A manchetíssima da edição de hoje do Diário do Grande ABC (“Ciesps defendem indústria menos dependente do setor automotivo”) me obriga a voltar no tempo, mais precisamente ao ano passado, quando entreguei de bandeja e voluntariamente uma proposta ao prefeito de Santo André, também prefeito dos prefeitos do Clube dos Prefeitos. Os leitores mais assíduos sabem o que aconteceu. Paulinho Serra teve à disposição a possibilidade de marcar um gol de placa, mas furou espetacularmente.
Mais abaixo, reproduzo parte de duas das várias matérias que demarcam o território cronológico daquela sugestão, aceita e depois jogada no lixo pelo titular do Paço Municipal.
Paulinho Serra desperdiçou a maior oportunidade que um homem público teria para se consagrar como indutor de novos tempos no Grande ABC tão duramente castigado pela desindustrialização.
Fracasso monumental
Afirmaria categoricamente que Paulinho Serra fracassou no que mais interessa à região. Sim, nada é mais relevante neste século de perdas sobre perdas que liderar ação municipal e regional em prol do Desenvolvimento Econômico do Grande ABC com novas diretrizes que ultrapassem, como temos reiterado ao longo de décadas, os limites e o escravagismo das montadoras de veículos.
Nenhum agente público do Grande ABC neste novo século escapa à constatação de que nada fizeram para mudar o estado degenerativo da economia. Não considero Celso Daniel agente desde século porque ele se foi logo no começo. E se trata de um ponto fora da curva de inutilidades dos gestores públicos locais no âmbito de Desenvolvimento Econômico. Os demais pensaram sempre pequeno, quando pensaram.
O que o prefeito Paulinho Serra perpetrou na temporada passada (os trechos principais das duas matérias mencionadas chegarão já-já, basta o leitor dar sequência à leitura) foi um descalabro. Mais que isso: um suicídio. Teve nos pés a oportunidade de ouro de fazer um gol redentor, e o transformou numa bola fora vexaminosa.
Tudo em detalhes
Não vou reproduzir aqui os trechos principais da reportagem de hoje do Diário do Grande ABC, embora algumas observações se façam necessárias. Vou deixar contrapontos a outra ocasião. O Clube das Indústrias do Grande ABC (é isso que as quatro unidades do Ciesp são na região, como extensão da Fiesp, o Clube das Indústrias do Estado de São Paulo) reproduz no pensamento dos atuais dirigentes uma avaliação histórica da revista LivreMercado, coerentemente seguida por CapitalSocial.
A dependência automotiva, que chamo de Doença Holandesa Automotiva (presente em 197 análises desta revista digital) é uma faca de dois legumes.
Primeiro porque é imprescindível a manutenção da atividade na região; segundo porque a atividade gera distorções econômicas e sociais internas que abalam o conjunto da obra do Desenvolvimento Econômico.
Como lidar com isso? Aí é que entra a bola fora do prefeito Paulinho Serra: ele chutou para longe a proposta de contratar uma consultoria especializada em competitividade econômica que, claro, entre as conclusões e as medidas efetivas, colocaria o dilema automotivo do Grande ABC como desafio a ser superado com lógica, sem rezadeiras demagógicas.
Para que os leitores entendam e comprovem o quanto existe de preocupação (há quanto tempo) com a Doença Holandesa regional, reproduzo alguns parágrafos de uma análise que escrevi para a revista LivreMercado em 1997. Leiam:
Montadoras já
não são a garantia
DANIEL LIMA - 05/03/1997
A adaptação de um estribilho de música sertaneja que já fez sucesso no Brasil — aonde a vaca vai, o boi vai atrás — serve de suporte para o que se descortina no horizonte da economia do Grande ABC. Basta leve enxerto para que o bordão deixe o mundo musical e se transforme numa inquietante frase socioeconômica. Ficaria assim: aonde a vaca das montadoras de veículos do Grande ABC vai, o boi da economia regional vai atrás. Pode ser uma frase de mau-gosto, dessas que poucos teriam coragem de repetir, mas é rigorosamente uma constatação. Se voltasse no tempo, o efeito dessa metáfora seria gratificante no final dos anos 50, quando a indústria automobilística deitava raízes fortes na região. Também no final dos anos 60 seria bem-vinda, porque o parque automotivo e de empresas satélites esbanjava vitalidade. Já no final dos anos 70, a situação começaria a se alterar, com a abertura da temporada de deserções ainda não detectadas pelos ufanistas. No final dos anos 80, já sob os efeitos da saturação da Região Metropolitana de São Paulo, do explícito incentivo do governo estadual à interiorização e dos constantes entreveros sindicais, não era mais despropósito a paródia musical. Agora, no final dos anos 90, com globalização, abertura econômica e descentralização em massa de investimentos no setor, o que se tem é muita, mas muita preocupação. Encontrar alternativa complementar para a exagerada dependência da indústria automotiva cada vez mais agregadora de tecnologia e racionalizadora de mão-de-obra é o nó górdio do Grande ABC. Se nestes tempos de produções recordes, de mercado aquecido e de participação relativa direta de quase metade do setor automotivo regional no bolo produtivo nacional a situação é complicada porque ainda há excesso de trabalhadores no chão de fábrica e de executivos nos gabinetes das montadoras e das autopeças, o que esperar dos próximos anos, quando novas plantas industriais estarão despejando nas concessionárias produtos sem procedência do Grande ABC e se terá estabelecido nível de concorrência mais forte, inclusive sem a proteção alfandegária de hoje, porque se acentuam as pressões pelo livre-mercado?
Aprovação e recuo
Recuperada essa análise histórica (que de fato deu sequência a textos anteriores, porque LivreMercado já abordava o problema na edição de lançamento, em março de 1990), volto à atualidade. Vou reproduzir os trechos principais de duas das muitas matérias que preparei sobre o erro mais crasso da Administração Paulinho Serra. Erro mais crasso porque, também, ele acenara com a porta da felicidade da aprovação da iniciativa e, em seguida, quase seis meses depois de muita enrolação, puxou o próprio tapete de consagração. Leiam:
Paulinho Serra abre as portas
à competitividade municipal
DANIEL LIMA - 18/02/2019
O prefeito Paulinho Serra poderá ficar para a história da Administração Pública da região depois de aprovar na tarde-noite da última sexta-feira duas propostas deste jornalista: primeiro, contar com um grupo de assessoramento na área econômica desvinculado do organograma oficial e sem vínculo remuneratório; segundo, contratar uma consultoria de primeira linha especializada em competitividade entre municípios. Uma coisa está ligada à outra e as duas constituem uma inovação para retirar do imediatismo pouco produtivo dos gestores públicos em geral medidas que raramente ganham amplitude, longevidade e efetividade. Havia muitos anos insistia na imperiosidade de o Poder Público Municipal da região sair da mesmice e acordar para o jogo cada vez mais disputado entre municípios em busca de empreendimentos e riqueza. Paulinho Serra deu o primeiro passo.
As duas propostas poderiam ter sido feitas ao mesmo Paulinho Serra, mas com vistas ao cargo que ocupa desde o mês passado, de prefeito dos prefeitos do Clube dos Prefeitos. Optei pela municipalização porque a integração regional está num patamar de ficção. A situação regional é tão complexa que a melhor maneira de chegar ao regionalismo maduro e, primeiro, fortalecer o municipalismo descuidado. A concordância entusiástica do prefeito de Santo André às proposições pode significar uma guinada no futuro do Município que no século passado mais sofreu as dores da desindustrialização e que, mesmo neste século, não engata uma segunda marcha de recuperação porque o peso do passado ainda a ser devidamente escrutinado imobiliza reações coordenadas que jamais existiram.
Paulinho Serra pegou uma bomba econômica em janeiro de 2017, quando assumiu a Prefeitura. Aliás, foi insistentemente lembrado sobre isso neste espaço. Cometeu o erro de, em nome do que chama de manter acessa a chama de autoestima da população, algo que é bastante defensável, não dar o devido caráter de gravidade do quadro. Os outros municípios da região não fogem à regra tanto em matéria de abordagem política dos prefeitos quanto de inquietude econômica. Será que vão adotar o novo modelo que se apresenta ao prefeito de Santo André ou vão continuar a vidinha de contar, cada um, com Secretaria de Desenvolvimento Econômico inoperante?
Conselho Especial emperra na
burocracia do Poder Público
DANIEL LIMA - 31/07/2019
Sabem a proposta de criação do Conselho Especial de Assessoramento Econômico que apresentei ao prefeito Paulinho Serra como passo inicial de inovação na gestão pública e, com isso, de reviravolta na baixa competitividade econômica de Santo André? Acabou de acabar. Pelo menos nos moldes idealizados por este jornalista e adotado como premissa à composição de um grupo de voluntários, essa é uma decisão sem volta. A burocracia emperrou a iniciativa. De minha parte, estou me despedindo da iniciativa. Não tenho vocação a malhar em ferro frio de experiências frustradas, como a alternativa sugerida por assessores do tucano. Já vivi tempo suficiente para distinguir oportunidade de arapuca, reestruturação de enrolação. Embora faltem informações consistentes de assessores escalados por Paulinho Serra para desenhar o projeto de lei que seria enviado ao Legislativo, transpirou-se nas entrelinhas do material a impossibilidade de atendimento legal à iniciativa proposta.
O que propus ao prefeito Paulinho Serra e o que retornou em forma de projeto de lei praticamente seis meses depois de acertar os ponteiros no primeiro encontro, em fevereiro, não tem nenhuma digital de semelhança. É uma monstruosidade. Desenhava-se uma ação reformista e o que se pretende plantar é uma velha e surrada medida que levaria à desqualificação dos participantes. O Conselho Especial proposto por este jornalista seria um órgão informal no organograma oficial da Prefeitura. Virou, segundo o projeto de lei, um órgão oficial atreladíssimo à Prefeitura. (...) . O Conselho Especial seria integrado por no máximo nove representantes da sociedade do Grande ABC. Os nomes seriam e já estavam sendo definidos entre os próprios participantes, a partir do primeiro chamamento deste jornalista. Chegamos a sete componentes e não tínhamos pressa para aumentar o quadro até o limite máximo. Mais importante era manter o foco e disseminar a cultura que permearia as atividades. O projeto de lei dos assessores do prefeito Paulinho Serra seguiu em outra direção ao propor um organismo paritário, com nove representantes ligados diretamente à Prefeitura e nove da sociedade, todos escolhidos pela Administração Municipal. E outro tanto comporiam o quadro de suplentes.
Não existe a menor possibilidade de a contraproposta ser aceita por este jornalista. Não respondo pelos demais integrantes informais. A arquitetura de conselhos sob a tutela do Poder Público está comprovadamente falida. O histórico de iniciativas paralelas é recheado, quando não integralmente tomado, de fracassos institucionais. Mesmo Santo André já conta com um Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico, com quase duas dezenas de integrantes. Ninguém conseguiria, por mais criativo que fosse sustentar alguma utilidade do organismo. Há conflitos de interesses eloquentes, quando não estrelismos frustrados. O Conselho Especial que sugeri já contava com um código informal de conduta no qual a relação com a mídia seria bastante restrita.
O Conselho Especial proposto por este jornalista e cujos princípios foram levados aos demais participantes que aceitaram a empreitada congrega a premissa de foco exclusivo ou principalmente nas questões de competitividade econômica, o nó górdio da gestão pública no Grande ABC. Algo que sugere tanto trabalho que todos eles, prefeitos, preferem descartar ou minimizar. Para seguir a trilha de empreendedorismo competitivo de Santo André, o Conselho Especial de Assessoramento Econômico proposto por este jornalista contaria com representantes ligados à livre iniciativa, sem qualquer preocupação de pluralidade ocupacional que atravanca a objetividade. O inchaço proposto pela Prefeitura de Santo André colocaria tudo a perder num organismo que passaria a se chamar Comissão de Assessoramento Econômico.
Possivelmente o prefeito Paulinho Serra e assessores jurídicos não entenderam a seguinte equação: quanto mais um organismo público supostamente democrático se mete a contemplar mundos e fundos, mais se tem o caminho da perdição de improdutividades. O Conselho Especial de Assessoramento Econômico estaria fadado ao fracasso se caísse nas teias do burocratismo representativo, irmão siamês da ineficiência deliberativa. O projeto de lei enviado pela Prefeitura aos integrantes do Conselho Especial não faz qualquer referência ao principal ponto de sustentação de iniciativas estruturadas para atacar os sérios problemas econômicos de Santo André. Trata-se da contratação de consultoria especializada em competitividade, que delinearia planejamento de curto, médio e longo prazos.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)