O dilema shakespeariano do ser ou não ser poderia enriquecer o cenário do drama vivido pelo comércio da Oliveira Lima e região central de Santo André. Passados mais de dois anos da conclusão da cobertura e das obras de urbanização concebidas para trazer de volta o movimento dos bons tempos, o mais importante corredor comercial de rua do Grande ABC ainda patina em busca de identidade própria. Sem ter se transformado num grande shopping a céu aberto, como apostavam os mais otimistas, o chamado Calçadão Oliveira Lima enfrenta mais um final de ano com o desafio de sobreviver à queda do poder aquisitivo do comprador e de não sucumbir de vez ao canto da sereia dos shoppings centers e das grandes redes varejistas.
O comércio do Calçadão continua com problema de foco. A rua que já teve o quarto maior tráfego de pedestres do País ainda não descobriu o que fazer institucionalmente para trazer de volta as 150 mil pessoas que atraía há duas décadas. Na última contagem feita pela Prefeitura, em 2000, o trânsito de pedestres havia baixado para 80 mil/dia. Apesar da ausência de novas estatísticas, não há indícios visuais nem na caixa registradora dos comerciantes de que a situação tenha melhorado.
Diante do contexto estabelecido, parece perda de tempo procurar culpados. A Oliveira Lima precisa de solução. Já está provado que a chegada do grande varejo à região nocauteou quase de morte o comércio de rua e Santo André cometeu a inconsequência de acolher incondicionalmente esse pessoal. Também é flagrante o empobrecimento da população, que viu escoar pelo ralo das transformações macroeconômicas conjugadas à ausência de políticas regionais praticamente 18 fábricas da General Motors em empregos industriais. Sem trabalho ou recolocadas em empregos com salário mais baixo, a população passou a comprar menos. E quando falta dinheiro no bolso, não existe mágica a curto prazo.
"Seria fundamental que a Oliveira Lima encontrasse uma vocação" – sinaliza o secretário de Desenvolvimento Urbano, Irineu Bagnariolli Junior. “A Oliveira Lima tem potencial, mas precisa contar com a volta do consumidor" -- coloca o dedo na ferida Flávio Martins, presidente da Sol (Sociedade Oliveira Lima, entidade que agrega os lojistas da área). As duas visões são convergentes porque aprofundam o leque de análises e tocam em pontos cruciais. A Prefeitura contabilizou R$ 14 milhões em investimentos na revitalização da área central desde 1997 e mesmo assim o Calçadão está distante do que sonham comerciantes e Poder Público. A cobertura só chega até a Praça do Carmo e não há dinheiro público para conclusão da obra, viável apenas por meio de parceria com a iniciativa privada. Também se mostraram incipientes as medidas complementares que deveriam ajudar na atração de público. A segurança deixa a desejar, o trânsito não é dos melhores e as 2,8 mil vagas de estacionamento do entorno pertencem, na grande maioria, a empresas privadas que quase sempre cobram valores superiores aos dos shoppings.
Especializar e qualificar -- Se a Oliveira Lima precisa recuperar o poder de atração e a maquiagem, mesmo que parcial, se mostrou insuficiente, talvez tenha chegado o momento de mudar de atitude. Duas alternativas apontadas como viáveis para a efetiva recuperação da rua estariam na especialização ou na formação de mix de qualidade com preços mais atrativos para seduzir principalmente os públicos A e B que debandaram para os shoppings.
Mas o desafio que fica no ar é como intervir na rua a ponto de gerenciar a instalação de novos negócios ou guiar a formação de pólos temáticos a exemplo da 25 de Março ou da Rua José Paulino? As duas ruas da Capital, famosas por venderem bugigangas de todas as espécies e roupas femininas, são exemplo emblemático de que o comércio de rua tem jeito desde que exista o atrativo. Nos dois casos, a variedade incontável de opções e os preços pra lá de convidativos compensam o trânsito caótico, as calçadas abarrotadas de gente, o empurra-empurra e até o preço exorbitante do estacionamento -- R$ de 8 a 10 a hora.
"A 25 de março é uma desordem, mas vive lotada" -- compara Irineu Bagnariolli. Obviamente, o secretário de Desenvolvimento Urbano não defende a transposição pura e simples do modelo paulistano para Santo André. O executivo público apenas usa o exemplo para mostrar que não é papel do Poder Público ir além da infra-estrutura e que obras, isoladamente, são incapazes de desempenhar a função de tábua de salvação. "É preciso mais união" -- reforça.
Gestão empresarial -- O aparente tom de retórica encontra eco do outro lado do balcão. Já há algum tempo a Sol cultiva a idéia de tornar-se a administradora oficial da rua e imprimir, de fato, conceitos empresariais no gerenciamento do comércio central. A proposta inicial é locar espaços para instalação de quiosques de flores, cafés, embalagens de presentes, sorvetes e atividades afins que inibam a ocupação irregular, como a recente invasão de barraquinhas de políticos durante a campanha eleitoral. "A Sol quer e está pronta para assumir esse papel. Só dependemos de autorização" -- garante o presidente Flávio Martins. "A idéia é bastante viável, desde que as regras sejam acordadas previamente" -- sinaliza o secretário de Desenvolvimento Econômico, Cezar Moreira Filho.
A Sol estima que seria possível instalar entre 12 e 18 quiosques em toda a extensão do Calçadão. O dinheiro da locação ajudaria, por exemplo, a reforçar ações de marketing e a melhorar a segurança. A entidade está incumbida de operar as 12 câmeras instaladas na rua, mas apenas grava as imagens, sem monitoramento em tempo real. A arrecadação mensal é insuficiente para custear os R$ 10 mil necessários à manutenção de quadro de profissionais especializados para executar o serviço. A Sol tem sob sua jurisdição área que reúne aproximadamente 600 estabelecimentos, mas agrega entre 70 e 80 associados e não pode contar com a inconstância do pagamento de mensalidades para assumir compromissos financeiros fixos.
"Seria interessante para todos os comerciantes que a Sol realmente migrasse para uma gestão empresarial, que sobrevivesse da prestação de serviços e não da arrecadação de mensalidades" -- acredita o proprietário do McDonalds, Paulo Mufatto. Ele aponta a necessidade de fortalecer a interlocução dos comerciantes com o Poder Público também para resolver problemas que estão fora da conjuntura macroeconômica, mas que interferem negativamente nos negócios. Paulo Mufatto cita a ausência de regras mais rígidas para carga e descarga e horários pré-estabelecidos para a deposição das sete toneladas diárias de lixo produzidas no local.
Comerciantes da região central e Prefeitura talvez encontrem alguma referência na experiência canadense das Bias (sigla em inglês para Associação de Melhoria dos Negócios). As Bias são organizações não-governamentais criadas por comerciantes que decidem pagar adicional ao IPTU para ser aplicado especificamente na revitalização do comércio de rua. Devidamente aprovada pelo Legislativo, a verba é arrecadada pela Prefeitura e repassada à entidade que controla a área. O Canadá já contabiliza 15 experiências do gênero que ajudaram a recuperar centros que estavam sendo engolidos pela degradação urbana. As Bias não têm poder de administrar o mix das ruas, mas reúnem força suficiente para barrar até investimentos de grandes redes varejistas que consideram nocivos aos negócios locais.
Os resultados da experiência internacional ratificam os benefícios da união institucional. No entanto, em nenhum lugar do mundo é possível desprezar a força do mercado ancorada na inabalável lógica da oferta e procura. Como a maioria dos empreendedores da Oliveira Lima não é proprietária dos imóveis, o valor do aluguel tem peso preponderante na decisão de manter ou não o estabelecimento aberto. E quanto mais rotatividade -- não há estatísticas sobre o tema e poucos comerciantes arriscam falar sobre o assunto na rua -- maiores as dificuldades em manter o grupo coeso em torno de uma associação.
As regras das ruas são totalmente diferentes das que vigoram nos centros de compras. Nos shoppings, a quantidade de lojas de cada segmento é decidida pela administração. Na rua, cada proprietário aluga o imóvel para o inquilino que bem entender com a única preocupação de que a conta seja paga em dia. A última coisa a ser analisada pelo locatário é se a chegada do novo negócio vai agregar valor ou causar impacto negativo na vizinhança. As Lojas Americanas deixaram o Calçadão porque depois de mais de três décadas não chegaram a acordo com o proprietário do imóvel para renegociar o aluguel.
Também não é preciso ser expert em varejo para concluir que, na ausência do apelo temático, é prudente evitar o conflito excessivo entre atividades similares. A Oliveira Lima atual está desequilibrada, não é totalmente popular e muito menos sofisticada. "É territorialmente importante para a franquia manter uma unidade na Oliveira Lima" -- explica o franqueado de O Boticário, Ajan Marques. Diagnóstico superficial e puramente visual, resultado de 40 minutos de caminhada atenta, revela predominância de lojas de sapatos e de vestuário e ausência de floricultura, lojas de telefonia celular e até caixas eletrônicos. Não entanto, não é possível arriscar o tempo que essa combinação vai permanecer, já que a porta fechada de hoje pode amanhecer com uma novidade inesperada. Em parte da Oliveira Lima, o segredo ainda parece ser a alma do negócio.
Dificilmente o Calçadão voltará a reconquistar o glamour de antes. Os tempos são outros e o passeio serve também para identificar as peculiaridades que ajudam esse corredor a sobreviver, apesar de tudo. Quando a Kopenhagen deixou a rua há quase dois anos para se instalar no Bairro Jardim, acreditava-se que a popularização era irreversível. Alguns meses depois a Mundial Calçados chegou com loja digna dos melhores centros de compras, dotada de espaço para convivência com café e brinquedoteca. O Lojão do Brás veio logo depois, declaradamente atrás dos públicos C e D. Mas para surpresa geral não fez coro à desordem que normalmente impera nas lojas populares. O atendimento é cordial, o ambiente é organizado e a fachada tem design arquitetônico arrojado. Em breve, A Esportiva estará de volta ao Calçadão. Chega para engrossar o bloco dos tradicionalistas, no qual Discoteca Aldo, Casa Henrique e Riviera Magazine estão entre os principais heróis da resistência.
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