Economia

Excesso de zelo
ganha certificação

ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/03/2002

Líder nos segmentos de caminhões pesados e ônibus rodoviários, a Scania Latin America tem outro grande motivo para envaidecer-se: a montadora instalada há 40 anos em São Bernardo tornou-se referência internacional em segurança e saúde ocupacional ao obter certificação pela norma OHSAS 18001, cuja sigla em inglês significa Occupational Health and Safety Assessment Series. Trata-se da primeira automobilística da América Latina a conquistar o selo internacional de bem-estar laboral e que passou a integrar restrito grupo de empresas de todos os segmentos certificadas no País. 

"A OHSAS 18001 tem sido adotada em empresas dos setores petroquímico e de papel, nos quais os processos produtivos são fechados e envolvem menos pessoas. Implantar a norma na área automobilística, onde os processos são mais complexos e envolvem quantidade maior de trabalhadores, foi um desafio e tanto" -- considera Augusto Fagioli, gerente do Departamento de Qualidade e responsável pela implantação da norma. 

Claro que a subsidiária brasileira da multinacional sueca sempre se preocupou em evitar acidentes e eliminar doenças relacionadas ao ambiente de trabalho. Mas os requisitos da OHSAS 18001 possibilitaram reduzir ainda mais riscos que já estavam sob controle, além de adicionar ferramentas de sistematização com vistas ao aperfeiçoamento contínuo. 

O resultado mais visível da empreitada levada a cabo durante 18 meses, e que culminou com a certificação pela ABS-Quality Evaluation em dezembro último, está na redução substancial de índices de acidentes que já eram baixos: a média de um acidente por dia durante 2000 caiu para 0,6 acidente/dia em 2001. A média de acidentes com afastamento foi reduzida de 0,44 para 0,32 no período e a média de ocorrências sem afastamento baixou de 0,53 para 0,25. O número total de acidentes caiu de 229 em 2000 para 122 em 2001. São 2,3 mil funcionários, além de 250 terceirizados. 

"Os números refletem uma filosofia rígida de controle" -- confia Augusto Fagioli. "Até um corte no dedo sem maiores complicações é registrado na enfermaria e entra para as estatísticas de acidentes" -- exemplifica. Os acidentes mais comuns na empresa são os relacionados com as mãos e o último que resultou em afastamento -- considerado grave -- ocorreu em janeiro de 2000, envolvendo a perna de um funcionário atingido por um veículo industrial.


18 mil riscos -- Os esforços realizados para a conquista da norma de segurança e saúde ocupacional são mais representativos do que a consequência natural da redução de acidentes. Profissionais do Departamento da Qualidade e a equipe de engenheiros e técnicos em Segurança do Trabalho levantaram nada menos que 18 mil riscos potenciais nas unidades de produção de caminhões, ônibus, motores, cabines e eixos da planta de São Bernardo. "Foi trabalho de formiguinha. Analisamos cada um dos 1,2 mil postos de trabalho da produção para realizar o mapeamento dos perigos" -- explica Augusto Fagioli.

Os 18 mil riscos detectados foram categorizados de acordo com o cruzamento de duas variáveis: probabilidade e severidade. Dois mil riscos foram considerados triviais, 14 mil foram considerados toleráveis e dois mil enquadrados na categoria de moderados. O gerente de Qualidade explica que os riscos triviais não sofreram interferências porque são praticamente inerentes ao processo produtivo e apresentam baixos índices de probabilidade e severidade. Os riscos toleráveis representam o que Augusto Fagioli ilustra como um leão dentro de uma jaula, isto é, baixa probabilidade e média severidade devidamente prevenida com mecanismos eficientes de controle, como um robô que é desligado automaticamente ao menor sinal de presença humana. Os dois mil riscos moderados, cujos mecanismos de controle precisam ser aperfeiçoados, compuseram o alvo prioritário das ações preventivas. 

"Excesso de zelo é nossa filosofia" -- destaca o executivo, que ressalta não ter sido registrado nenhum risco do tipo intolerável, previsto no sistema por ser de alta probabilidade e alta severidade. Entre os dois mil riscos moderados, 600 já foram atacados e rebaixados à categoria de toleráveis ou triviais. Por incrível que pareça em se tratando de gigante multinacional cujas ações de repercussão são sempre acompanhadas de investimentos cotados em milhões de dólares, a eliminação dos riscos toleráveis que redundou na queda do índice de acidentes não custou praticamente nada à Scania. Tudo foi feito com medidas simples utilizando meios já disponíveis, como alterações ergonômicas e de layout. 

Augusto Fagioli cita o exemplo de postos de trabalho em que os funcionários precisavam se abaixar ou se inclinar lateralmente para ter acesso às peças. Bastou adequar o processo para que as peças fossem entregues na altura adequada aos trabalhadores, ou em posições que evitavam o deslocamento lateral, para eliminar riscos de doença ocupacional por lesões nas costas. "A parte mais difícil e importante do trabalho foi o diagnóstico, o mapeamento dos riscos no ambiente funcional" -- lembra o executivo. "Depois de detectados, bastou eliminar as condições indesejáveis para que os resultados aparecessem" -- explica. 

Interpreta mal, porém, quem acredita que os executivos da Scania estejam tomados por sentimento de missão cumprida com base nos resultados alcançados. O gerente de Qualidade enfatiza que o sistema de segurança e saúde ocupacional segue filosofia de aperfeiçoamento contínuo. Reduzir continuamente a exposição dos trabalhadores a acidentes e doenças ocupacionais é espécie de dogma estabelecido pela norma OHSAS, de modo que riscos moderados sejam transformados em riscos toleráveis, que por sua vez devem ser convertidos em riscos triviais, o nível mais inofensivo da escala. A próxima meta da Scania é rebaixar em 30% o índice de acidentes neste ano em relação a 2001, que apresentou queda de 40% comparativamente a 2000. Espera-se que o índice de acidentes seja reduzido de 0,60 para 0,40 por dia. Como? "Já estamos atacando os outros 1,4 mil riscos moderados" -- responde Augusto Fagioli. 

A Scania trabalha no longo prazo com a meta pouco provável de atingir o status de uma fábrica completamente isenta de riscos de acidentes e enfermidades. "Sei que é utópico, mas esse objetivo nos impele a melhorar constantemente. Esse é o sentido prático" -- comenta Fagioli. A Scania nem poderia dormir no ponto. Uma vez conquistada, a OHSAS 18001 é auditada para revalidação a cada seis meses por órgão internacional.   

Todos os esforços em tornar o ambiente produtivo mais seguro e livre de doenças ocupacionais estariam comprometidos se a montadora não levasse em conta a necessidade de conscientização dos funcionários. Por uma razão simples: além das condições inseguras combatidas com alterações ergonômicas e aperfeiçoamento de sistemas de controle de riscos, existem os atos inseguros por parte dos trabalhadores. Não há mecanismos eficientes contra a falta de atenção individual, a não ser que cada funcionário esteja ciente da própria responsabilidade. Por isso, campanhas de prevenção de acidentes caminham paralelamente à redução dos riscos. Faixas com mensagens de alerta são distribuídas pelas instalações da fábrica e reportagens sobre o assunto chegam aos funcionários por meio de informativos internos.

Mas a Scania não se vale apenas da chamada mídia interna. As chefias orientam as equipes sobre o assunto antes do expediente, especialmente no retorno de férias e finais de semana prolongados. "O primeiro dia de trabalho depois de um período mais prolongado de ausência é, tradicionalmente, o que mais apresenta índices de acidentes por causa da falta de atenção. Por isso redobramos os cuidados" -- explica Augusto Fagioli.

A filosofia de envolver a força de trabalho permeou as atividades desde o início. Os profissionais do Departamento de Qualidade e da equipe de Segurança do Trabalho não apenas observaram os riscos relacionados aos 1,2 mil postos de trabalho na produção, mas entrevistaram os 1,5 mil empregados diretamente envolvidos. "Ninguém melhor do que eles para sugerir alterações que pudessem reduzir as condições de perigo" -- comenta Fagioli. A disparidade entre postos disponíveis e quantidade de empregados encontra explicação no contingente de trabalhadores que atuam em turno noturno.  

A conquista e a manutenção da OHSAS 18001 representa mais produtividade e economia para a Scania. Afinal, cada funcionário afastado por acidente continua recebendo pelos dias em recuperação e gera custos adicionais com treinamento e remuneração do trabalhador que cobre a vaga de quem está impossibilitado. Sem falar em despesas hospitalares e até indenizações na eventualidade de acidentes mais graves. Mas Augusto Fagioli coloca a redução de custos no fim da lista de prioridades na qual segurança e bem-estar dos trabalhadores ocupam o primeiro lugar. 

"A economia com redução de riscos é tão secundária que nem nos preocupamos em levantar o valor" -- desconversa o gerente de Qualidade. "O que importa de verdade é o valor agregado por uma marca que se preocupa com o ambiente de trabalho" -- observa. É possível, porém, estimar a economia da Scania com base em valores aproximados. Segundo o próprio Augusto Fagioli, estudos internacionais dão conta de que cada trabalhador acidentado custa em média US$ 5 mil para a empresa. Se o número total de acidentes caiu de 229 em 2000 para 122 entre 2001, a Scania teria deixado de gastar US$ 535 mil com 107 acidentes a menos.

Consultor em segurança e saúde do trabalho com pós-graduação pela Universidade Mackenzie, o engenheiro químico Eduardo Milaneli lembra que reduções em índices de acidentes e doenças laborais como a promovida pela Scania não repercutem favoravelmente apenas no balanço corporativo. O erário brasileiro também é diretamente beneficiado pela redução de custos nas áreas de saúde e previdência social. "Organizações de grande porte normalmente custeiam despesas médicas decorrentes de acidentes, mas empregados de empresas menores e mais modestas acabam recorrendo ao já sobrecarregado sistema público de saúde. Isso gera demanda e custos adicionais” -- explica. 

Além disso, a vulnerabilidade do empregado no ambiente de trabalho tem reflexo direto sobre a carga fiscal, uma vez que funcionários afastados adensam o contingente de inativos da previdência. "Pela legislação em vigor, a empresa tem obrigação de remunerar o funcionário até o 15º dia de afastamento. A partir daí o trabalhador entra em benefício e seu pagamento é feito pelo INSS" -- explica Eduardo Milaneli. O especialista informa que são registrados por ano em torno de 400 mil acidentes de trabalho com afastamento no Brasil.

Tradição em pioneirismo -- Além de ter sido a primeira montadora da América Latina a conquistar a norma internacional de segurança e saúde ocupacional, a Scania Latin America protagonizou outro feito: foi a primeira entre as fábricas do grupo espalhadas pelo mundo a conquistar a OHSAS 18001. Chegou na frente de plantas similares da Suécia, Dinamarca, Holanda, França, Argentina e México. "Recebemos visitas de muitos executivos de dentro e fora do País interessados em aplicar a norma nas empresas que representam" -- comenta Fagioli. Nada mal para a subsidiária de um país muito mais acostumado a importar do que a exportar tecnologias e procedimentos de classe internacional. 

O pioneirismo da Scania no Brasil entre as demais subsidiárias do grupo deriva de outro fato desbravador: a principal unidade produtiva da multinacional fora da Suécia já havia sido a primeira do grupo e a primeira montadora da América Latina a conquistar a norma ISO 14001 de responsabilidade ambiental, em 1997. Como o sistema de gestão da qualidade é integrado e pressupõe interdependência e complementaridade entre ações ambientais, de qualidade total e de segurança e saúde ocupacional, é natural que a implantação da OHSAS 18001 começasse pela fábrica brasileira, que também é certificada pela ISO 9001-2000.

Já o pioneirismo para a ISO 14001 tem duas razões. A mais concreta sustenta que a Scania Latin America seria candidata natural por estar sediada num país onde a formalidade do respeito ao meio ambiente encontrava mais apelo do que nos países desenvolvidos. "Na Europa a responsabilidade social já está introjetada nas pessoas, de modo que a implantação representava desafio mais instigante no Brasil" -- considera Augusto Fagioli. A outra razão é de cunho subjetivo e deliberadamente passional: "Somos mais pró-ativos" -- destaca o gerente de Qualidade. 

A planta brasileira da Scania é a maior operação da marca na América Latina e uma das mais importantes do mundo. Da unidade que ocupa área total de 350 mil metros quadrados às margens da Via Anchieta já saíram mais de 120 mil veículos entre caminhões pesados e ônibus em 40 anos de atividades, além de 40 mil motores industriais, marítimos e veiculares. Somente em 2001 a Scania vendeu 5.266 unidades de caminhões pesados (acima de 30 toneladas), o que lhe rendeu liderança com 29,2% de participação no mercado nacional. A comercialização de ônibus rodoviários atingiu 655 unidades e a de ônibus urbanos foi de 188 unidades em 2001, além de 2.301 motores industriais e marítimos no mesmo período. Em razão do racionamento energético, a venda de motores industriais saltou 180% pela utilização em grupos geradores, como fonte alternativa de geração de energia. 

Toda a produção é obtida com quadro relativamente enxuto de 1,5 mil empregados na linha de montagem, 800 administrativos e 250 terceirizados em atividades que escapam ao core-business. A planta chegou a empregar diretamente 3,5 mil pessoas no passado. Passear pelos setores produtivos da Scania é ótima maneira de conhecer na prática as inovações tecnológicas e conceituais que empinaram a produtividade do setor automotivo brasileiro nos últimos anos, na esteira da globalização econômica. Muito mais do que meros executores, empregados multifuncionais atuam em células de produção com atribuições e metas específicas. As células garantem qualidade em cada etapa do processo e propiciam mais autonomia e flexibilidade para adequações rápidas aos movimentos da demanda. Os membros de cada célula se reúnem constantemente para debater problemas e sugerir melhorias, como fazem os sócios de uma empresa tradicional. "É como se a Scania fosse formada por centenas de empresas menores, representadas pelas células. Os funcionários aplicam no dia-a-dia o conceito de clientes e fornecedores internos" -- ilustra Augusto Fagioli.

A liderança no mercado brasileiro de caminhões pesados e ônibus rodoviários é regada a inovações constantes na linha de produtos. A Scania foi a primeira a lançar motor turbo-alimentado, motor com intercooler, ônibus com suspensão a ar, ônibus de dois andares e caminhões estilo cara-chata. Os lançamentos de 2001 envolvem o primeiro câmbio automatizado para caminhões pesados do País, chamado Opticruise, motor eletrônico de 400 cavalos e a série Rei da Estrada, o caminhão mais potente do mercado brasileiro, com 480 cavalos. "A Scania adota sistema de produção global. Isso significa que produtos e sistemas de produção são idênticos em todas as fábricas espalhadas pelo mundo" -- explica Augusto Fagioli. 

Do ponto de vista da análise da competitividade, a Scania é prova acabada de que valores culturais como conhecimento, planejamento e determinação são capazes de suplantar condições físicas ou materiais adversas, as chamadas desvantagens comparativas. Criada em 1891 no diminuto e montanhoso território sueco, inicialmente no ramo de vagões ferroviários, a Scania transformou-se na quarta maior fabricante de caminhões pesados e ônibus do mundo, com 26,9 mil funcionários e faturamento de US$ 5,5 bilhões em 2001. Globalizada por natureza, a organização colhe mais de 95% das receitas fora do território de origem -- cerca de 20% no Brasil. 

No extremo oposto geográfico do país nórdico, e também na extremidade oposta das condições favoráveis de um território continental rico em recursos naturais, a Scania Latin America sai à frente em segurança laboral e mostra que abundância não se converte necessariamente em sinônimo de imprevidência.


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