Economia

Trabalho forjado
a ferro e fogo

WALTER VENTURINI - 05/11/2001

Depois de trabalhar quase 20 anos na maior forjaria da América Latina -- a Conforja, em Diadema -- o técnico em tratamento térmico José Domingos Peres dos Santos se preparava para perder o emprego e tirava licença para ser taxista no Grande ABC. Ele seguiria o mesmo destino de milhares de ex-metalúrgicos que se travestiram de vendedores de cachorro-quente, pizzaiolos, perueiros, donos de padaria e pequenos comércios, enfim, infinidade de apostas num futuro incerto e na maioria das vezes ingrato. Mas ao invés de trabalhar na praça, José Domingos dos Santos se tornou diretor-presidente da Uniforja -- Cooperativa Central de Produção de Trabalhadores em Metalurgia, que reúne quatro cooperativas que hoje ocupam o lugar físico e comercial da antiga Conforja, sepultada por processo de falência de vários milhões de reais. Além da Uniforja ser a maior cooperativa industrial do Brasil e de se manter como a maior empresa do setor de forjaria da América Latina, ainda tem o mérito de garantir postos de trabalho e permitir que o País não se tornasse dependente do mercado externo para obter peças de várias toneladas utilizadas nas indústrias petroleira e naval.

A história do ex-futuro taxista José Domingos Santos é típica da crise que envolve o parque industrial do Grande ABC e o infindável exército de trabalhadores obrigados a mudar de profissão por causa da extinção de postos de trabalho e mesmo de empresas e setores produtivos inteiros. Há quase cinco anos, entretanto, um grupo de pouco mais de 200 trabalhadores conseguiu mudar o roteiro típico que marca as novelas dos fechamentos de empresas no Grande ABC. José Domingos Santos e os outros funcionários chegaram a ficar quase seis meses sem receber salários, quando surgiu a idéia de desenvolver na Conforja regime de autogestão no qual trabalhadores são donos do negócio e participam dos processos decisórios. 

Como uma empresa do porte da Conforja chegou às portas da falência? A pergunta foi feita mais de uma vez por José Domingos dos Santos, agora diretor presidente da Uniforja e com uma ponta de mágoa por ver que em 1995 a empresa estava reduzida a 550 dos 1,4 mil funcionários e pronta para encerrar atividades. Foi quando surgiu a proposta de formar a Associação dos Trabalhadores da Conforja, que junto com a direção da empresa iria administrar o negócio. A solução estava longe de ser um modelo puro de cooperativa autogestionária. Era modalidade conhecida como co-gestão, na qual trabalhadores e empresário dividiam a responsabilidade pelo negócio. "Mas quando falávamos, nossas idéias não serviam como decisão" -- explica José Domingos Santos. O processo passou a ser acompanhado pelo sociólogo Valdir Carlos Sarapu, hoje no cargo de dinamizador de processo cooperativo da Uniforja. "A Associação dos Trabalhadores servia como um colchão para amortecer problemas como falta de salário" -- conta Sarapu.


Quatro em um -- Em dezembro de 1997, foi criada a primeira das quatro cooperativas que integram o complexo Uniforja: a Coopertratt (Cooperativa Industrial de Trabalhadores em Tratamento Técnico e Transformação de Metais), com 41 cooperados e responsável pelo núcleo produtivo da empresa. Um ano depois, em fevereiro de 1999, a Conforja faliu e a Coopertratt conseguiu autorização da Justiça para operar a massa falida. No final do ano passado, surgiu a idéia de formar a Uniforja, que reunia a Coopertratt e outras três cooperativas formadas com ex-funcionários da empresa falida: a Cooperlafe, com 82 sócios e que produz laminados e forjados especiais; a Coopercon, com 58 cooperados que trabalham com tubulares; e a Cooperfor, com 83 associados e que atua também na área de forjaria. "No começo, foi muita conversa para mostrar a todos que não havia outro caminho. Fizemos também parceria com o Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) para explicar a responsabilidade de cada um e que todos são donos do negócio" -- explica José Domingos dos Santos, o diretor-presidente da Uniforja. 

Tanto os cursos do Sebrae como as conversas entre os cooperados serviram para mostrar que terminava a era do empregador e começava a do empreendedor. A mudança, no entanto, não foi tão simples. A única referência que todos tinham era a velha e tradicional relação de assalariado que aguarda ordens para executar o trabalho. "Todos estavam habituados a ser empregados e a cooperação foi uma idéia que surgiu forçada pelas circunstâncias. Quem for à Volkswagen e perguntar se eles querem formar uma cooperativa, ninguém vai querer. Mas se estourar algum problema que ameace a continuidade de seus empregos, aí começam a aceitar" -- exemplifica Valdir Sarapu, o dinamizador do processo cooperativo da Uniforja. Por isso, o trabalho de Sarapu é a todo instante analisar a disposição na ação cooperativa. "Vira e mexe, eles querem voltar à condição de empregado. Aí têm de fazer uma atividade de formação. É a tendência natural do ser humano, de ter um pai, aquele que dá o amparo" -- teoriza.

O desejo de retornar à condição de empregado era reforçado no caso da Uniforja pela importância que a Conforja teve antes de entrar em crise e fechar as portas. A empresa surgiu em 1954, na mesma época em que era criada a Petrobras. Entre os anos 60 e 70, a estatal investiu pesado na prospecção e exploração de petróleo, principalmente na chamada plataforma continental, que margeia o litoral brasileiro. Em alguns pontos, como a Bacia de Campos e o litoral do Sergipe, a plataforma continental fica encharcada de petróleo e a exploração é possível com gigantescas estruturas metálicas. Era para as montanhas de aço fixadas pela Petrobras na costa brasileira que a Conforja produzia peças enormes, como anéis de aço com diâmetro superior a três ou quatro metros e com dezenas de toneladas de peso. Era serviço certo para um único cliente, bom aparentemente, mas que provocou dependência absoluta da estatal. "A empresa não precisava ter uma política comercial porque atendia a um só cliente. A Petrobras era cativa da Conforja" -- lembra Valdir Sarapu. 

Mas o modelo petrolífero brasileiro iria se esgotar a partir dos anos 80. A morte do dono e fundador da Conforja, Willen Endler, iria agravar a situação da forjaria, pois o drama da continuidade administrativa numa empresa familiar se repetiu na forjaria de Diadema. As dívidas se avolumaram. Cálculos exagerados situam o passivo numa faixa que varia entre R$ 300 milhões e R$ 500 milhões. "A Conforja não fez a virada, não se abriu para o mercado. A direção não conseguiu entender o momento da abertura de mercado ao Exterior e as mudanças" -- avalia Valdir Sarapu. 

O Grupo Conforja, além da unidade de Diadema, comandava fábricas na Bahia e no Rio de Janeiro e tinha investimentos na área agrícola. "A Conforja foi muito usada para compra de outras empresas que se mostraram maus negócios. A crise foi um somatório de fatores" -- analisa José Domingos dos Santos, diretor-presidente da Uniforja. As dificuldades administrativas da empresa coincidiram com uma época em que as forjarias passaram a sair do Grande ABC. Foi o caso de três principais empresas do setor: a Forjaria São Bernardo, de São Bernardo, a Forjaria São Paulo, de Diadema, e a Forja Frio, de São Bernardo, foram compradas e tiveram as plantas transferidas para o Interior do Estado.


Respeito mundial -- Somente o processo de formação de cooperativas autogestionárias impediu que a maior das forjarias também sumisse do mapa da região. No lugar da dedicação exclusiva a um único cliente, a nova empresa diversificou os produtos e saiu em busca de outros negócios. Hoje, a Uniforja ainda produz conexões para tubos e outras peças para a Petrobras, mas também faz e vende anéis laminados, forjados tubulares, autopeças e anéis para máquinas agrícolas, além de prestar serviços de tratamento térmico seja na fábrica de Diadema ou em local determinado pelos clientes. Como tratamento térmico, a cooperativa realiza trabalhos de recozimento, têmpera, solubilização, alívio de tensões e outros serviços especializados. Os fornos têm capacidade para trabalhar com cargas de até 22 toneladas. No laboratório também são feitos ensaios não destrutivos de ultra-som, partículas magnéticas e líquido penetrante.  Outros serviços são ensaios metalúrgicos, mecânicos de tração e impacto, feitos em baixa temperatura de até 196 graus centígrados negativos. "A marca Uniforja é hoje respeitada mundialmente" -- garante Sarapu. 

No total, as quatro cooperativas que compõem a Uniforja somam 264 associados. Serviços como portaria e restaurante foram terceirizados e utilizam 24 trabalhadores. A administração da Uniforja e filiadas conta com 32 funcionários contratados. O quadro de cooperados e prestadores de serviços é bem inferior ao máximo de contratados da antiga Conforja, que na década de 70 chegou a 1.417. Estrutura enxuta permitiu que 2,2 mil toneladas sejam processadas mensalmente. As quatro cooperativas faturam juntas R$ 1,8 milhão em média por mês. "Hoje nosso preço já é competitivo no mercado" -- garante satisfeito Valdir Sarapu. 

Como todo negócio que começa, as dificuldades chegaram a ameaçar a continuidade do projeto. Os cooperados, no entanto, conseguiram superar dificuldades como máquinas e equipamentos quebrados e em alguns casos chegaram a trabalhar mais de três meses sem receber salários. A empresa precisava conseguir um mínimo de capitalização para funcionar. "Nossa conta é: faturou, pagam-se as contas. Se sobrar, paga-se a retirada" -- relata o presidente José Domingos dos Santos. Por retirada entenda-se o valor dos antigos salários. Se com os antigos empregados, agora sócios do negócio, era mais fácil convencer a assumir alguma cota de sacrifício, com fornecedores e clientes a compreensão não era a mesma. "Ninguém acreditava que trabalhadores iriam tocar isso aqui" -- conta Santos. Para se ter idéia das dificuldades com fornecedores, é só imaginar alguns cooperados tentando explicar para empresas como Aço Minas ou Manesmann que não eram meros sucessores da Conforja, mas membros da maior e inédita cooperativa industrial do Brasil. 

Outro obstáculo foram os bancos. "A matéria-prima demora para virar. São 30 dias para processar o produto e tempo igual para receber. Ao todo, temos de bancar 60 dias, o que exige muito capital para nosso fôlego" -- observa José Domingos dos Santos. Mesmo com dificuldades, os cooperados começaram a produzir com 300 trabalhadores a mesma quantidade da antiga Conforja com 500 empregados. Chamar novos cooperados e dobrar a produção não é possível porque a Uniforja não pode ainda se dar ao luxo de vôos mais altos por conta da falta de capital de giro. Por enquanto, a maior parte da produção é feita sob regime de facção, em que o próprio cliente fornece a matéria-prima para pagar sobre o serviço de processamento. "Aos poucos geramos excedentes. É pouco, mas significativo para quem não comprava nada antes" -- avalia o diretor-presidente da Uniforja. Sinal de que na conta que contém faturamento, pagamento de dívidas e retiradas começa a sobrar espaço para pequena mas promissora poupança para futuros investimentos.

Talvez o maior investimento que passa pela cabeça dos 264 cooperados da Uniforja seja comprar o próprio parque industrial. "Por enquanto moramos de aluguel" -- brinca José Domingos dos Santos. A idéia inicial é adquirir o terreno onde funciona a Uniforja no Centro de Diadema, com 95 mil metros quadrados. Para concretizar o sonho do parque industrial próprio e modernização dos equipamentos, a Uniforja negocia financiamento junto ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). 


Unisol -- No contato com o banco, a empresa contou com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que acompanha o processo de estruturação das cooperativas desde o início. A experiência adquirida pela diretoria do sindicato com a formação da Uniforja fez com que criasse entidade para incentivar a estruturação de cooperativas: a Unisol (União e Solidariedade das Cooperativas no Estado de São Paulo). "É possível que a Uniforja tenha sucesso na inserção no mercado, principalmente com a possibilidade de adquirir novos equipamentos para se desvencilhar da massa falida e se transformar numa empresa cooperativada nos moldes das que já existem na Itália e na Espanha" -- aposta Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e presidente de honra da Unisol.

O futuro da Uniforja em Diadema é decisivo para projeto da CUT (Central Única dos Trabalhadores) de estimular a formação de cooperativas que se articulariam numa grande rede de negócios chamada de economia solidária. Luiz Marinho cita exemplos da Itália e Espanha não por acaso. Na região da Emília-Romagna, as cooperativas italianas desenvolveram um forte setor moveleiro. Na Espanha, a região de Mondragón é quase que totalmente dominada por um grupo econômico que reúne centenas de cooperativas, de fábricas a bancos, de escolas a empresas de tecnologia de ponta.

O projeto da Unisol já reúne 13 cooperativas no Estado de São Paulo, com aproximadamente mil trabalhadores associados às cooperativas. Desse total, a Uniforja representa aproximadamente 25% dos associados. Em maio deste ano, a Unisol assinou convênio com o Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) para apoio técnico às cooperativas nas áreas de tecnologia, mercado e capacitação. O convênio tem como vantagem adicional representar um carimbo de credibilidade junto a órgãos governamentais como o BNDES. Para a Unisol, manter uma empresa como a Uniforja é de importância estratégica para a região e o País. "O desaparecimento da Uniforja seria um golpe na industrialização brasileira pois ninguém montaria hoje forjaria semelhante" -- desafia o dinamizador Valdir Sarapu.


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