Sociedade

Democracia dividida

DANIEL LIMA - 17/02/2005

Com algumas horas de diferença, mas sob a mesma influência de fisiologismo e corporativismo, a Câmara de Vereadores de Santo André replicou o espetáculo da Câmara Federal. Enquanto em Brasília o inexpressivo Serverino Cavalcanti transformava-se em escoadouro da insatisfação de congressistas com a forma de relacionamento do governo Lula da Silva, em Santo André os vereadores se davam o presente de aumentar o efetivo em 42 novos colaboradores, ao custo anual de R$ 1,9 milhão.


Tanto num caso como no outro quem vai pagar a conta são os contribuintes.


Nada mais merecido. Ou estou enganado? Enquanto a sociedade não se der conta de que pode e deve influir para valer no destino do País, em vez de contorcer-se em frente aos aparelhos de TV com ficcionismos muito bem elaborados mas inócuos à construção de cidadania, os parlamentares seguirão na prática de deitar e rolar.


Somos, portanto, o resultado de nossos nós intelectuais e de nossos gargalos de alheamento social.


O pior de tudo, no caso específico de Santo André, é que os vereadores encontraram uma vereda de certa “legitimidade” ao sufragar novos membros da confraria de assessores. Afinal, segundo dados do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), coletados, metabolizados estatisticamente e interpretados por este jornalista, Santo André é o Município com menor despesa por habitante no Grande ABC. Sinto-me, por isso, provavelmente como Santos Dumont, que, ao inventar avião, jamais imaginou que pudessem utilizar o veículo como ferramenta de guerra.


A decisão da Câmara de Vereadores de Santo André e, muito mais grave, a sem-cerimônia com que o Legislativo de São Caetano reduzido legalmente quase à metade simplesmente ignorou a contrapartida ética de recuar em igual proporção o quadro de assessores e de despesas correlatas, fortalecem a convicção de que é preciso que medidas legais imponham limites aos escandalosos repasses das prefeituras.


Não vou me alongar sobre o assunto, até porque já fiz a sugestão há algum tempo. Há modelos de eficiência financeira na gestão de Legislativos municipais no ranking do Instituto de Estudos Metropolitanos que dizem tudo sobre os princípios que devem reger as relações entre Executivo e Legislativo. A disparidade de consumo de recursos por habitante, melhor maneira de aferir a produtividade financeira dessas casas de leis, não pode ser prática às avessas como a que Santo André resolveu adotar. Por que os vereadores andreenses não miraram os gastos por habitante da campeã Barretos, os quais não chegam a R$ 7,22?


Entende-se, mas não se justifica, a conjuntura de desemprego estrutural como fonte de pressão que sofrem os vereadores não só para acomodar cabos eleitorais mas, principalmente, para sobreviverem politicamente.


O imbricamento dos fatos da madrugada em Brasília e da tarde de ontem em Santo André tem a mesma matriz, além do distanciamento crítico dos contribuintes travestidos de eleitores: o primeiro é apenas uma reprodução sistemática, de maior dimensão, de maior repercussão, de maiores estragos, do que se pratica neste País ao longo do chamado período democrático e também durante os simulacros de representatividade legislativa civil nos períodos de exceção. Trata-se de um vale-tudo que causa mal-estar apenas seletiva e mesmo assim durante breve tempo. Logo, todos voltam ao ritmo de antes, retroalimentando desperdícios orçamentários.


Todo o alvoroço e jogo de empurra que cerca a construção do trecho sul do Rodoanel seria prontamente resolvido e em benefício direto dos 39 municípios da Região Metropolitana de São Paulo, com efeitos em cadeia sobre a economia nacional, se os legislativos desse imenso conglomerado de 19 milhões de habitantes parametrizassem os gastos pelo patamar da campeã Barretos. A economia permitiria aos próprios municípios cotização financeira de acordo com a respectiva população para aplicação na obra que, de imediato, reduziria o custo da logística de transporte em 30%.


Utopia? Ingenuidade? Delírio? Quando se perde a noção da responsabilidade social intrínseca na arrecadação de impostos e quando se utilizam esses recursos para a personalização de desperdícios, todo o resto passa a ser visto como inescapável romantismo.


Os limites orçamentários que as três esferas de poder conferem a investimentos que possam retirar o Brasil do encalacramento doméstico, cujos reflexos são terríveis no jogo da competitividade internacional, têm muito a ver com o somatório de pecados aparentemente menores.


Os legislativos federal, estaduais e municipais são tão desprezíveis como instâncias de democracia social como indispensáveis como mecanismos de democracia política.


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