Rebocamos para a edição de hoje três edições integrais da newsletter Capital Digital Online, ferramenta que criamos para analisar a produção editorial do Diário do Grande ABC. Estávamos diretor de Redação do jornal mais tradicional da região. Eram novembro e dezembro de 2004. Mais precisamente 26 de novembro, 6 e 9 de dezembro, datas dos boletins. Em abril do ano seguinte deixaria o jornal.
Nas edições de Capital Digital Online que publico hoje (de forma inédita, como as demais edições), trato da formação do Conselho Editorial que organizei para a publicação e também de questões relativas ao suprimento de informações que viraram manchetes do jornal. Fiz duras críticas ao estágio de qualidade do jornal.
Edição número 34
Conselho Editorial do Diário:
participe dessa revolução
Estamos aguardando até o final da tarde desta quarta-feira a colaboração de todos os profissionais de Redação (e também de outros setores da empresa) à indicação de nomes (com os respectivos telefones) que poderão ser chamados para compor o Conselho Editorial do Diário do Grande ABC.
Repasso, na sequência, o texto original do capítulo referente à conceituação do Conselho Editorial, que consta do Planejamento Estratégico Editorial que formulamos em março deste ano para o Diário do Grande ABC e cuja aprovação determinou minha chegada à empresa.
Conselho Editorial
Iremos substituir o Conselho do Leitor pelo Conselho Editorial. Não se trata de simples troca de nomenclatura. A mudança é muito mais substantiva, porque invade o terreno do conceito, da especificidade. O Conselho do Leitor é instância estranha no departamento-vitrine da empresa -- o editorial -- porque atinge diretamente quem está envolvido com o público e, consequentemente, com o produto final. A composição e as funções atribuídas aos conselheiros-leitores são uma anomalia porque agridem e impactam a corporação no que provavelmente deve oferecer como principal predicado: a autoestima acompanhada de senso de respeito.
O Conselho do Leitor golpeia a autoestima porque os profissionais acabam avaliados publicamente por leigos no assunto. Por mais que eventualmente haja colaboradores do Conselho de Leitores que possam contribuir para a melhoria do jornal, a exposição de enunciados críticos da forma que se caracterizou -- em espaço fixo nas edições de domingo -- torna tão ansioso quanto receoso o quadro de colaboradores. As repercussões de intranquilidade e insegurança se refletem no produto final. Chuta-se ladeira abaixo uma bola-de-neve de impropriedades que abalam a unidade da equipe.
Nada mais comprometedor para uma equipe do que se sentir permanentemente ameaçada por avaliações públicas formuladas por não-especialistas. A formalização do Conselho do Leitor nos termos atuais é, portanto, equívoco que será eliminado em sintonia com o encerramento do mandato dos atuais conselheiros.
Entretanto, isto não quer dizer que a redação estará imune a avaliações internas e externas. Pelo contrário: estabeleceremos medidas cautelares que permitirão medições permanentes do conjunto da redação e também por editoria sem que a medida tenha qualquer conotação de desconfiança e de desautorização, quando não de subversão dos preceitos profissionais.
Não podemos desconsiderar nessa decisão -- aliás, é o ponto nevrálgico da questão -- que o conteúdo editorial do Diário do Grande ABC, face as atribulações conhecidas de todos, encontra-se em momento decididamente complicado e, portanto, extremamente delicado. Não é de bom alvitre a adoção de qualquer instância avaliativa -- principalmente por leigos -- que exponha publicamente ou mesmo internamente os pecados da publicação.
Estimula-se a insegurança individual e coletiva, caminho mais curto para a instabilidade emocional e técnica de profissionais que exigem dose diária de estímulo, combinada com senso crítico emanado de quem conhece o ritual da atividade. Ou seja: o Conselho do Leitor seria uma peça de carpintaria editorial aproveitável com adaptações que não convém ressaltar agora, mas num contexto diferenciado do atual. Não existe estrutura técnico-emocional para suportar o strip-tease a que são submetidos os jornalistas por leitores que, por mais boa-vontade e interesse que tenham, nem sempre conseguem retirar as peças com um mínimo de competência. O produto que vai às ruas precisa ser entendido de forma muito mais integrada do que simplesmente numa censura pública ao deslize ortográfico.
Já a introdução do Conselho Editorial significará grande salto de qualidade do jornal rumo à comunidade. Diferentemente do Conselho do Leitor, que vive à caça de descuidos léxicos e analisa superficialmente os assuntos sobre os quais o jornal se dedica a levantar, o Conselho Editorial será integrado por profissionais residentes e atuantes na região. Serão especialistas em diversas áreas. Caberá a esses membros, juntamente com alguns jornalistas da equipe de redação, a tarefa de construir coletivamente um novo perfil de produção do jornal, absolutamente sintonizado com o macroplanejamento editorial.
Caberá ao Conselho Editorial não a procura de escorregões da língua pátria, obrigação técnica de quem está na redação, mas a introdução de conhecimentos específicos na linha editorial do jornal. Os membros do Conselho Editorial que fazem parte da comunidade trarão experiências vividas para o interior do jornal, sempre em encontro coordenado pelo diretor editorial e pelos editores-chefes do Diário do Grande ABC e de LivreMercado. Especialistas em educação, marketing, urbanismo, transporte, segurança, meio ambiente, legislação, economia, entre tantas outras áreas, vão integrar-se à redação como cérebros complementares. Serão espécies de consultores a quem poderemos reservar, também, espaços editoriais como colunistas fixos ou eventuais.
Formularemos um código específico de atuação dos membros do Conselho Editorial. Estabeleceremos algumas condições que darão ao organismo caráter de compromisso exclusivo, evidentemente sem remuneração, mas nem por isso excluído de eventuais programas de compartilhamento de marketing que trataremos de definir na sequência de nossos trabalhos.
Haveremos de tornar o Conselho Editorial tão respeitado que suas repercussões em muito colaborarão para o fortalecimento editorial do jornal e o aperfeiçoamento da linha editorial da revista. Os integrantes do Conselho Editorial serão convidados pelo diretor de redação porque cada peça requisitada fará parte de uma engrenagem de complementaridade temática que não se esgotará nos conhecimentos individuais específicos. Avançará inexoravelmente em direção aos macropressupostos de reorganização da companhia na área editorial.
Edição número 35
Resultado de cinco horas de
copidescagem: um jornal ruim
Copidesquei (revisei jornalisticamente) neste final de semana 31 matérias publicadas pelo Diário. Algumas puderam ser corrigidas, mas a maioria saiu no jornal conforme as cópias que recebi em meu escritório domiciliar. A diferença entre o que sempre faço -- ler todo o material local que sai impresso no nosso jornal -- e o processo de copidescagem é que o segundo é mais meticuloso, detalhado.
Como cronometrei cada matéria copidescada, porque resolvi adotar o que chamo de TPE (Teoria de Produtividade Editorial), o balanço do trabalho aponta que consumi 5h8 nesse trabalho -- 308 minutos. Também conforme a TPE, atribuí nota a cada matéria copidescada. O resultado final dos textos das editorias de Política, Economia e Setecidades é bastante comprometedor: mais de 50% das matérias (exatamente 16) não conseguiram alcançar a nota 5,0, o que as coloca no conceito "ruim", enquanto nove flutuaram entre as notas 5,0 e 6,5, de "razoável", e apenas seis oscilaram no critério de "bom", de 7,0 a 8,0. Nenhuma chegou ao "muito bom" de 8,5 a 10,0.
Ainda hoje ou mais tardar amanhã estarei entregando aos respectivos editores e a cada repórter autor de matéria o resultado da copidescagem. É importante que acompanhem atentamente as mudanças porque temos uma parafernália de erros, de inconformidades, de abordagem, de tudo que o bom jornalismo não aceita. Há textos sofríveis. Dessas coisas horrorosas que jamais poderiam ser publicadas num jornal com quase 50 anos de atividades.
Há uma montanha de explicações para o que encontrei nesse manancial de equívocos. Lamentavelmente, não se trata de exceção de um final de semana. Essa é, em verdade, a média do jornal nessas editorias. Nas demais o nível é relativamente superior, mas será devidamente avaliado numa próxima etapa. A mensuração é proposital no sentido de matar a cobra e mostrar o pau, ou seja, exibir as vísceras e, a partir dessa constatação documentada, assumirmos novo objetivo prático.
O que significa isso? Que o modus operandi da Redação, deixado por gente extremamente burocrática, não interessa. Aos poucos estamos desmobilizando esses cacarecos, mas temos de ser mais intolerantes. Precisamos reduzir drasticamente as inconformidades de Redação. E não será com o sofrível método de copidescagem diretamente na telinha do computador, utilizado pelos editores. E muito menos se não houver referencial explicitamente objetivo. O material que copidescamos no papel é emblematicamente o farol que deverá iluminar a todos.
Não entrarei em detalhes sobre os erros mais comuns, até porque seria preciso uma avaliação muito longa. Há problemas de todos os matizes. O estado de degeneração qualitativa a que chegou a Redação do Diário não pode ser mantido, sob pena de subestimação dos leitores intelectualmente mais preparados. Nosso jornal vai para a classe média do Grande ABC e certamente não agrada porque a qualidade é baixa. Não adianta dourar a pílula. Só reformularemos esse veículo se todos tiverem consciência de que estamos muito aquém da demanda do mercado mais gabaritado.
Já estamos tomando série de medidas e mudanças. Alteramos o formato das pautas e vamos mexer ainda mais. A partir de hoje teremos os próprios repórteres participando da reunião dos editores. Serão chamados todos aqueles diretamente envolvidos nas matérias de destaque da edição.
Fizemos isso experimentalmente na última sexta-feira e o resultado foi sintomático: duas matérias foram derrubadas por erros de abordagem e uma acabou reformulada conceitualmente, também porque estava no desvio. Temos de fazer com que o jornal das reuniões de pauta seja o jornal de papel que vai às ruas. Ou seja: o que se discute em reuniões de pauta geralmente não é o que encontramos no jornal de papel, porque há dificuldades de entendimento entre editores e repórteres e se vendem gatos por lebres.
Os leigos em jornalismo jamais vão entender essas coisas todas, mas nossa obrigação, como jornalistas, é lhes oferecer o melhor jornal possível. E é o que pretendemos. O que temos está longe, muito longe, do que imaginamos como ideal. Espero, sinceramente, que haja empenho de todos nesse sentido porque não é apenas a credibilidade do jornal que está em jogo, mas a individualidade de cada profissional dessa casa. Quando as individualidades se apercebem da responsabilidade pela qualidade, todo o coletivo acaba ganhando.
Edição número 36
Um tobogã de qualidade que
tira paciência até de monge
É impressionante como o jornal não consegue se estabilizar qualitativamente. Fosse uma companhia aérea, provavelmente o Diário seria manchete de todos os jornais, porque haveria no mínimo um grande acidente por dia. A explicação é simples: por mais que se apliquem a teoria e a prática da necessidade de melhorar o produto, o bom resultado de hoje não significa um bom resultado amanhã.
Um exemplo: depois do esporro da última edição desta newsletter, que retratou um grupo de matérias publicadas no final de semana, tivemos melhoria nas duas edições seguintes. Hoje, quinta-feira, infelizmente, as matérias sobre as quais me debrucei para análise se mostraram sofríveis. Não há otimismo que resista a desequilíbrio permanente.
Modifiquei a sistemática de análise das matérias. Estou escolhendo diariamente um naco de textos sobre os quais construo, por amostragem, diagnóstico do produto final. Escolho as matérias mais importantes de Economia, de Política Regional e de Setecidades. A partir de hoje também lançarei olhares sobre Esporte e Cultura. Leio o jornal inteiro, mas me detenho especificamente em termos de avaliação nas matérias selecionadas.
Esse trabalho deveria ser obrigação diária dos editores e dos membros da Secretaria Executiva. A leitura crítica como tenho feito, no papel, com anotações variadas, deveria ser igualmente rotineira de quem ocupa cargo de chefia. Esperava não precisar chegar a esse ponto de recomendação, mas como não senti interesse explícito dos profissionais dessas esferas, chamo-os à conscientização através desta newsletter. O resultado final do jornal é coletivo. Não sou candidato a messianismo.
Se não pegar para valer cada texto e atacar sem piedade todas as inconformidades, jamais conseguiremos avanços. Jamais essa cultura de burocratismo, de fast-food informativo, de acomodação com as fontes de informação, de simplificação sem criatividade, de redundâncias, de tudo que é de mais pernicioso no jornalismo diário, jamais, repito, essa corrente de baixa qualidade sofrerá alterações.
Infelizmente, a edição desta quinta-feira foi um colapso mental da maioria dos profissionais. Erramos demais nas principais matérias, apesar de tudo o que foi comentado na reunião de pauta. Temos um produto irritantemente inconfiável para quem se acostumou a fazer do jornalismo exercício de busca da conquista dos melhores leitores.
Uma pena porque a edição anterior seria elogiada como eventual marca de recuperação. Ainda bem que não me deixei levar pelo entusiasmo. Meu humor está péssimo hoje. Não consigo suportar um jornal tão ruim. Faremos um diagnóstico verbal na reunião de pauta das 17h30.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)