A foto de Guarulhos no aniversário de 443 anos completados neste mês retrata com riqueza de detalhes a intrincada realidade metropolitana brasileira. Assim como outras cidades importantes da Grande São Paulo, administrar Guarulhos -- a maior depois da Capital, com 1,1 milhão de habitantes -- representa desafio permanente, uma obra em constante produção. Por mais que se operem melhorias sociais, é praticamente impossível tapar o rombo de exclusão à espera de novas intervenções do poder público. A constatação de que o aperfeiçoamento da infra-estrutura de equipamentos e serviços sociais de grandes municípios equivale à tarefa de enxugar gelo torna-se evidente para quem conhece as linhas gerais e as prioridades do prefeito Elói Pietá, no governo desde janeiro de 2001.
É claro que o prefeito não utiliza essa expressão popular que se tornou sinônimo de tarefa inglória, continuamente insuficiente, porque manter o perfil otimista é característica dos homens públicos. Mas a maior prova de que enxugar gelo explica perfeitamente os desafios de Guarulhos e de outros municípios metropolitanos igualmente gigantescos e problemáticos está em um dado demográfico: a cada ano a já desafiadora população aumenta em 30 mil habitantes, essencialmente por conta de exércitos de excluídos vindos de diversos cantos do Brasil.
É evidente que com crescimento demográfico tão intenso, capaz de reproduzir quase uma Ribeirão Pires de 100 mil habitantes a cada três anos ou pouco mais de uma São Caetano de 140 mil a cada cinco anos, torna-se praticamente impossível dar conta da avalanche de demandas sociais sobre a estrutura pública. Principalmente quando se considera que Guarulhos está inserida no cesto frágil da metrópole, cujos principais municípios vêm perdendo riqueza produtiva principalmente pela migração industrial em direção a regiões mais econômicas e com melhor qualidade de vida.
De acordo com o IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), Guarulhos perdeu 18,1% do Valor Adicionado entre dezembro de 1995 e dezembro de 2002 em termos reais, isto é, deflacionados pelo IGP-M. No mesmo período a Capital paulista perdeu 5,3%, bem menos que os 23,6% de Santo André, 34,5% de São Bernardo e 39,8% de São Caetano. Osasco foi exceção à regra de perdas. Ganhou 8,9% essencialmente por conta do impacto do Rodoanel. A relação entre o Valor Adicionado e a capacidade de atendimento às demandas públicas é direta. O VA tem peso de 76% no critério de repasse de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), maior fonte de transferência dos municípios industrializados.
Por isso Guarulhos mexe-se também no setor econômico. À moda do Interior, passou a acenar com isenção de IPTU por 10 anos para indústrias e ainda planeja vôos muito mais altos na órbita do Aeroporto Internacional de Cumbica.
Inchaço demográfico e queda de repasses estaduais são vetores tipicamente metropolitanos que estabelecem o cenário para a administração do petista Elói Pietá. Na seara educacional, o prefeito se orgulha de ter elevado de 24 mil para 64 mil o número de crianças matriculadas em creches e escolas de Ensino Fundamental. Esse contingente foi alcançado graças à expansão da rede municipal de ensino com a construção de 22 escolas e ampliação de outras 16. O prefeito saúda o fato de ter quase triplicado a oferta de vagas, mas não julga o avanço suficiente. Por isso, o cronograma prevê erguer outras 15 escolas até o fim de 2004 para atender mais 16 mil crianças.
A construção de escolas municipais permitiu a Guarulhos reaver cerca de R$ 24 milhões dos R$ 54 milhões retidos pelo Fundef (Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério), o famoso Fundão criado pelo governo federal em 1996 para estimular a municipalização do Ensino Fundamental de acordo com a lógica segundo a qual quem arca com mais responsabilidades tem direito a mais recursos. A devolução dos recursos retidos se dá de acordo com a quantidade de matrículas na rede municipal. Mas diferentemente de cidades como São Bernardo e Osasco, que incorporaram radicalmente o conceito de municipalização por meio da conversão de escolas estaduais em municipais, Guarulhos não pretende avançar na estrutura sob responsabilidade do governo estadual. Impera o que o prefeito Elói Pietá chama de Ensino Fundamental compartilhado entre governo do Estado e Prefeitura. O conceito é criar novas unidades municipais ao mesmo tempo em que se preservam as estaduais.
Já a segurança pública permanece sob domínio quase absoluto do governo do Estado, que controla as polícias civil e militar. Apesar disso, Guarulhos integra o conjunto de municípios que criam e consolidam guardas municipais para combater o avanço da criminalidade. O efetivo foi ampliado de 300 para 480 guardas na atual administração, mas a principal alteração se deu na natureza dos trabalhos. Elói Pietá conta que a Guarda Municipal deixou de cuidar prioritariamente do patrimônio público para voltar-se à proteção dos munícipes. "A prioridade foi invertida. Os guardas foram armados e treinados para enxergar a segurança das pessoas em primeiro lugar" -- expõe o prefeito, que cita a criação de ilhas de policiamento nos bairros e o conceito de atuação integrada com as polícias civil e militar como evoluções adicionais em pauta no seminário internacional sobre segurança pública que Guarulhos sedia nestes dias 9 e 10 de dezembro.
Apesar dos esforços, a cidade ocupa a 44ª posição no ranking de criminalidade dos 55 municípios paulistas mais importantes compilado pelo IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos). A cidade registrou 52,2 homicídios por grupo de 100 mil habitantes em 2002, além de 483,1 roubos e furtos de veículos e 1.154,7 roubos e furtos diversos por grupo de 100 mil habitantes no mesmo período.
Entre as diversas raízes do fenômeno da criminalidade está o desemprego situado acima dos 20% na Região Metropolitana de São Paulo, de acordo com pesquisas mais recentes da Fundação Seade. Por isso, Guarulhos mantém uma Secretaria de Relações do Trabalho cuja ação mais proeminente é o Programa Emergencial Bolsa-Auxílio ao Desempregado. Os 1,5 mil bolsistas trabalham seis horas por dia, cinco dias por semana, em troca de salário de R$ 200 além de cesta básica e seguro de acidentes pessoais. As atividades são basicamente de manutenção de praças e calçadas e serviços de jardinagem. Os 1,5 mil bolsistas foram selecionados entre mais de 22 mil candidatos.
Saúde é osso duro -- Para qualquer setor da administração pública que se olhe, a ordem é multiplicar esforços a fim de acompanhar demandas crescentes em um País estagnado há 20 anos e que nunca esboçou planejamento que conferisse o mínimo de equilíbrio socioeconômico entre as macrorregiões nacionais para evitar o transbordamento dos municípios metropolitanos. Saúde e saneamento básico são outras áreas sensíveis que não fogem ao exercício obrigatório de esticar ao máximo o cobertor sempre curto.
"A saúde é um desafio enorme. Mesmo ampliando os gastos de 14% para 22% do orçamento em relação a 2000, ainda é preciso melhorar muito" -- reconhece Elói Pietá, que calcula em 50% o aumento do fluxo de pacientes sobre a estrutura pública desde que assumiu o mandato, em janeiro de 2001. O pano de fundo da afirmação do prefeito é mais um componente indispensável para entender o drama estrutural das metrópoles: quanto mais uma cidade investe em equipamentos públicos, mais atrai a demanda de vizinhos que não dispõem da mesma estrutura.
Depois de triplicar o estoque de remédios gratuitos e de reformar e ampliar a rede de atendimento, inclusive com criação de uma unidade de pronto-atendimento para 15 mil pessoas por mês entre emergências e especialidades médicas, a atual administração volta baterias para o programa Saúde da Família. Até o fim do atual mandato Guarulhos projeta implantar 90 unidades do programa, pelo qual equipes formadas por médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e cinco agentes comunitários se responsabilizam por atender a população de maneira mais próxima e descentralizada. Quinze unidades foram implantadas desde o início de 2003 e as outras 75 deverão entrar em operação até o fim de 2004.
Outra prioridade na área de saúde é o início das obras do Hospital Regional dos Pimentas, cujo projeto prevê 100 leitos de internação em uma das regiões mais densamente povoadas da cidade e que empresta o nome ao hospital. O terreno passa por terraplenagem.
Quem analisa Guarulhos apenas por dados grandiloquentes, como o fato de ocupar a quarta posição entre os municípios paulistas em geração de Valor Adicionado e no ranking estadual das exportações, não imagina que a cidade convive com grave deficiência em um setor básico: abastecimento de água. Tanto que o prefeito Elói Pietá elenca como um dos principais feitos o fato de ter melhorado o abastecimento -- que é municipalizado -- para 400 mil habitantes. "Melhorar significou fazer com que locais que eram abastecidos de 15 em 15 dias passassem a receber água dia sim dia não" -- explica o prefeito, que foi vereador entre 1983 e 1990, inclusive presidente da Câmara, além de deputado estadual por três mandatos consecutivos, em 1990, 1994 e 1998.
As melhorias no abastecimento são resultado de construção de adutoras, estação de captação e tratamento de água, reservatórios e alterações na rede de água, além de aspecto que o prefeito trata moderadamente como uma melhor relação com a Sabesp. "Isso quer dizer pagar a conta em dia" -- traduz.
A proposta orçamentária de Guarulhos prevê arrecadação de R$ 1,1 bilhão para 2004, dos quais R$ 497,7 milhões programados para gastos sociais que englobam saúde, educação, habitação e diversos programas da Secretaria de Assistência Social e Cidadania. A ênfase é compreensível. O mapa de inclusão e exclusão social recentemente elaborado em parceria com o Instituto Polis mostra que 7,3% dos guarulhenses sobrevivem com menos de um salário mínimo e 6,3% da população acima de 15 anos é analfabeta. O levantamento concluiu também que, do total de 47 bairros, apenas oito apresentaram indicadores de desenvolvimento humano e qualidade de vida satisfatórios. Guarulhos ocupa a 634ª posição entre os 5,5 mil municípios brasileiros no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) compilado pela Unicamp, com a marca de 0,553.
Suporte econômico -- A administração procura remendar o tecido social sem perder de vista a importância do desenvolvimento econômico. À moda do Interior paulista que magnetizou empresas da metrópole nos últimos anos, Guarulhos passou a acenar com isenção de IPTU (Imposto Predial, Territorial e Urbano) por até 10 anos tanto para novas indústrias como para ampliação das já existentes, além de isenção de ISS (Imposto Sobre Serviços) sobre obras. Cerca de 30 projetos foram deferidos pelo poder público desde o início do programa, em 2001, muitos dos quais consolidados ou em fase de implementação. "Como os municípios precisam prestar contas no âmbito da Lei de Responsabilidade Fiscal, a aprovação dos projetos é condicionada à criação de empregos e incremento do Valor Adicionado, que compensam largamente as isenções" -- confia Antonio Carlos de Almeida, secretário de Indústria, Comércio e Abastecimento.
Entre as indústrias recentemente atraídas pela política de incentivos estão Valloy e RST, ambas do ramo de válvulas e acessórios, e a siderúrgica Zamprogna, com sede em Porto Alegre. Entre as que já estão estabelecidas e ampliaram atividades na cidade estão a Alban, fabricante de embalagens, e a indústria mecânica Néia.
A desburocratização do processo de abertura de empresas é mais uma ação prática que a administração projeta implementar no início de 2004 com intuito de corrigir um dos pontos fracos na relação com os empreendedores. "Vamos criar estrutura única de atendimento para que interessados em abrir negócios em Guarulhos não precisem se deslocar por cinco ou seis guichês" -- afirma Roberto dos Santos Moreno, secretário de Economia e Planejamento. "Guarulhos é tida como uma cidade onde se sofre demais para abrir empresas, mas isso promete mudar. Pequenos e microempresários não são grandes pagadores de impostos, mas compõem o bloco responsável pela maior parte dos empregos, o que confere papel protagonista na sustentabilidade social" -- considera Antonio Carlos, da pasta de Indústria e Comércio.
Em Guarulhos questões econômicas e sociais também se entrelaçam na vertente fundiária. Um dos maiores desafios da administração é remover contingentes populacionais de áreas invadidas a fim de abrir espaço para o escoamento de produtos através da pavimentação de novas ruas e avenidas. "Temos empresas de ponta em setores como metal-mecânico, têxtil, plástico e farmacêutico, mas a estrutura viária está estrangulada em vários pontos" -- observa Antonio Carlos, que cita o início da remoção de 220 famílias que ocupam área irregular da Avenida Guinle, no bairro Cidade Satélite Cumbica, como exemplo de intervenção ao mesmo tempo econômica e social, já que as famílias estão sendo transferidas para um conjunto habitacional da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano).
A maior expectativa na seara econômica está relacionada aos frutos que Guarulhos pretende colher a partir da integração com o Aeroporto Internacional de Cumbica, o maior do País, que tem capacidade para 15 mil passageiros e ocupa 15 quilômetros quadrados, equivalente ao território de São Caetano. O poder público pretende criar espécie de anel de negócios na órbita do aeroporto com atração de investidores interessados em erguer centros de feiras e convenções, além de distritos industriais alfandegários voltados ao comércio internacional.
"Vamos aproveitar a presença do maior aeroporto do Brasil para atrair empresas voltadas ao comércio exterior e ao turismo de negócios" -- vislumbra Antonio Carlos. Ele ressalta que a implementação dos planos depende da transferência de milhares de pessoas que habitam áreas invadidas no entorno do aeroporto.
A proposta de extensão da Avenida Jacu-Pêssego para interligar Guarulhos até o Grande ABC -- passando pela zona leste de São Paulo -- é encarada como atrativo adicional de competitividade pelos executivos públicos ligados ao desenvolvimento econômico. Afinal, a cidade que já conta com um aeroporto de cargas ganharia uma abertura para o mar com a facilitação logística em direção ao Porto de Santos.
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