Economia

Guarulhos é supermercado;
São Bernardo é loja temática

DANIEL LIMA - 12/04/2019

Estava no Estadão naquele começo de 1986 (na verdade, na sucursal da Agência Estado, que atendia ao Estadão, ao Jornal da Tarde e a uma infinidade de empresas de comunicação) quando voltei de uma reportagem em Guarulhos com uma ideia central na cabeça, para ancorar o texto: encontrei um supermercado industrial. 

E foi em cima disso que escrevi o material. Lembro-me disso agora porque surgiu a oportunidade quase aleatória de comparar com a loja temática automotiva de São Bernardo. 

Isso mesmo: se Guarulhos é um supermercado com a diversidade de produtos que coloca nas prateleiras industriais, São Bernardo é uma loja temática, centrada fortemente na indústria automotiva. 

Quem o leitor acredita que se deu mal ao longo dos tempos? Faça uma aposta. Depender demais de uma clientela é furo nágua. É Doença Holandesa, como batizei e reafirmo o perfil econômico de São Bernardo, com repercussão em toda a região também impactada pela Doença Holandesa Petroquímica, que atinge mais duramente Santo André e Mauá.

Origem do texto 

Estava pesquisando neste site tudo o que era possível sobre o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) para dar sequência ao texto de ontem. Foi aí que encontrei um texto que assinei na revista LivreMercado, antecessora desta publicação, edição de janeiro de 2000. Há mais de 19 anos, portanto.

Aquele título explica a abertura deste texto: “Guarulhos tira São Bernardo da liderança”. Reproduzo os primeiros parágrafos para, em seguida, voltar aos dias de hoje. Leiam: 

 Virou pó um velho orgulho de São Bernardo que perdurava há mais de três décadas. É possível que seja uma situação precariamente temporal, porque em parte é resultado da baixa produção de veículos no ano passado. Mas o fato é que a capital econômica do Grande ABC perdeu para Guarulhos o posto de maior arrecadador de ICMS (...) no Estado, depois da Capital. A diferença percentual que separa os dois municípios da Grande São Paulo é mínima. Guarulhos, conforme dados oficiais do governo do Estado divulgados no mês passado, conta com 3,76117% do Índice de Participação do ICMS, contra 3.7336% de São Bernardo. 

Números explicativos 

Acho que vale a pena reproduzir mais alguns trechos daquela matéria de quase 20 anos porque, entre outras razões, coloca-se o perfil editorial diferenciado de LivreMercado, seguido à risca pelo seu idealizador agora num trabalho individual:

 (...) Um fosso de R$ 521 milhões separa o Valor Adicionado arrecadado por Guarulhos e por São Bernardo no ano passado. O montante é representativo porque significa algo parecido com o orçamento da Prefeitura de Santo André para o ano que vem. Ou quase o dobro de todo o Valor Adicionado de Ribeirão Pires no ano passado. Valor Adicionado é uma espécie de PIB (Produto Interno Bruto). Significa a diferença entre o pedaço de madeira que entra numa máquina e o móvel pronto que está na vitrine. Ou o granulado de plástico que sai de uma empresa de segunda geração da indústria petroquímica e o farol de veículos que uma autopeças despacha para a linha de montagem de uma Volkswagen, por exemplo – escrevi há quase duas décadas completas.

Generalização equivocada 

É claro que nessa incursão para escarafunchar o ICMS do Grande ABC, corri para verificar como ficou esse clássico de dois municípios fortemente industrializados e, mais que isso, supostamente vítimas das mesmas enfermidades que atacam a manutenção de negócios produtivos na Região Metropolitana de São Paulo. Ou seja: criou-se um discurso terrorista de que a Grande São Paulo não seria mais território à indústria de transformação e que, portanto, entraria em declínio aterrador.

Pois bem. Se Guarulhos e São Bernardo estavam praticamente empatados há 19 aos no Índice de Participação dos Municípios, vetor que distribuiu as respectivas cotas-parte do ICMS, o que teria ocorrido nesse período até chegarmos a 2017, conforme os últimos dados consolidados pela Secretaria da Fazenda do Estado? 

Recomendo ao leitor que dê uma ajeitada na cadeira para evitar um tombo. São Bernardo de 2017 contava com índice de ICMS de 2,3248%, enquanto Guarulhos registrava 3,4613%. Ou seja: o que era um empate técnico no começo deste século, 19 anos depois se tornou vantagem de 32,83%. Praticamente 1,7 ponto percentual em média por ano. 

Distância vai aumentar

A distância econômica entre os dois principais municípios industriais da Região Metropolitana de São Paulo tende a aumentar. E vai aumentar. Só não percebe quem está imerso pela negligência institucional do Grande ABC. 

Negligência institucional é o reverso de Capital Social, pressuposto de uma sociedade ativa, inquieta, exploradora de novas fontes de qualidade de vida e de riquezas. 

Negligência institucional é o Sodoma e Gomorra de conformismo explorador em larga escala do que resta a ser consumido. 

Se a diferença entre o Valor Adicionado de Guarulhos e de São Bernardo era estreita no começo do século, agora, em 2017, expandiu-se de maneira praticamente incontrolável, num processo que só vai se agravar porque aquele Município também vizinho da Capital vai contar logo-logo com o trecho Norte do Rodoanel Mário Covas. Basta, para tanto, que se desembarace a corrupção que, segundo o Ministério Público Federal, era comandada pelo emblemático Paulo Preto, agente dos tucanos nos escaninhos do poder.  

Soma de municípios 

Traduzindo em números essa diferença: o Valor Adicionado de Guarulhos em 2017 registrou R$ 40.452.371 bilhões, contra R$ 27.008.432 bilhões de São Bernardo. Ou seja: são R$ 13.443.939 bilhões de distância. 

Sabe o leitor o que isso significa? Pegue o Valor Adicionado de Santo André na mesma temporada de 2017 (R$ 12.206.181 bilhões) e quase todo o Valor Adicionado de Ribeirão Pires (R$ 1.592.426 bilhões) e temos o tamanho do buraco. Ou seja: Guarulhos se distanciou de São Bernardo em 19 anos algo equivalente àqueles dois municípios.

Enquanto os prefeitos atuais que pegaram o rabo de foguete do esvaziamento econômico persistente e histórico do Grande ABC não entenderem que se trata de uma situação catastrófica, vamos continuar a viver de manchetes de jornais que comemoram varejismos e tentam minimizar o relevante. 

Quando se sabe que o exemplo de Guarulhos não é exceção, porque é regra, não é difícil imaginar que a loja temática chamada São Bernardo está comprometida demais. 

Basta um passeio pelos bairros e também pelo centro para ver que São Bernardo, principalmente São Bernardo, está em evidente decadência. Virou uma fábrica de epitáfios econômicos. 



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