Há leitores de todos os tipos, inclusive leitores que não suportam ceticismo. São marinheiros de primeira viagem em matéria de municipalismo e de regionalismo. Fizeram um pacto de felicidade a qualquer preço, são maus-caracteres pegajosos disfarçados de críticos ou praticam o exercício mais sórdido proporcionado pelas mídias sociais: flertam o tempo todo com o antagonismo pelo antagonismo. Mal sabem que ceticismo é a marca do jornalismo que preza pelo interesse público.
Tenho obrigação de ser cético como jornalista porque acredito ter aprendido a lição de não abrir a guarda. Já errei e estou sujeito a errar de novo se baixar a guarda. Entre a simpatia do bom-mocismo informativo e suposta arrogância da desconfiança fundamentada, fico com a segunda. Não tenho preocupação alguma com algoritmos fabricadores de audiência e usurpadores do futuro.
Uma matéria que produzi para a edição de abril de 1998 (portanto há quase 22 anos) da revista LivreMercado, antecessora impressa desta revista digital, é reveladora do peso da maturidade quando contraposta à euforia, ou à confiança em quem não se deve confiar.
Morrendo na praia
Não tenho vergonha alguma de procurar, de achar e de divulgar erros cometidos. A pedagogia é corretiva. Devo alertar, entretanto, que o equívoco que vou reproduzir em seguida se deve muito mais ao período de euforia daquele fim de século, quando tudo parecia se encaminhar para um Grande ABC reformista.
Lamentavelmente, morremos na praia. A morte de Celso Daniel três anos e meio depois abriu uma cratera no horizonte que já não se apresentava satisfatório entre outros motivos porque no âmbito institucional Celso Daniel percebera, como já registrei faz tempo, que era uma espécie de bobo da corte. Os demais prefeitos não estavam nem aí com o cheiro da brilhantina de um municipalismo egoísta, quando não autofágico.
Recorro ao passado para explicar o presente porque um ou outro pau mandado de gestores públicos, gente paga para ocupar mídias sociais munida de estilingue endoidecido pela obrigação de opor-se a tudo, desdenha da possibilidade de, por exemplo, o Polo Tecnológico previsto (faz muito tempo, aliás), para Santo André não significar nada de prático no campo de Desenvolvimento Econômico.
Afinal – e esse argumento é empírico, não chutometria – de que adiantará esse nicho de empreendedores se não houver entranhamento planejado com vocações produtivas instaladas ou a serem detectadas do Município?
Parque Tecnológico inócuo
Se Santo André não tem a menor ideia do que quer para sair da enrascada da desindustrialização, o que esperar de um laboratório em forma de parque tecnológico senão como vitrines que não ganharão permeabilidade e capilaridade construtivas?
Para os leitores menos atualizados com o perfil deste jornalista, fui à caça de textos que produzi no passado de entusiasmo com um Grande ABC que não se converteu em virtudes planejadas. E encontrei a matéria da edição de dezembro de 1998 da revista LivreMercado.
Meu erro está lá no título e no conteúdo da matéria que assinei: “Temáticos vão empregar 20 mil”. Vejam os primeiros trechos da matéria:
Os dois parques temáticos projetados para o Grande ABC vão agregar, de forma direta e indireta, 20 mil pessoas -- contingente de mão-de-obra semelhante ao da planta industrial da Volkswagen do Brasil, em São Bernardo. A projeção é dos próprios empreendedores envolvidos nos dois negócios. O parque temático previsto para a Avenida dos Estados, em Santo André, ao lado da Balas Juquinha, envolverá investimento de US$ 80 milhões e representará a criação de sete mil empregos, 1,1 mil dos quais diretos.
Mais parques temáticos
O parque temático programado para São Bernardo custará perto de US$ 130 milhões e deverá contar com 13 mil empregos diretos e indiretos. O empreendimento em São Bernardo não ocupará mais os quase 300 mil metros quadrados da desativada fábrica da Volks Caminhões. Os investidores, que continuam a manter identidade pessoal a salvo de curiosidade, realizaram em março série de reuniões com o alto escalão da Prefeitura de São Bernardo, especialmente com o prefeito Maurício Soares e o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo, Fernando Longo. Eles representam os interesses da Arrows, organização de capital britânico que soma algumas dezenas de empreendimentos em parques de diversões espalhados pelos Estados Unidos e Europa. (...) O grupo internacional desistiu do terreno da Volks Caminhões, segundo fontes da própria montadora, por causa de declarações à imprensa do vice-presidente de Relações Corporativas e Recursos Humanos da Volkswagen do Brasil, Miguel Jorge. Ao colocar em dúvida o real interesse de aquisição do terreno e a capacidade financeira do grupo interessado em construir o parque temático, Miguel Jorge teria irritado a direção da Seaco, que decidiu por novo espaço e se pôs à procura com o acompanhamento do prefeito e secretários. A opção pela área na Represa Billings, nas proximidades do Riacho Grande, satisfaz os representantes da Arrows porque aquela região já tem vocação natural para entretenimento e, mesmo sem estrutura e organização, atrai milhares de visitantes nos finais de semana. O secretário Fernando Longo demonstra entusiasmo com a possibilidade do investimento da Arrows e vai mais longe: "A área é extensa o suficiente para comportar um parque temático e ecológico" -- afirma.
Mais parques temáticos
(...) O secretário Fernando Longo (...) afirma que a duplicação da Rodovia Índio Tibiriçá, que liga o Grande ABC à Grande Mogi das Cruzes, antiga reivindicação baseada em dotar a estrada de maior segurança já foi encaminhada ao Governo do Estado. Com as obras, o parque temático de São Bernardo será ainda mais interessante aos investidores internacionais, além de provavelmente despertar novos negócios de entretenimento em áreas vizinhas. Fernando Longo aposta que o desenvolvimento da indústria do entretenimento em São Bernardo será dinamizado com o parque temático e ecológico.
Mais parques temáticos
O secretário municipal garante que as atrações que já existem no trecho da Via Anchieta que envolve a Rota do Frango com Polenta, a Rota dos Motéis e as casas noturnas do Riacho Grande, além do Parque Estoril, estão sendo objeto de planejamento estratégico para série de ações em conjunto com os empreendedores já instalados, entre as quais campanha de marketing. "Temos oito quilômetros de praias na Billings, prontas para serem exploradas de forma responsável"-- afirma o secretário.
Mais parques temáticos
O lançamento oficial do Planeta Azul, o parque temático programado para a Avenida dos Estados, em Santo André, depende de um anúncio oficial de liberação de financiamento de um fundo de pensão nacional. "E isso está prestes a acontecer"-- garantia no final do mês o empresário Guilherme Alves da Cunha, diretor da DPK, uma das empresas envolvidas no projeto. O investimento vai exigir R$ 80 milhões, a maior parte de fundo de pensão. A DPK comandará o empreendimento juntamente com a DM9, quarto maior agência de publicidade do País, e o Grupo Fionda, líder na América Latina na fabricação, operação, venda, importação e exportação de equipamentos para parques de diversão.
Mais parques temáticos
Guilherme Alves da Cunha afirma que a cronologia de investimentos do fundo de pensão com o qual os empreendedores formalizaram o investimento permite dizer que no mais tardar ainda este mês estarão liberados os recursos. Dos R$ 80 milhões previstos para o Planeta Azul, R$ 16 milhões foram capitalizados pelas três empresas cooperadas e o restante virá do fundo. A expectativa é de conclusão das obras em 20 meses, exatamente na virada do século. São 100 mil metros quadrados de área e previsão de 1,5 milhão de visitantes no primeiro ano de atividades -- escrevi.
Mais inconformidades
Há pelo menos outros 10 casos de matérias publicadas pela revista LivreMercado (diretamente por mim ou por outros jornalistas dirigidos por mim, ou seja, sob minha responsabilidade) que estão longe de ser catalogados como herança salutar da melhor publicação regional com o que o País já contou.
No balanço geral de acertos e erros o saldo é muito positivo. Até porque, convenhamos, os passivos registrados, como o que reproduzo nesta matéria, são a prova viva de que deveremos ser basicamente céticos sobre tudo que pintar na área de informações.
Os marinheiros de águas turvas e de primeira viagem, gente paga para dissuadir a atenção de uma maioria maciça de leitores digitais preocupadíssimos com o futuro do Grande ABC, precisam entender que, mais que patéticos, ao exercitarem a liberdade de expressão são a síntese do lado tenebroso das mídias sociais. No fundo, são importantes porque ajudam a distinguir o límpido do asqueroso.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)