. O ritual obedeceu cronologia e linearidade suicidas de medidas destrambelhadas do governo federal.
A Fris-Moldu-Car de ainda 400 trabalhadores que lhe custam insuportáveis 30% do faturamento bruto é exemplar dos efeitos danosos do impacto que atingiu e colocou o segmento de pernas abertas para a invasão de grupos internacionais. A empresa passou num piscar de olhos do comodista congelamento do mercado cativo para o superaquecimento avassalador do mercado aberto. Só poderia mesmo ser vítima de crônica pneumonia estrutural, financeira e econômica. A realidade regional de galpões industriais desocupados compõe coreografia de dominós em queda. A Fris-Moldu-Car conseguiu safar-se, mas há muitas outras autopeças cujos dirigentes rezam para encontrar compradores.
A dura realidade é que as autopeças estão com a corda cada vez mais próxima do pescoço. É irreversível a tendência internacional de que sobrará cada vez menos players na cadeia automotiva. Tanto quanto a realidade de que esses pretensos donos dos uniformes serão cada vez mais empresas internacionais, que já comandam 70% das autopeças brasileiras. Afinal, a bola do jogo está com as montadoras igualmente multinacionais, que disputam ponto a ponto o mercado do primeiro, do segundo e do terceiro objeto de desejo do homem -- isto é, o carro usado, o carro nacional zero quilômetro e o carro importado.
Força-tarefa -- Se o Grande ABC quiser levar a sério todas as estatísticas sobre as dificuldades socioeconômicas que abalam seu orgulho, de cara deveria estruturar uma força-tarefa institucional para harmonizar no que fosse possível os solavancos dessas transformações que atingem em cheio a qualidade de vida regional. Sem contar que o já histórico distanciamento do empresariado industrial das questões políticas, institucionais e culturais da região poderá ser substituído por descaso absoluto se os investidores internacionais não forem convertidos em parceiros de projetos para recuperar e descobrir novas potencialidades regionais. O mais sensato é não esperar demais dos novos e escassos empreendedores automotivos na região, porque eles vivem uma guerra de guerrilhas no mercado aberto.
A Fris-Moldu-Car expõe sem mistificação e retoque a realidade das pequenas e médias indústrias da região. Tanto os ex-executivos, contratados em novembro do ano passado, como os atuais, chamados para o comando da empresa que passou de mãos familiares para um grupo nacional, chegaram com a mesma missão: evitar que a empresa batesse com as 10. A saúde financeira da Fris-Moldu-Car exige tratamento de UTI e passa tanto pelo oxigênio do corte de pessoal como pela transfusão de sangue de investimentos tecnológicos e ações voltadas para novas referências de gestão administrativa, financeira e industrial.
A Fris-Moldu-Car vai passar por terapêutica radical para tentar superar o estado catatônico em que se encontra. Menos mal, porque tantas outras empresas de autopeças da região não conseguiram encontrar socorro na hora desejada. A Fris-Moldu-Car era um doente terminal que agora tem possibilidade de superar debilidades crônicas.
A sobrevida que a Fris-Moldu-Car recebeu nos nove meses de gestão ainda atrelada ao modelo familiar com que foi concebida há 42 anos se deve a um trio de executivos. Sem o superintendente Nelson Tadeu Pereira, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico de Santo André e ex-executivo da Rhodia, sem o administrador de empresas Jean Marie Henry, ex-executivo da Solvay do Brasil, e sem o diretor financeiro Mauro Caratin, especialista em gestão familiar, a Fris-Moldu-Car não teria sido passada ao controle acionário da CGE -- um grupo nacional que faturou R$ 60 milhões no ano passado em cinco empresas de autopeças espalhadas por Betim (MG), Guarulhos, Taubaté e Mauá, em São Paulo.
O relato dos ex-executivos da Fris-Moldu-Car instala os nove meses numa cronologia de morte anunciada -- e felizmente superada. Eles se revezam na exposição dos fatos não só porque reproduzem a forma compartilhada com que conduziram a empresa desde novembro do ano passado, mas principalmente porque dão a impressão de que ainda precisam recuperar o fôlego perdido diante de tantas preocupações. Ainda mais que, cúmulo dos cúmulos, constituíram-se em maridos traídos, porque foram simplesmente comunicados da transferência acionária.
É natural que os três ex-executivos estejam contrariados e esgotados. Ou é possível considerar que faz bem para a carreira de qualquer gestor contabilizar a possibilidade de se materializar o necrológio de um negócio em seu portfólio profissional, mesmo que tenham sido contratados num momento em que só faltava mesmo aplicar a extrema-unção? "Quantas noites perdi o sono" -- afirma Nelson Tadeu Pereira com sua costumeira tranquilidade, mas indisfarçável semblante de alívio.
O pior de tudo no relato dos ex-executivos é que a possível salvação da Fris-Moldu-Car não reduz praticamente em nada o comprometimento do genoma industrial do pequeno e do médio negócio de autopeças no Grande ABC e que, por isso mesmo, eles contam com novas propostas de pronto-socorro. Quem restringir a situação da Fris-Moldu-Car a exemplo isolado está em situação mais crítica do que aqueles que não suportam samba, porque além de ruim da cabeça e doente do pé certamente não têm alma.
A Fris-Moldu-Car poderia estar entre os 65% de empresas de pequeno e médio porte que pesquisa coordenada pela Agência de Desenvolvimento Econômico constatou não terem investido nem em processos nem em produtos entre 1995 e 1996. Nesse período a economia da região passava por turbilhão ainda mais intenso que o atual na área automotiva. O problema da pesquisa é que o professor João Batista Pamplona, executivo da Agência, preferiu enaltecer os 35% de empresas que investiram em processos e produtos para tentar enriquecer currículo de falso protetor do Grande ABC.
Nelson Tadeu Pereira, Jean Marie Henry e Mauro Caratin fazem coro: quando assumiram a Fris-Moldu-Car em novembro do ano passado a empresa estava tecnicamente falida. As perdas acumuladas nos últimos cinco anos de gestão exclusivamente familiar representavam R$ 30 milhões do total de R$ 50 milhões do buraco vermelho.
O endividamento de curto prazo junto a bancos e fornecedores, de R$ 5 milhões, representava dois meses de faturamento bruto. O lado irônico da situação é que a demanda por produtos -- frisos e molduras para as quatro maiores montadoras brasileiras, principalmente General Motors e Fiat -- estava aquecida, mas a produção sofria de estrangulamento por falta de equipamentos e ferramental. Quando deixaram a empresa nove meses depois, a situação se revertera: o mercado contraiu-se e a ociosidade chegava a 50%. Uma ciclotimia típica do setor automotivo no Brasil igualmente ciclotímico.
Além de dever na praça -- e de emitir duplicatas sem lastro que comprometiam a relação com os credores de forma insuportável --, a Fris-Moldu-Car precisava investir R$ 5 milhões para modernizar-se e instrumentalizar-se na sintonia das exigências de suprimento das montadoras. O quadro de gerenciamento administrativo, financeiro e de relações comerciais agravava-se quando se descia ainda mais ao chão de fábrica. A área de produção concentrava a maior parte dos 470 funcionários e consumia 35% do faturamento bruto. Parâmetros de produtividade não permitem que sejam mais de 200 colaboradores diretos.
Baixa escolaridade -- Gente demais no chão de fábrica e também em outros setores da empresa não era o único entrave nos recursos humanos. Mais de 50% continuam carentes de Ensino Fundamental. Quem se espantar com essa realidade porque cultivou a mentira corporativo-sindical de que a mão-de-obra do Grande ABC é qualificada, vai cair de costas diante de novo dado: "Oito dos 11 chefes do setor de produção não tinham o Primário" -- relata Nelson Tadeu Pereira.
O perfil educacional da Fris-Moldu-Car também não é exceção. Trata-se de regra nas pequenas e médias indústrias nacionais de autopeças. As montadoras investiram fortemente em qualificação profissional desde que Fernando Collor abriu as porteiras à concorrência internacional, mas as descapitalizadas autopeças nacionais não têm recursos financeiros para atualização tecnológica combinada com qualificação funcional. Entre montadoras e autopeças existe uma espécie de Belíndia técnico-operacional.
O grande entrave nas atividades do trio chamado no final do ano passado para salvar a Fris-Moldu-Car tem nome e sobrenome estranho: Andonios Ikonomidis. "Um verdadeiro presente de grego" -- ironiza Jean Marie Henry, com o assentimento dos outros dois ex-executivos. Andonios representava a família dos proprietários da empresa atuando como diretor industrial.
"O erro dos nossos antecessores foi ter permitido que o Andonios continuasse na empresa e mantivesse a área industrial como um gueto" -- afirma Luiz Carlos dos Santos, um dos novos executivos da Fris-Moldu-Car, juntamente com Eduardo Campofiorito, que atua na área industrial, e César Campofiorito, do setor comercial, ambos da família do grupo nacional CGE que resolveu acrescentar a empresa de São Bernardo ao conjunto de empreendimentos que tem o setor automotivo como responsável por 95% das receitas.
O diagnóstico confere com os sentimentos de Nelson Tadeu Pereira, Jean Marie Henry e Mauro Caratin. É praxe que a primeira medida estratégica para colocar ordem na casa quando se assume uma indústria é substituir o efetivo e a metodologia das áreas de portaria e segurança, por onde velhos vícios costumam provocar grandes desfalques orçamentários. O representante da família de antigos acionistas da Fris-Moldu-Car não permitiu a alteração. Andonios prefere não manifestar-se sobre a avaliação dos ex-dirigentes e também de um dos executivos contratadas pelo Grupo CGE. "Não tenho nada a dizer" -- afirmou.
Engenharia sem engenheiro -- A crônica de uma falência anunciada e superada quase que milagrosamente conta que Andonios Ikonomidis era um perfeito exemplar de paternalismo. Mexer no quadro de trabalhadores? Nem pensar. Havia fortes relações extra-profissionais que manchavam o desempenho da empresa. "A divisão de engenharia não tinha um único engenheiro. Quem comandava era um técnico operador" -- comenta Nelson Tadeu Pereira. Dá para imaginar o que significa tamanha distorção numa empresa que atende diretamente a algumas das principais montadoras do mundo, cujos padrões de atualização tecnológica estão sintonizados com a disputa pelo consumidor?
Mas tudo isso é pouco perto da fragmentação diretiva que apresentava o evidente desbalanceamento de três executivos contratados de um lado -- com atribuições de gerenciamento administrativo, fiscal e do negócio propriamente dito -- e um dissidente de outro. É algo tão contraproducente como planejar um vôo sem que o piloto se predisponha a atender o roteiro traçado.
Luiz Carlos Santos, um dos novos executivos da empresa, garante que agora o problema está solucionado porque César Campofiorito é especialista em engenharia de produção. "Se não tivéssemos chegado, a Fris teria desaparecido em 15 dias. Agora já estamos comprando novos equipamentos" -- afirma.
Como se observa, a Fris-Moldu-Car escapou duas vezes da falência em menos de um ano. Nelson Tadeu Pereira, Mauro Caratini e Jean Marie Henry usam expressões fortes para explicar o que vivenciaram a partir do final do ano passado, quando herdeiros da família dos fundadores Demetre Jean Kotrozinis, Jean Demetre e o filho Efthimios Joanis Ikonomidis, os contrataram para a operação de salvamento. "Dirigiam a fábrica pela fábrica", "Fizemos vôo cego", "Não tínhamos custo de produção", "As peças que mais vendiam davam os maiores prejuízos". As frases explodem em sequência e traduzem, cada interlocutor a seu modo, o desencanto de dirigir um negócio de comando fragmentado.
Absolutamente desorganizada internamente ao logo de muitos anos de administração familiar, a Fris-Moldu-Car não difere do quadro da maioria das autopeças de pequeno e médio porte. O agravante é que do outro lado do relacionamento comercial estavam exclusivamente as maiores montadoras do País, premidas pelas exigências industriais de produção enxuta, qualidade total, retrabalho mínimo, preços magérrimos, margens de rentabilidade esquálidas. "Quando assumimos a empresa, o prejuízo operacional mensal atingia R$ 400 mil. Em maio último conseguimos equilibrar o jogo" -- afirma Nelson Tadeu Pereira. "O grande problema, problema insuperável, era a falta de capital de giro" -- completa.
O equilíbrio, conta Mauro Caratin, só foi possível porque a Fris-Moldu-Car praticamente virou problemaço para as montadoras. Fornecedora estratégica de frisos e guarnições, a empresa não poderia simplesmente desaparecer sem deixar marcas profundas na cadeia de produção. A inadimplência com fornecedores de matérias-primas levou à supressão do abastecimento, que só foi superada porque as próprias montadoras assumiram o controle e a responsabilidade do fluxo de entrega de matéria-prima e de recebimento dos produtos. Uma explícita intervenção temporária até que se encontrasse a melhor saída, porque cada vez mais a vocação das automobilísticas é transferir para sistemistas e subsistemistas a responsabilidade pela operação de espaços mais amplos das atividades clássicas de chão de fábrica. O próprio conceito de chão de fábrica ganhou flexibilidade. As autopeças passaram a compartilhar a produção com unidades coladas à linha de montagem das montadoras. É assim com a fábrica da General Motors em Gravataí, será assim com a Ford na Bahia, está se consumando assim com a reformulação da planta da Volkswagen em São Bernardo, entre vários modelos semelhantes que se inspiraram no chamado consórcio modular que a fábrica de caminhões da Volkswagen implantou em Resende, no Rio de Janeiro.
A situação caótica a que chegou a Fris-Moldu-Car só não foi pior porque Nelson Tadeu Pereira, Mauro Caratin e Jean Marie Henry usaram o prestígio pessoal para negociar passivos bancários, escalonando-os na medida do possível e submetendo o pagamento ao monitoramento da produção. Os empréstimos bancários renovados se tornaram espécie de venda dos produtos em consignação.
Além dos desatinos próprios de uma empresa que não se preparou para o futuro, que achou que o ambiente internacional de negócios jamais se alteraria a ponto de transformar em pó quem não enxergasse a diferença entre mercado cativo e livre mercado, a Fris-Moldu-Car carregou nos últimos anos grande defasagem de preços. Nelson Tadeu Pereira afirma que a correção de valores foi acelerada este ano com base em muita negociação e transparência nas planilhas de custos. O aumento médio dos preços dos frisos e molduras para as montadoras atingiu 18% até que o Grupo CGE adquirisse a Fris-Moldu-Car. Nos cinco anos que antecederam a chegada dos três executivos, segundo a planilha que exibem, os repasses não passaram de 36%.
Pela contabilidade de Nelson Tadeu Pereira, quando a Fris-Moldu-Car foi negociada com o Grupo CGE a desatualização dos preços chegava a 25%. Isso, entretanto, não significa que cabe exclusivamente às montadoras a responsabilidade pela diferença dos custos industriais da Fris-Moldu-Car e os preços definidos para o suprimento da linha de produção. Tanto Nelson quanto Mauro e Henry concordam que o combate à série de improdutividades internas da empresa, desde o inchaço do quadro de trabalhadores passando pelo isolamento estratégico da produção, entre outros aspectos, reduziria à metade a diferença entre o preço pago pelas peças e o preço justo.
O enquadramento de metade do passivo total da Fris-Moldu-Car no regulamento do Refis também se consolidou como operação meia-sola, reconhecem os três executivos. As dívidas relacionadas com a inadimplência de recolhimento do INSS, Imposto de Renda, Fundo de Garantia e IPI foram escalonadas conforme determina a legislação e passaram a representar apenas uma fração do faturamento bruto. "O problema do Refis, e isso é uma realidade que vale para praticamente todas as empresas que aderiram ao programa, é que os novos compromissos fiscais devem ser cumpridos rigorosamente em dia, sob pena de desenquadramento" -- afirma Nelson Tadeu Pereira. O que isso significa? Que empresas como a Fris-Moldu-Car, que não conseguiam pagar em dia as contribuições federais, passaram, a partir da adesão ao Refis, a ter de quitar pontualmente a excessiva carga tributária, que no Brasil alcança 34% do PIB (Produto Interno Bruto).
Por essas e outras obviedades que colocavam a Fris-Moldu-Car entre a cruz de um passivo financeiro apenas parcialmente alongado e a caldeirinha de evidentes disfuncionalidades estruturais, seria mesmo esperar demais que Nelson Tadeu Pereira, Mauro Caratin e Jean Henry Marie Jean se travestissem de salvadores da pátria. Ainda mais que sentiam em seus calcanhares um herdeiro nada interessado em participar da reestruturação industrial implacavelmente inadiável.
Para o Grupo CGE tudo isso também é complicado, como confessa o executivo Luiz Carlos Santos, preocupadíssimo com o relacionamento cada vez mais opressivo com as montadoras. Ele reconhece que as pressões internacionais que transformam o setor automotivo na área mais disputada do mundo também devem ser levadas em conta para justificar o aperto que sofre das montadoras instaladas no País. Mas, como o poder de fogo do Grupo CGE é superior ao dos herdeiros que estrangulavam a ação corporativa de executivos contratados, Luiz Carlos Santos afirma que o equacionamento do passivo tributário já está em andamento. "Além de termos um especialista em engenharia de produção industrial na área de autopeças, que faz parte da família dos investidores, nossa primeira medida foi trocar a segurança e a portaria" -- afirma, para inveja dos executivos que o antecederam.
Custo trabalhista -- A redução do quadro de funcionários é medida que será tomada sem hesitação, segundo o executivo que dirige a área de recursos humanos. Há incidência de equívocos acumulados que exige consertos. Há salários desconectados da média do mercado por força da baixa rotatividade dos trabalhadores. Nesse ponto, Nelson Tadeu Pereira fez um relatório sucinto mas emblemático para explicar os insuportáveis 30% da folha de pagamentos.
A Fris-Moldu-Car é o retrato das autopeças do Grande ABC que ao longo dos anos foram tratadas nas negociações trabalhistas com o mesmo peso das montadoras de veículos. Com isso, agregaram aos salários e aos encargos sociais previstos na legislação getuliana uma série do que se convencionou chamar de conquistas históricas dos sindicalistas. Envolve desde assistência médica privada até cesta básica, de vale-transporte a refeição. Um ferramenteiro que recebe contra-cheque de R$ 1.315 custa efetivamente R$ 2.414 para a empresa. Mais que o dobro da média dos valores pagos no Interior de São Paulo, para onde rumou boa parte das pequenas e médias empresas do Grande ABC que conseguiram resistir à falência ou concordata.
Essa contabilidade não deve ser interpretada exclusivamente sob a ótica simplista de que o sindicalismo do Grande ABC implantou um modelo de capitalismo inviável devido aos custos elevados da mão-de-obra. Se é verdade que esse fato existe e faz muita diferença na hora de investidores decidirem onde instalar plantas industriais, não é menos correto defender que se trata de salários medianos para as necessidades básicas de consumo, educação, lazer, saúde e conforto do brasileiro. O problema todo é que a guerra fiscal proporcionou a descentralização industrial para regiões que não sofrem com a sobreposição de custos típicos de áreas metropolitanas -- o que economistas chamam de deseconomias sistêmicas.
A saída produzida a toque de caixa pela maioria das empresas com capacidade de debelar passivos financeiros e tributários e com musculatura para investimentos foi dar densidade à automação no chão de fábrica e elevar competências nas áreas de suporte. Ou seja: cortaram substancialmente a relação entre faturamento e folha de pagamentos com funcionários, além de incrementarem processos de terceirizações em áreas menos nobres. A Fris-Moldu-Car, como tantas outras empresas familiares, não fez nem a primeira nem a segunda tarefa. Pior ainda, segundo Luiz Carlos Santos: adotou a terceira variável como asfixiante suplementação de custos fixos.
O salvamento da Fris-Moldu-Car pelo Grupo CGE é operação interessante para o patriarca Pietro Campofiorito? A expectativa do executivo e herdeiro do grupo, Eduardo Campofiorito é de que a massa crítica gerada pela sinergia das operações das cinco fábricas da CGE resulte em ganhos igualmente complementares.
Entretanto, como o faturamento da Fris é metade do que foi registrado pelo Grupo CGE no ano passado, a relação de ganhos de escala tanto na compra de matérias-primas como de logística de distribuição e de negociação de preços com as montadoras, entre outros pontos importantes de gestão de negócios que se entrelaçam, não é tão pronunciadamente forte.
Mas Eduardo Compofiorito acredita que o Grupo CGE só tem a lucrar com o negócio, apesar de todas as dificuldades que o mercado opõe. Ele explica que os investimentos que vão modernizar a fábrica permitirão chegar a R$ 50 milhões de faturamento no próximo ano. "A Fris-Moldu-Car significa um segmento industrial diferente para o nosso grupo, porque atua nas áreas de plástico com pintura, metalurgia e extrusão, enquanto as demais unidades tem nos plástico a centralidade de suas ações. Isso significa, na prática, que vamos atuar num segmento que tem menor número de concorrentes, o que é sempre positivo" -- afirma. "Com a globalização quem tiver tamanho e eficiência certamente vai conseguir superar as dificuldades" -- completa o executivo.
Tanto ex-executivos como os atuais preferem não incursionar por uma estrada sinuosa que poderia levar à conclusão de que o Grupo CGE foi conduzido a aceitar um presente de grego. Com a vantagem de que poderia dispensar o grego supostamente inoportuno e ter a confiança de que encomendas não faltariam para sustentar o negócio. E nesse ponto há convergência de expectativas e assertivas: a Fris-Moldu-Car, apesar dos pesares gerenciais familiares, é uma empresa da qual General Motors, Fiat, Volkswagen e Ford precisam muito, sob pena de sofrerem muitas dores de cabeça na cadeia de suprimentos.
Como essa não é uma realidade comum à maioria das pequenas e médias autopeças, o que o Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes Automotivos) tem feito é tentar suturar os rombos que se abrem nesse tiroteio pela competitividade internacional. Paulo Butori, presidente do Sindipeças, organizou juntamente com o Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) e uma consultoria especializada o que chama de projeto de gestão competitiva da pequena empresa familiar do segmento. A finalidade é ensinar o bê-á-bá do negócio -- do chão de fábrica ao mouse que conduz ao comércio eletrônico.
O programa é auto-explicativo, à medida que se torna espécie de Mobral dos empreendedores. O objetivo não se esgota na capacitação empreendedora e se estende à habilitação a linhas de financiamento federal. No fundo, no fundo, o que quer mesmo a maioria dessas 100 empresas que representam um terço do conjunto de pequenas e médias autopeças do País é que apareça um lance irrecusável dos players internacionais e garanta uma aposentadoria menos complicada. Algo, guardadas as devidas proporções e circunstâncias, como o que aconteceu com José Mindlin, que trocou o controle da então poderosa Metal Leve pelos milhares de livros de uma das maiores bibliotecas particulares do País.
Quem imagina, entretanto, que a casa está bagunçada apenas no andar de baixo dos empreendedores de autopeças, entende muito pouco de arruelas e parafusos. Artigo assinado recentemente no Financial Time pelos jornalistas Tim Burt e Niki Taite mostra que também entre grandes conglomerados industriais do setor a briga é intensa: pressões internas de preços, reduções implacáveis de custos e volatilidade dos pedidos atingiram os grandes fornecedores mundiais -- escreveram os jornalistas. Dana, Eaton, Federal Mogul, Rockwell, Valeo e Michelin, entre outros pesos pesados, estão fazendo das tripas coração para conviver com uma realidade de preços rebaixados ou estabilizados diante de matérias-primas em alta.
Se essas logomarcas brilhantes sofrem com os critérios de competição internacional, o que dizer então da raia miúda de anônimos exércitos de empreendedores nacionais? O mais grave da situação é que a dimensão dos problemas socioeconômicos do Grande ABC, região movida à cadeia produtiva de automóvel, perpassa aspectos conjunturais locais, nacionais e internacionais. Há componentes estruturais subjacentes que precisam ser levados em conta e atacados para valer -- como está explícito no exemplo da Fris-Moldu-Car.
Mas o que esperar se o relacionamento entre montadoras, autopeças e sindicatos passa à margem de entidades de classe da região e, principalmente, dos administradores públicos? Há quase três anos uma tentativa de esquadrinhar um modelo de aproximação entre sindicatos, autopeças e montadoras, com a coordenação do prefeito Maurício Soares, de São Bernardo, simplesmente virou pó. Representantes das empresas automotivas apresentaram um dossiê que tipificava o Custo ABC diretamente relacionado à ação sindical. A análise do documento gerou constrangimento e jamais se voltou a falar do assunto. Nem mesmo se debateram possíveis ações que pudessem contornar as relações entre capital e trabalho sob o estrito entendimento do que efetivamente é Custo ABC.
Enquanto o Grande ABC não encontra a fórmula para entender, coletivamente, que a indústria automotiva tem influência além da conta nos rescaldos sociais que se agravam, resta torcer para que pelo menos nos ambientes corporativos haja efetivo sincronismo. Mas não é fácil. Há sobretudo pressões insuportáveis. São 18 montadoras no País e o déficit de US$ 313 milhões da balança comercial no setor de autopeças no ano passado não foi acontecimento fortuito, segundo explica o presidente do Sindipeças, Paulo Butori: "Como os fornecedores de peças são globais, não compensa para as montadoras locais investir em ferramentas já disponíveis em fábricas da Europa, Estados Unidos e Japão. É mais fácil continuar importando" -- afirma o dirigente.
Mas esse é apenas um lado da moeda de sufoco das autopeças brasileiras, mesmo num ambiente de desvalorização do real frente o dólar: "As autopeças instaladas no País vão investir apenas US$ 900 milhões este ano no processo de nacionalização, quando necessitariam de US$ 2,5 bilhões. Pior do que isso: estão operando sem rentabilidade desde 1995" -- afirma Paulo Butori. Quem vê as autopeças pelos números de faturamento previsto para este ano -- US$ 12,5 bilhões -- e pelo volume de trabalhadores empregados, de 170 mil, pode entender melhor o tamanho do problema.
Alianças, não fusões -- O norte-americano Thomas Stallkamp deveria servir de inspiração para minimizar os atritos de relacionamento entre autopeças e montadoras. Em 1992, como vice-presidente de suprimentos da Chrysler, Stallkamp implantou cooperação entre a montadora e fornecedores. Para cada dólar economizado, metade era do fornecedor. A Chrysler se tornou a bem-amada de Detroit.
O executivo perdeu o posto quando da incorporação da Chrysler pela Daimler e os fornecedores voltaram a ser pressionados a cortar custos. "Sempre que um fornecedor descobre uma forma de cortar custos, a montadora está lá em busca de sua parte" -- afirma o agora diretor da MSXI, empresa de projetos e serviços de engenharia para a indústria automotiva. A nova proposta de Thomas Stallkamp é um novo salto no relacionamento fornecedoras-montadoras. Ele quer alianças de fornecedores. "Suponham 12 empresas envolvidas na fabricação de um banco de automóvel com repasse para um sistemista. O sistemista controla o fluxo do produto, gerencia as datas de entrega e cuida dos clientes, que são as montadoras. Com a aliança, formaremos uma rede temporária e cederemos o controle de suas cadeias à MSXI. Isto é: gerenciaremos os suprimentos" -- afirma.
Thomas Stallkamp não é exatamente bem visto pelas montadoras porque é crítico do sistema de livros abertos, através do qual, afirma, as automotivas controlam tudo. "O jogo aqui é tornar as margens dos fornecedores mais atraentes para os investidores. Empresas de alianças irão decidir antecipadamente como dividir as economias provenientes da coordenação de suas cadeias de suprimentos e a montadora não será envolvida nessas decisões" -- garante Thomas Stallkamp. "Além de facilidades contábeis, a produção será vendida antecipadamente. Manteremos alianças específicas para determinados projetos. É muito melhor que as fusões, porque permitem relacionamentos múltiplos" -- completa.
Traduzindo: o que o norte-americano planeja é uma parte do conceito de cluster, que significa cooperação entre agentes econômicos voltados para uma mesma atividade. Algo que jamais o Grande ABC ao menos levemente viu implantado ao longo da história da ocupação automotiva. A região sempre foi movida pelo sentido mais deletério de concorrência, vitrine de idiossincrasias muito menos visível como empecilho ao desenvolvimento regional do que o sindicalismo. Por essas e outras está como está, acumulando seguidas perdas de Potencial de Consumo, Valor Adicionado, distribuição de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e PIB (Produto Interno Bruto). São Bernardo, a capital econômica da região e que sempre se orgulhou de ter o melhor desempenho no ranking de riqueza produtiva estadual expresso na distribuição de ICMS, depois da Capital, foi passada para trás por São José dos Campos de aviões, de telecomunicações e de eletroeletrônicos, e pelo supermercado industrial de Guarulhos.
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21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?