A julgar pela Uniwídia, o ideal marxista da tomada dos meios de produção pelos trabalhadores está mais vivo do que nunca. A cooperativa de Mauá formada por 42 trabalhadores do chão-de-fábrica completou quatro anos no comando dessa indústria de ferramentaria em metal duro, desde que antigos diretores e ex-proprietários saíram de cena. Mas as semelhanças com o cenário pintado pelo idealizador do comunismo e autor do clássico O Capital param por aí.
Karl Marx apregoava a revolução do proletariado para defenestrar a monarquia absolutista e os que julgava serem exploradores capitalistas. Já a transição administrativa e gerencial da Uniwídia ocorreu de maneira relativamente pacífica e civilizada porque representava a única esperança de sobrevida para um negócio quase cinquentenário que parecia ter chegado ao fim da linha.
A autogestão -- como a alternância é conceitualmente definida -- foi motivada por necessidade prática, sem coloração ideológica. Se os trabalhadores não tivessem assumido as rédeas, a empresa fatalmente engrossaria o obituário de mortandade industrial no Grande ABC, região que mais sofreu com a abertura econômica sem medidas do início dos anos 90. "Seria mais um galpão fechado e dominado pelos ratos" -- comenta o torneiro-mecânico e presidente da cooperativa, Aziel Pereira da Silva, referindo-se à área construída de seis mil metros quadrados no distrito industrial de Sertãozinho.
Uniwídia é o novo nome da antiga Cervin, criada na Vila Prudente em 1955 e transferida para Mauá em meados da década de 70. Como tantas outras metalúrgicas abertas durante o surgimento da indústria automobilística, a Cervin teve um passado de riqueza e glória que se converteu em pesadelo durante os anos 90 marcados pela globalização econômica. "Quando cheguei em 1986 havia serviço saindo pelo ladrão. A empresa tinha 220 funcionários em três turnos de produção porque era uma das poucas fornecedoras de ferramentas em metal duro no País" -- lembra Aziel.
O termo metal duro é justificado pela composição do produto. As ferramentas são feitas com tungstênio e cobalto, que chegam em forma de pó. "A mistura desses minérios proporciona material cujo nível de dureza é superior ao do aço" -- explica Aziel. Por isso as ferramentas em metal duro são utilizadas nos mais diversos meios industriais para corte de latas e prensagem de autopeças, entre outros processos que requerem durabilidade.
A abertura econômica deflagrada pelo ex-presidente Fernando Collor causou um maremoto nos negócios que navegavam em águas plácidas. Afinal, a Cervin estava completamente fora de forma por conta de décadas de acomodação em um mercado fechado ao mundo. O parque industrial obsoleto, com máquinas de 40 anos, não proporcionava as mesmas condições de competitividade das empresas européias que passaram a exportar para o Brasil. "Era o Fusquinha contra a Ferrari" -- compara Aziel.
Pior que o gap tecnológico resultante da ausência de investimentos em modernização era a postura comercial arrogante herdada de mais de 40 anos de mercado cativo. "O tom das negociações com o mercado era: só eu vendo isso. Se quiser comprar, ótimo. Se não..." -- comenta o presidente da cooperativa. Foi questão de tempo para que os novos parâmetros de custos e qualidade repercutissem na sustentabilidade financeira. A Cervin começou a não depositar o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), a não honrar férias, a demitir e a não cumprir acordos rescisórios, além de dever para fornecedores".
A espiral de dificuldades financeiras foi temporariamente suspensa com um pedido de concordata em dezembro de 1995. Mas como os débitos com fornecedores não foram quitados no prazo acertado, a falência foi decretada em dezembro de 1999. Nessa época só o passivo trabalhista da empresa somava R$ 2,5 milhões. Meses antes do encerramento formal, 42 dos 80 trabalhadores que restaram anteviram a decadência iminente e negociaram com os ex-proprietários a administração dos negócios em forma de cooperativa de modo a manter o trabalho. As negociações e a montagem da nova gestão tiveram suporte do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Assim nasceu a Uniwídia, termo que concilia o prefixo uni, de união, com wídia, como é popularmente conhecido o metal duro.
Com a decretação da falência as instalações foram lacradas pela Justiça e a empresa permaneceu fechada de 8 de janeiro a 1º de março de 2000. Os trabalhadores se mobilizaram, pressionaram e conquistaram o direito de utilizar os ativos por meio de arrendamento. "Pagamos aluguel para a massa falida que é administrada por um síndico indicado pelo juiz" -- explica o presidente Aziel Pereira da Silva.
O sonho de Aziel e dos outros 41 cooperados da Uniwídia é conquistar a posse definitiva do galpão e das máquinas. Para tanto, contam com verbas rescisórias em tramitação na Justiça trabalhista e com a sensibilidade do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), do qual pretendem obter empréstimos. Se alcançarem a meta de virar a mesa e se tornarem donos da empresa na qual atuavam como funcionários, os integrantes da Uniwídia reproduzirão a trajetória da Uniforja, cooperativa que arrematou a ex-Conforja de Diadema com recursos do BNDES.
Começar de novo -- Logo que assumiram a linha de frente da antiga Cervin, os trabalhadores tiveram que se desdobrar em duas tarefas árduas: resgatar a confiabilidade dos clientes e a credibilidade dos fornecedores de matérias-primas. "Foi um trabalho de porta em porta pedindo um voto de confiança" -- afirma Aziel. Como não dispunham de recursos financeiros, os cooperados farejaram oportunidade ímpar para se abastecer de um dos principais insumos que, por ser importado, normalmente demanda pagamento antecipado.
"Uma empresa russa interessada em vender carboneto de tungstênio para o Brasil concordou em ceder o minério em consignação. Tivemos muita sorte" -- conta Aziel.
O parque produtivo não passou por grande renovação, mas os cooperados da Uniwídia promoveram as melhorias possíveis com aquisição de algumas máquinas mais novas e reformas das já existentes. Quatro anos depois dos primeiros passos, a cooperativa produz em média 750 quilos mensais de ferramentas, além de selos e anéis de vedação utilizados pelas indústrias química e petrolífera. A quantidade é muito inferior às três toneladas mensais registradas no auge da Cervin, em meados da década de 80, mas está em patamar cinco vezes maior que os 150 quilos produzidos pouco antes da decretação da falência. Na carteira há duas centenas de indústrias espalhadas pelo País, mas concentradas principalmente no Estado de São Paulo.
Os trabalhos rendem retirada mensal média entre cinco e seis salários mínimos, além de benefícios como convênio médico, seguro de vida, cesta básica, alimentação e custeio de 50% ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). Nada mal para trabalhadores de uma região que perdeu cerca de 100 mil empregos industriais com carteira assinada só na última década.
O termo correto é retirada, e não salário, porque as cooperativas têm regras e procedimentos distintos das empresas convencionais. A começar pela pulverização societária e ausência de níveis hierárquicos rígidos. "Os 42 são proprietários porque todas as questões são discutidas em assembléia e todos têm direito a um voto, da faxineira ao presidente" -- explica Aziel Pereira. As implicações de comprometimento e produtividade que o cooperativismo enseja formam um dos principais pilares conceituais do que se convencionou chamar de economia solidária.
A Uniwídia é uma das 17 cooperativas autogestionárias em operação no Grande ABC. "Praticamente todas foram criadas a partir de empresas que entraram em colapso com a abertura econômica" -- explica Aziel Pereira, que também é presidente da Unisol, associação ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC que dá suporte às cooperativas da região, além de outras quatro no Interior paulista (três em Salto e outra em Nova Odessa) e uma em Cajamar, na Grande São Paulo.
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