O Grande ABC recebeu ótima notícia com a decisão governamental de aliviar a carga tributária sobre automóveis médios: o rebaixamento substancial da alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para carros com motorização superior a mil e até duas mil cilindradas tem tudo para mudar o perfil da produção automobilística no Brasil, que nos últimos anos viveu espécie de ditadura dos populares -- por conta de incentivo fiscal, os carros 1.0 respondem por 70% das vendas. A mudança de perfil marcada pela esperada migração de consumo dos populares para os médios favorecerá as montadoras instaladas na região, já que tanto o mix da Ford e da Volkswagen, de São Bernardo, como o da General Motors, de São Caetano, é preponderantemente voltado a automóveis equipados com motores mais potentes.
A fábrica da Volks foi totalmente reformulada para acolher a linha de montagem do novo Polo, que sai de fábrica equipado com motores 1.6 e 1.8. A planta da General Motors produz os modelos Astra 2.0, Vectra 2.2, Corsa clássico 1.0 e 1.6, além da picape Corsa com motor 1.6. Da Ford saem o Fiesta Street equipado com motor 1.0 e 1.6, além da picape Courier 1.6. "O segmento de veículos médios deve atrair pelo menos 400 mil novos consumidores por ano" -- espera José Carlos Pinheiro Neto, vice-presidente da General Motors do Brasil.
A mudança cai como luva para um Grande ABC extremamente dependente da indústria automotiva e não é fruto de reivindicação da sociedade regional, como seria desejável com base nos pressupostos de mobilização e cidadania do que se convencionou chamar de Capital Social. Pelo contrário. Lideranças públicas e privadas do Grande ABC permaneceram no mais absoluto silêncio e alheamento enquanto a indústria automotiva recorria a férias coletivas e anunciava demissões em massa em decorrência do tombo nas vendas em quase 20% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. A nova regulamentação do Imposto sobre Produtos Industrializados é fruto exclusivo de reivindicação da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), que há dois anos negociava a matéria com o governo federal.
As novas alíquotas de IPI superaram as expectativas mais otimistas dos executivos das montadoras. Tudo o que se acreditava com base em negociações preliminares era que o governo baixaria a alíquota sobre automóveis médios mas elevaria o imposto para carros com motorização 1.0. Esperava-se que o governo situaria o IPI em patamar intermediário para automóveis médios e populares de modo a favorecer a demanda por produtos de maior valor agregado sem abrir mão de arrecadação, compensada pela ampliação proporcional do imposto sobre os populares.
O resultado foi bem melhor do que o imaginado porque além de reduzir o IPI dos automóveis com motorização superior a 1.0 até 2.0 de 25% para 16% nas versões a gasolina e de 25% para 14% nas movidas à álcool, o governo ainda reduziu de 10% para 9% a alíquota sobre os populares. A redução é temporária para os modelos 1.0 movidos a gasolina -- vigora até 31 de outubro e depois volta aos 10% -- e definitiva para os populares a álcool. A estimativa de redução de preços para o consumidor é de R$ 300 a R$ 400 para os populares e de R$ 1,5 mil a R$ 3,5 mil para os médios.
Superdimensionado -- A antiga reivindicação da indústria automotiva pela redução da carga fiscal sobre automóveis mais sofisticados e potentes é compreensível. Mergulhadas em prejuízos decorrentes do superdimensionamento que fizeram do mercado brasileiro, as montadoras aceitam vender menos populares e mais automóveis médios porque desejam ampliar a rentabilidade mais alta nos produtos de maior valor agregado.
Além disso, executivos do setor repetem em coro uma constatação igualmente verdadeira: com automóveis médios mais competitivos no quesito preço, a indústria pode ajudar o Brasil a conquistar superávits na balança comercial. "Automóveis com motor 1.0 não são consumidos em lugar nenhum do mundo. Só no Brasil. Diferentemente dos equipados com motores mais potentes, que encontram grande penetração no mercado internacional, inclusive nos países desenvolvidos" -- afirma José Carlos Pinheiro Neto, da General Motors.
Já a surpreendente decisão governamental tem várias explicações. A necessidade de favorecer as exportações contribuiu, mas o fato de não ter sido posta em prática bem antes e emergir a apenas dois meses da eleição presidencial demostra que a repentina disposição de abrir mão de impostos para favorecer o setor também está relacionada à intenção de reverter os efeitos negativos da retração mercadológica verificada em uma das principais locomotivas da indústria brasileira. "A imagem de pátios superlotados e de milhares de trabalhadores demitidos tem impacto eleitoral tremendo e levou o governo a se mexer para socorrer o setor" -- observa um analista.
Independentemente das reais motivações que levaram o governo a ir muito além das condições almejadas pelas montadoras, o fato relevante é que parcela significativa do setor automotivo do Grande ABC poderá respirar um pouco mais aliviado. Se as vendas de automóveis médios produzidos na região crescerem nos mercados interno e externo como se espera, as fábricas finalmente poderão utilizar o crédito dos bancos de horas criados para evitar demissões, ampliar a carga de trabalho reduzida nos últimos anos, e até sonhar com dias melhores e contratações.
Novas perspectivas se abrem a apenas parte do segmento automobilístico regional, já que os caminhões não foram contemplados com redução fiscal e continuam ao sabor das intempéries macroeconômicas. Quem sabe lideranças públicas e institucionais que se comportaram como avestruzes não resolvam se redimir do alheamento socioeconômico involuntariamente combatido pela Anfavea fornecendo novas idéias voltadas à sustentação da cadeia de caminhões? A DaimlerChrysler, de São Bernardo, anunciou intenção de demitir mais de 700 funcionários ligados à área de desenvolvimento de produtos. Só não foi às vias de fato porque houve intervenção do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Mas o impasse permanece. E a Scania, que teve participação de mercado abocanhada pela concorrência, demitiu por telegrama.
No campo oposto das plantas de automóveis do Grande ABC, fábricas com produção voltada aos populares instaladas em outras regiões do País podem ter a demanda afetada com a nova tabela tributária. Principalmente a General Motors de Gravataí, no Rio Grande do Sul, fabricante do Celta, a Fiat mineira de Betim, que passou a ser líder no Brasil com seus populares Uno e Palio, além da nova planta do Fiesta na Bahia.
A afirmação de que uns vão perder e outros vão ganhar é baseada na constatação de que o mercado tem limites e não dá saltos expressivos, como está comprovado pela capacidade ociosa de 40% e nos pátios abarrotados com 170 mil automóveis. As montadoras, que investiram R$ 20 bilhões para ampliar ou iniciar produção no Brasil nos últimos sete anos, conhecem bem a característica inelástica da demanda nacional. Magnetizadas pelo contingente de 170 milhões de habitantes em território único, fizeram vistas grossas à desigualdade social que transforma a população brasileira motorizada em casta privilegiada. Ergueram um parque com capacidade para 3,2 milhões de unidades/ano.
Não é sem tempo que a sorte se volta para o Grande ABC. Nos últimos anos a região foi praticamente discriminada pelo governo federal sem que vozes regionais tenham se levantado para reverter o quadro. A instituição do IPI diferenciado para automóveis com motorização 1.0. teve o nobre propósito de tornar o produto mais acessível, mas gerou efeitos indesejáveis sobre a cadeia automotiva do Grande ABC, que concentra modelos de maior valor agregado justamente para compensar custos mais elevados em relação a regiões de industrialização mais recente.
Em anos mais recentes, a pulverização dos investimentos automotivos do Nordeste ao Rio Grande do Sul contou com amplo favorecimento dos governos federal e estadual na forma de incentivos fiscais, financiamento a juros paternais e obras de infra-estrutura, além de mão-de-obra mais barata. Lideranças do Grande ABC viram o pavio queimando sem qualquer reação.
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