Economia

Quando a crise
chega à alcova

ISAIAS DALLE - 05/02/2003

Dinheiro e sexo mantêm uma relação, digamos, íntima. Mas delinear com exatidão quais os tipos de influência que um exerce sobre o outro é tarefa sem fim. Afinal, dinheiro e sexo são elementos dos mais complexos no universo humano e conviver plenamente com os dois, quando acontece, é experiência que tem vários caminhos desconhecidos do próprio viajante. Ainda assim, existem evidências de como questões financeiras interferem na vida sexual. No Grande ABC, onde a diminuição da atividade econômica é um processo de longa duração, essas interferências vão se sedimentando no cotidiano.

Quando visto como negócio, o sexo mostra sinais inequívocos de que o apetite acompanha a queda do nível de emprego e a anemia econômica. Numa das mais sofisticadas boates da região, a Baco’s, o faturamento caiu de maneira irreversível, segundo os proprietários, cerca de 45% em relação ao registrado entre 1997 e 2000. As desventuras da política econômica e o esvaziamento industrial são apontadas como principais causas.

“A diminuição das montadoras foi um golpe para nós. Muitos funcionários eram nossos principais clientes” — comenta um dos sócios, que há 18 anos participa da direção da Baco’s. “Quem manteve o emprego viu o poder de compra cair. O consumo individual dentro da boate desabou” — explica Jean Carlo, nome fictício do empresário, que pede sigilo como forma de se proteger de repressão à sua atividade, que inclui encontros amorosos entre as aproximadamente 150 recepcionistas da casa e os clientes. Ao longo desta reportagem muitos nomes são fictícios, por motivos semelhantes.

Para esse grupo de empresários, no entanto, vender fantasias continua lucrativo. Se não fosse, não teriam inaugurado recentemente em São Paulo nova boate com 50 sofisticadas suítes e com clínica de estética que inclui sauna, restaurante à beira da piscina e quase 300 atendentes escolhidas com exigência. Somada a outra casa localizada na zona leste da Capital, essa é a terceira boate do grupo. Uma comparação entre as unidades pode retratar um pouco da influência do ambiente econômico na vida sexual.

A Baco’s, apesar da sofisticação, é a prima pobre. A estratégia adotada pelos diretores leva esse fator em conta. Nas outras duas casas clientes não podem entrar de camiseta e, em certas noites especiais, nem de jeans. As mulheres, eufemisticamente chamadas de atendentes, em sua maioria estão vestidas. Em certas noites temáticas, ao som de música ao vivo, chegam a trajar vestidos longos. Na Baco’s, um short cavado é sinônimo de decoro em meio a tantas garotas de fio dental que circulam pelo salão. 

“Lá, a mulher está quase nua porque a clientela não tem dinheiro sobrando. Na maioria, são assalariados de padrão médio para baixo que não querem correr o risco de se decepcionar. Precisam ver o corpo da mulher em detalhes antes de escolher” — explica o proprietário. Nessa boate — é preciso registrar — as mulheres têm idade média máxima de 25 anos, usam maquiagem suave e todas têm cortes de cabelo impecáveis graças a cabeleireiro que trabalha na casa. Marcas de biquíni à mostra — há uma máquina de bronzeamento artificial na boate —, a quase totalidade delas é do tipo boazuda. “Na Baco’s o cliente é matador, consome rápido. Por causa da questão monetária, ele não consegue passar o tempo tranquilamente na casa. Precisa ir ao ponto com rapidez. Ou então fica só na cervejinha” — completa o sócio-proprietário.

Não é surpresa alguma, nas madrugadas da Baco’s, usuários terem crises de consciência e demonstrarem arrependimento ao descobrirem o valor de suas contas. “Muitos discutem. É a hora em que passa a euforia e o cliente lembra dos compromissos que tem no mundo lá fora” — confidencia o gerente. Perto do caixa, uma loira de biquíni azul e formas generosas cheias de juventude faz espécie de alongamento, de costas para um cliente sentado no sofá. As nádegas da loira estão tão próximas de seu rosto que o cliente engole em seco, impressionado com o movimento que ela repete, de baixo para cima. Quando a mulher ameaça sentar em seu colo, ele explica que não tem R$ 140 para acompanhá-la a local mais reservado. A loira então propõe: “Passa um cheque para 20 ou 30 dias. Eu sempre aceito”. Diante de nova recusa, ela se retira e repete a performance para outro homem.


Massagistas — Essa realidade econômica pouco excitante já provoca mudança radical de rumos para alguns empresários do sexo. Depois de ter sido proprietário de três boates na região — Casa Blanca, Café Paalooza e Manhattan — e de ter saído do negócio assustado com a queda de mais de 40% nos rendimentos a partir de 1998, Jacques (outro nome fictício) está inaugurando o que chama de clínica de estética e saúde, a Mansão 132, em São Bernardo. Aberta somente até às 21h, a casa aparenta em tudo uma clínica. 

Recepção austera, iluminação conservadora, serviços de manicure e cabeleireiro. Bastante familiar. Lá, um grupo de 20 jovens mulheres orgulha-se de possuir curso de massagista profissional e esforça-se para aliviar o estresse e as dores dos clientes usando só as mãos. A diferença da clínica é que, caso os homens queiram, a massagem pode ter final feliz com acréscimo de R$ 70 aos R$ 100 cobrados pelo tratamento estético.

Jacques optou por esse formato de negócios por perceber que casas noturnas no Grande ABC atraem muitos clientes com pouco dinheiro para gastar, capazes de passar horas ingerindo bebida barata e, encostados ao balcão, ficar contentes por poder abraçar mulheres seminuas de graça. Além de abolir as bebidas alcóolicas de seu novo negócio, o empresário vai abrir de dia para atrair pessoas com bolso viril. Afinal, na Mansão 132 não há nada para quem quer ficar só olhando. “Casa noturna de alto padrão não tem mais espaço na região. Em São Paulo, por outro lado, atrai público de vários lugares” — considera Jacques.

São Paulo também garante anonimato para quem quer sair da rotina conjugal. Uma tradicional discoteca em que casais trocam de parceiros, localizada em Moema, recebe moradores do Grande ABC, onde esse tipo de atração não existe. Rogério, com a experiência de 10 anos como agenciador de modelos femininas, confirma: “A mentalidade na região é muito provinciana para quem têm influência e dinheiro. Eles temem ser vistos”. Com carteira de 150 clientes selecionados, Rogério normalmente envia garotas para encontros em São Paulo. Entre as 20 modelos que trabalham para ele, oito são bilíngües, o que garante episódicas viagens ao Exterior na companhia de empresários enfastiados.

Também nesse ramo de negócios o prazer sofreu deflação. Há poucos anos, a agência de Rogério cobrava de R$ 500 a R$ 1 mil para que uma de suas modelos passasse 12 horas em uma feira de negócios. Hoje, o valor varia de R$ 150 a R$ 300, diz ele. Uma acompanhante cobra R$ 200 por três horas de divertimento convencional, valor que pode chegar a R$ 800 se as pretensões do contratante não forem muito ortodoxas. Mas, segundo o empresário, é raro chegar a essa cifra. “A fantasia mais comum é sair com duas mulheres” — conta o agenciador.

Não se pode dizer que o tipo de fantasia de alguém muda em função de sua situação financeira. Mas é certo que profissionais do sexo passam a ser menos seletivos diante da queda do número de propostas. Localizada através de anúncio de jornal, uma garota de programa afirma que tem aceitado propostas que, há dois anos, causavam-lhe repulsa. “Homens que queriam inverter os papéis sexuais e casais que gostam de crueldades entre eles eu recusava. Hoje, se sentir que a pessoa não é nenhum psicopata, eu topo”.

Essa tendência é confirmada por Sérgio Barbosa, que por quatro anos foi coordenador do programa Bem-Me-Quer, mantido pela Secretaria de Saúde de Santo André. O objetivo do programa é orientar prostitutas e travestis que trabalham na cidade a prevenirem-se contra Aids e doenças sexualmente transmissíveis. Formado em filosofia, Sérgio Barbosa é pesquisador do tema. Segundo ele, a queda da demanda por programas sexuais, observada especialmente durante crises econômicas agudas, leva profissionais do sexo a aceitarem propostas de clientes que não querem usar camisinha. “Se numa noite em que ainda não ganharam dinheiro aparecer alguém com essa idéia, muitas delas aceitam. É um período de maior vulnerabilidade à contaminação” — adverte. Como parte dessa realidade econômica, o programa Bem-Me-Quer está inativo há vários meses por falta de verbas públicas.

À luz do dia, ou no conforto do lar tradicional, problemas financeiros também costumam imiscuir-se nos lençóis. Como estar apto para o sexo depende inclusive de uma saudável auto-estima, é justo imaginar que desemprego ou problemas nos negócios sejam alguns dos vilões da história. Em períodos de crise, aumentam as visitas aos consultórios especializados. São pessoas descontentes com o desempenho sexual, cuja ida ao médico também é estimulada nestes tempos pós-Viagra pela maior liberdade em falar no assunto e, também, pelas campanhas publicitárias que prometem soluções rápidas e milagrosas.

“Até a idade de 60 anos, aproximadamente 90% das causas do mau desempenho sexual, ou de falta de interesse, são psicológicas. Trata-se justamente da faixa etária produtiva, quando o estresse do mundo do trabalho e do dinheiro tem influência direta sobre a questão” — confirma o urologista e terapeuta sexual Celso Marzano, professor da Faculdade de Medicina do ABC. “Sempre que há uma crise, como essa mais recente tensão sobre o câmbio, o número de consultas aumenta” — diz o médico, cuja principal clientela no consultório em São Caetano são profissionais que atuam na região.

Em 11 anos de trabalho como terapeuta sexual, Celso Marzano sabe que problemas na vida sexual têm variadas razões e que a maioria das pessoas ou desconhece ou mente para si mesma. Portanto, seria simplificação atribuir a problemas financeiros papéis preponderantes na vida sexual, mas é impossível negar a relação. “As pessoas têm tantas coisas para fazer que esquecem de achar tempo para o namoro e o carinho que preparam o casal para o sexo. A relação vai se tornando mecânica e fria, e com o tempo isso é fatal. Meu trabalho é mostrar-lhes que precisam encontrar tempo para isso” — ensina.

A história mostra que grandes crises obtêm, muitas vezes, respostas diferentes no terreno da sexualidade. Nos anos 1930, a maior crise do capitalismo norte-americano conseguiu abafar a efervescência sexual e a exuberante liberdade de costumes da década anterior. De um só golpe, em função da quebra da Bolsa de Valores, a falta de dinheiro teve maior eficácia repressiva do que todas as ferozes tentativas dos conservadores, que ao longo da Era do Jazz indignavam-se contra o que consideravam obsceno.

Por outro lado, mesmo que em meio aos escombros, quando atingem o ponto em que já se pode enxergar o final, as crises podem ser estimulantes. Nos mesmos Estados Unidos, e também na Europa, o fim da Segunda Guerra Mundial provocou um baby boom, depois que extenuados e empobrecidos cidadãos passaram a buscar a energia vital no sexo. Em 1940, antes da entrada do país na guerra, o número de nascimentos anuais nos EUA foi de 2,6 milhões. Em 46, logo após o fim do conflito, saltou para 3,3 milhões. Isso sem falar nos inúmeros filhos deixados para trás, frutos de namoros fugazes mantidos em plena guerra, fenômeno captado por estudos da época. 


Bálsamo — O sexo como bálsamo para preocupações financeiras é motivo também do aumento da frequência de usuários de alto poder aquisitivo em casas noturnas, em busca de alternativas extraconjugais. Roberto, industrial bem-sucedido mas, como todo mundo, às voltas com as mais recentes sacolejadas da economia global, passou a tomar uísque em sua boate preferida com mais constância do que nunca nos últimos meses. “A pressão é muito grande e o medo de fracassar é enorme nessas horas. Não suportaria ir para casa e encontrar minha mulher e as mesmas coisas de sempre depois de um dia como hoje. Venho aqui relaxar e ser simplesmente um cara bem servido por belas mulheres” — conta. 

Estatisticamente, isso é comprovado pela contabilidade de Jean Carlo, um dos proprietários da Baco’s e de outras duas boates. “Executivos e empresários vêm mais nessas épocas. Representam 20% da frequência e respondem por 68% do faturamento” — afirma. Porém, confidencia Jean Carlo, a maioria desses executivos vai atrás de diversão, e não exatamente de sexo. “A presença deles aumenta, mas o custo individual cai. Por outro lado, em períodos de fartura e boa conjuntura, clientes classe A passam a vir menos por falta de tempo. Mas, por estarem felizes, gastam com as garotas numa única vez valores que levariam muito tempo em outra época” — garante o empresário.

A análise coincide com outra das experiências de Rogério, agenciador de acompanhantes. Para reverter a baixa nos negócios, Rogério costuma organizar festas para grupos de aproximadamente 50 empresários e executivos em chácaras ou mansões alugadas na região. A R$ 60 reais o convite, esses homens podem bebericar e ter, à mão mulheres entre 18 e 27 anos. Apesar da atmosfera de liberdade, o ambiente não deixa de ser austero. Não há striptease nem seios de fora. Três horas após o início do encontro, a maioria dos convidados se prepara para ir embora sem sequer ter afrouxado a gravata.

Na outra ponta da cadeia de consumo, é difícil precisar o quão desestimulantes podem ser as agruras da conjuntura econômica. No ambulatório de disfunções sexuais da Faculdade de Medicina ABC são atendidos moradores da região que não têm como pagar por consultas particulares. Eles são 40, atendidos em dois grupos de 20, um feminino e outro masculino. Em nenhum foram diagnosticados problemas financeiros como causa de impotência, ejaculação precoce, vaginismo ou falta de desejo. 

Entre os homens acima de 40 anos — são 10 ao todo — oito sofrem de diabetes, causadora de impotência. Naqueles abaixo de 30 anos, a ejaculação precoce é problema que atinge seis. Mas todos estão empregados, com exceção de um que, por sua vez, faz uso de drogas. Já as mulheres, segundo a coordenação do grupo, são mais vítimas de herança cultural repressora que de qualquer outra causa. “É possível que a escassez de recursos financeiros seja algo tão permanente para esses pacientes, que eles tenham acomodado suas vidas a essa situação” — analisa a psicóloga Amazonita Alfaia Esashika, uma das coordenadoras do ambulatório.

Abundância, imaginem, também pode ser prejudicial. Casais que trabalham fora, bem remunerados e reconhecidos muitas vezes se esquecem de cultivar o romance. Não há tempo, não há clima. Encontrada numa casa dedicada à troca de casais da Capital, uma morena tipo mignon, moradora do Grande ABC, admite estar procurando aventuras há aproximadamente um ano por pura falta de atenção do marido. “Imaginação vale mais que dinheiro nessas horas” — decreta a mulher.


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