Economia

Indústria da região vai sofrer
com acordo entre Mercosul e UE

DANIEL LIMA - 01/07/2019

Vamos ganhar e vamos perder. Se vamos ganhar é porque vamos ganhar. E se vamos perder é porque vamos perder. É com essa linguagem roussefiana que decidi dizer ao público em geral o que será de nós, da indústria de transformação da região, com a aplicação do acordo comercial firmado entre a cúpula do Mercosul e da União Europeia. 

Se vamos ganhar e se vamos perder, então vamos empatar, não é verdade? Antes fosse. Na soma dos fatores, as derrotas serão mais intensas, de pesos mais pesados. E os saldos negativos também. Mas não há escapatória. É melhor perder ganhando menos do que continuar a perder para sempre, porque é isso que estaria em nosso caminho sem o acordo comercial. 

Perder com ganhos de competitividade é melhor ganhar temporariamente sob proteção do Estado, porque um dia a casa cai. Como caiu. 

Certamente o leitor está com a cabeça embaralhada depois dessa enrolação toda. Juro que poderia dispor de uma dúzia de modelos de um texto de abertura de análise. Todos bem menos complicados, mas provavelmente sem a mesma contundência-síntese. 

Triunfalismo manifesto

Estou alertando a todos porque os primeiros sinais de triunfalismo já se fizeram ouvir. Não acreditem nos bruxos de bondades escritas e de generosidades retóricas. Eles estão aí para enganar o distinto público. Não é de hoje. Os ventríloquos dos mandachuvas e mandachuvinhas não têm compromisso com o futuro. O futuro que chegou é prova disso. 

De supetão, numa tarde de domingo geralmente reservada ao futebol, porque ninguém é de ferro, eis que listei 10 pontos que explicam e justificam a preocupação com o que chamaria de novo choque industrial no Grande ABC. Novo choque? 

Vocês vão entender qual foi o anterior, que começou com a abertura dos portos do presidente Fernando Collor de Mello no começo dos anos 1990 e contou com estrondos maiores durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e a implantação do Plano Real, há exatamente 25 anos. 

Antes disso, tivemos o choque sindicalista, a partir do final dos anos 1970. A sacudidela providencial virou do avesso as relações trabalhistas. Para o bem e para o mal da competitividade comprometido por compadrios e corporativos. 

Veja a listinha que preparei, assim como alguém que não quer nada, para dar sustentação à conclusão preliminar de que o acordo comercial com os europeus vai significar um chute nos fundilhos das improdutividades da região. E isso mexe com muitos interesses. 

Poderia ser pior  

Pior seria se as consequências das medidas fossem de curto prazo, como o plano implantado apressadamente por Fernando Henrique Cardoso. Teremos no coração de nossa economia (entre outros setores que serão afetados), a indústria automotiva, 15 anos de gradualismo, com sete anos de carência. Ou seja: vamos ter de nos adaptar ao figurino europeu e mundial num prazo razoável que, entretanto, não deixará nenhum preguiçoso impune. Vejam os pontos que selecionei.

1. Desigualdade industrial

2. Sindicalismo viciado

3. Pequenos negócios sacrificados

4. Revolução nas montadoras

5. Serviços divorciados

6. Gestores públicos omissos

7. Financiamento escasso

8. Logística comprometida

9. Ambiente desanimador

10. Seletividade de investimentos

Para se adaptar agora para valer ao jogo da globalização, o Grande ABC terá de rebolar porque alíquotas serão zeradas e tudo passará por uma competição sem contemporizações quando se chegar ao extremo oposto da largada. 

Os 24% de dependência do PIB da indústria de transformação no mix de atividades econômicas, dobro da média nacional, significam que há muita gordura a ser queimada. E será queimada, como tem sido ao longo das duas últimas décadas. A sociedade produtiva é cada vez menos industrial e mais de serviços correlatos.  E esse barco já perdemos. Nossos serviços são rudimentares. Vamos agora a cada um dos quesitos. 

 Desigualdade industrial

Ao longo de décadas o Grande ABC viveu e continua a viver à sombra das montadoras de veículos, principalmente, quando se conjuga produção e emprego. A abertura econômica dos anos 1990 com Collor de Mello e em seguida o escancaramento com Fernando Henrique Cardosa abriram uma cratera no que existia de compartilhamento de produção. Com FHC, especialmente, quando as montadoras se protegeram da concorrência, mas as autopeças foram lançadas aos leões do mercado internacional, registramos fratura aniquiladora de empresas familiares. As pequenas indústrias que jamais contaram com as grandes para a prática de arranjos produtivos, porque prevaleceu sistema concorrencial autofágico, comeram o pão que o diabo amassou. O que sobrou desse contingente terá uma segunda e longa jornada de perdas para se adequarem ao novo regime. Muitas perecerão em nome da competitividade implacável. 

 Sindicalismo viciado

Com a nova fornada de negócios internacionais sem protecionismo fiscal, os sindicalistas mais empedernidos sentirão ainda mais o desgaste de métodos que conflitam com vetores concorrenciais. A rede de proteção e de autoproteção costurada ao longo dos anos sobretudo com as grandes empresas, espalhando-se arbitrariamente às demais, tem os dias marcados. Não se ganha o jogo da atualização produtiva sem abrir mão de privilégios. A Ford se escafedeu da região porque perdeu competitividade. A General Motors não está ameaçando deixar o campo de jogo de graça. Sorte das grandes, porque as pequenas indústrias não têm saída.  

 Pequenos negócios sacrificados

As indústrias de menor porte que resistirem à nova ordem de negócios com a União Europeia terão de suportar o empacotamento de medidas que vão primar por uma dieta de mudanças nada indolores. Muitas que já foram nacionais e caíram nas garras da cadeia internacional provavelmente compactarão a produção em sintonia com as peças desse jogo de redes. Mesmo as empresas que contarem com todos os requisitos de modernidade serão esquadrinhadas na remodelação do enxadrismo de competitividade sem barreiras comerciais. 

 Revolução nas montadoras

General Motors, Volkswagen, Scania e Mercedes-Benz, as quatro montadoras de veículos que o Grande ABC detém (há quem engorde a lista incluindo a fugidia Ford e a autopeças Toyota) agora passarão a ter um jogo internacional mais condizente com o rótulo de multinacionais. Pergunta-se: o que vai resultar na engrenagem de cada uma quando forem colocados nos respectivos balaios de gatos de custos de produção as unidades locais em confronto com as demais de cada marca?  Só o tempo deverá responder, mas cautela não custa nada. As unidades investiram muito nos últimos tempos, mas, exceto a Scania, caso especial, as demais devem acusar golpes nas unidades locais. Golpes de incremento da produtividade a qualquer custo. O comércio internacional livre não é um jogo de cartas.  É uma guerra continuamente mapeada. Só os fortes resistem.

 Serviços divorciados

O setor de serviços industriais jamais foi estudado a fundo no Grande ABC, mas estatísticas indicam que não passa de um vento suave que não carrega possibilidade algum de impulsionar uma pipa sequer de produtividade. Parece claro que o Grande ABC perdeu a corrida tecnológica. Teria restringido a nichos das montadoras e sistemistas uma aproximação de produção que pesa muito pouco num novo modelo de inserção internacional. 

 Gestores públicos omissos

É nessas horas de redefinições macroeconômicas que o gerenciamento público de municípios e regiões pode fazer a diferença. O Grande ABC é useiro e vezeiro em desprezar iniciativas que tenham pelo menos duas características: preocupação com o esfacelamento econômico produtivo e desprezo ao amanhã com a adoção de planejamento que vá além do mandato do prefeito de plantão. Sem uma visão e principalmente uma aplicação de cunho regional de planejamento econômico que reúna cabeças pensantes de dentro e de fora do território regional, o futuro próximo e o futuro distante serão a linha demarcatória de frustrações. 

 Financiamentos escassos

Cada vez mais está nítido que os organismos públicos federais e estaduais não darão conta do recado de financiar o desenvolvimento econômico. O Brasil é uma máquina de desperdícios que observa quase inerte o crescimento do déficit fiscal, substituto à altura do corrosivo processo inflacionário finalmente liquidado em 1994. Resta sonhar com investimentos privados no território regional, mas nem nesse ponto temos boas notícias: exceto as indústrias que já mediram o tamanho do abacaxi e chegaram à conclusão de que entre tapas e beijos de benefícios e custos o Grande ABC ainda tem saldo positivo, as demais picam mesmo a mula em direção a outros endereços mais competitivos. 

 Logística comprometida

A dificuldade de conciliar produtividade dentro de campo, no caso nos chãos e gabinetes de fábricas, e competitividade fora de campo, no caso o sistema de logística, é praticamente incontornável para as empresas do Grande ABC. Sobram nichos espaciais nas proximidades do trecho sul do Rodoanel não interditados ambientalmente a investimentos. Mas é muito pouco, inclusive porque vizinhos metropolitanos já entenderam a mecânica e jogam pesado. Basta ver os números históricos dos municípios da Grande Osasco, que avançaram na geração de riqueza neste século, enquanto o Grande ABC permaneceu congelado. 

 Ambiente desanimador

O Grande ABC é um universo à parte no mundo dos negócios industriais. Parece não haver paradeiro no movimento de deserção, quando não de obituário. Comemos o pão que o diabo amassou. Os números, múltiplos números, estão aí. Contamos hoje com um estoque de trabalhadores industriais com carteira assinada inferior ao registrado no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso. Parecia, naquele dezembro de 2002, o fundo do poço no setor. Perdemos mais de 100 mil empregos industriais nos anos 1990. Oitenta e cinco por cento deles sob FHC. Com Lula da Silva recuperamos perto de 50 mil, mas vieram Dilma Rousseff e os efeitos da política consumista de Lula da Silva, e perdemos 56 mil postos de trabalho. O emagrecimento industrial é inevitável. E contamina os demais setores.

 Seletividade de investimentos

Para quem quer investir em negócios industriais e, agora, com o vento a favor para quem não tem uma tonelada de carga histórica a eliminar, o acordo do Mercosul com a União Europeia será uma oportunidade especial a investimentos específicos em atividades que o mapa da mina do novo conglomerado geoeconômico indicará. Na disputa por recursos financeiros que possam fazer a diferença entre uma nova fábrica e uma fábrica condenada a perecer, o Grande ABC não se apresenta no pelotão da frente. Está mais para um território que terá de fazer muito esforço para não ver derreter alguma nova parte substanciosa do que detém. 



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