O vírus chinês que aterroriza brasileiros e outros povos promoveu remelexo na gestão editorial do Diário do Grande ABC, conforme o próprio jornal publicou ontem com direito à manchete de primeira página. O Diário do Grande ABC abriu-se mais para os leitores em potencial. Agora o jornal está mais digital. Ou seja: pode ser acessado sem que necessariamente o interessado seja assinante.
A liberação geral não foi um ato gerencial único. É acompanhada, ou precedida, de mudanças funcionais que se refletirão na obra final.
O jornal decidiu criar uma força-tarefa de jornalistas que vão cuidar exclusivamente do Coronavírus no Grande ABC. É uma oportunidade extraordinária para recuperar parte da importância mais elevada que já teve.
Como se sabe, não há jornalismo impresso no mundo que não tenha sido totalmente ou em parte abduzido pela tecnologia digital. No caso do Diário do Grande ABC a situação é ainda mais grave: está incrustado numa região em permanente decadência econômica, expressa no salto quântico de famílias pobres e miseráveis e no recuo de famílias de classe rica e de classe média tradicional.
Manter o esquadrinhamento convencional da publicação nestes tempos de guerra encardida teria o mesmo sentido de um time de futebol que, entrincheirado na defesa para sustentar vantagem em mata-mata, seguir no formato tático após sofrer um gol demolidor.
Redações emburrecem
Claro que não quero dizer com isso que o Diário do Grande ABC é um time composto exclusivamente de defensores, mas não estava distante disso até que o vírus chegasse. O quadradismo de distribuição editorial dos diários brasileiros é latente. E o Diário do Grande ABC não seria diferente. Há alguma flexibilidade circunstancial, de acordo com a demanda do noticiário diante de situação de anormalidade, mas a rotina é a mesmice de sempre.
Num dos prefácios do livro “Na cova dos leões”, que retrata meus nove meses como Diretor de Redação do Diário do Grande ABC, ousei escrever que as redações emburrecem. E emburrecem mesmo. Emburrecem no sentido de que viramos espécie de técnicos e auxiliares de futebol presos à mineração de dados e, portanto, incapazes de ajustar o foco para detectar o movimento dentro do campo de jogo em que humanidades fazem a diferença. A tecnocracia do jornalismo invadiu os gramados.
Também não quero dizer com isso que a Redação do Diário do Grande ABC é controlada por cavalgaduras. Longe disso. Há ali talentos que sempre vicejam na Rua Catequese. O problema é a sistemática operacional dos diários brasileiros. Todos engolfados pelo aceleramento de produção e a pressa na edição de notícias.
Regime enlouquecedor
Quem nunca frequentou uma redação de jornal diário não tem a menor ideia do quanto o desgaste mental é semelhando ao desgaste físico de um fundista. A pressão de compromisso com o fechamento editorial sincronizado com uma linha de produção sempre sujeita a intempéries reduz estatisticamente a vida útil e fisiológica de quem passa por essa centrífuga de responsabilidade com a sociedade.
Passei tanto tempo numa redação que tenho urticária só em imaginar retorno. Automatiza-se de tal maneira a rotina, contraditoriamente feita de novidades a metabolizar em forma de informação, que parece não existir mais nada do lado externo da vida, da vida lá fora.
Mas a vida lá fora da redação é que torna a ação diária um tormento delicioso. Não há jornalista que abra mão do sonho de tentar interpretar o que se passa além-redação para, num golpe de mestre, traduzir tudo em formato de notícia, de uma manchete, dessas coisas que os leitores tanto apreciam ou detestam nestes tempos polarizados.
Guerra intensa
A tarefa dos bravos jornalistas do Diário do Grande ABC nestes tempos de guerra será intensa. E precisa ser mesmo. Essa é uma oportunidade especialíssima para, repito, reconquistarem os desertores, os apressados, os insensíveis, os refratários e todas as demais categorias de leitores de papel. Contraditoriamente, tudo isso por meio de uma operação digital que se pretende massificada, porque a grande parte dessa turma fugidia frequenta muitas vezes de forma errática as páginas da Internet e as redes sociais.
Já me meti em muitas coisas pelo Diário do Grande ABC. Nem poderia ser diferente. Os primeiros contatos com a publicação em 1970 se consolidaram em longos 16 anos. Depois voltei como ombudsman e Diretor de Redação. Foi um breve período, do qual tirei o máximo proveito possível para me atualizar como elemento perecível de Redação. Valeu a pena.
Acho que agora, com essa decisão de eliminar restrições aos leitores digitais, o Diário do Grande ABC tem oportunidade de ouro de avançar no mercado. Um plano nesse sentido, acredito, aliaria o emergencial do Coronavírus ao essencial do pós-Coronavírus.
Capturando leitores
O desafio é capturar os novos e potenciais leitores. Seja na forma impressa, seja na forma digital. Ainda vai chegar o dia em que haverá um encontro de valores financeiros, hoje muito mais exceção do que regra. Plataformas digitais darão sustentação à qualidade permanente dos veículos de papel.
Talvez tenha relação sádica com o Diário do Grande ABC. Da mesma forma que torço para que volte aos tempos de um passado que não começou com a chegada do empresário Ronan Maria Pinto, estou pronto para exercitar o direito à crítica. Se por duas vezes fui ombudsman da publicação, por que o leitor acreditaria em mudança de perspectiva como jornalista e leitor ao passar avidamente os olhos sobre o conjunto de matérias publicadas?
Quando digo que o passado (de glórias) do Diário do Grande ABC (e de tantos jornais impressos regionais em todos os quadrantes do mundo) não tem relação alguma com Ronan Maria Pinto, sinto-me na obrigação de fazer um reparo. Sou testemunha ocular, auditiva, física e profissional de que, em 2004, quando adquiriu as ações daquela publicação, Ronan Maria Pinto recebeu ativos a léguas de distância da grandeza construída em décadas. Ou seja: o passado mais estelar do Diário do Grande ABC terminou antes da chegada de Ronan Maria Pinto.
Ou seja: o Diário do Grande ABC já não era o que se imaginava como empresa e também reunia passivo editorial imenso. Estava este jornalista lá, convidado que fui para comandar a redação, e sei o que encontrei. O produto final, que é o jornal que vai às ruas, sofria as dores do desgaste da gestão dos sócios-fundadores que se engalfinhavam havia muito tempo.
Aliás, quem acompanha a série desta revista digital em que mostro meus nove meses à frente do Diário do Grande ABC (entre 21 de julho de 2004 a 21 de abril de 2005) tem a oportunidade especial de observar mais que uma trajetória pessoal, mas, principalmente, a trajetória de troca de comando acionário da empresa que edita o jornal.
Primeiro passo
O processo de enfraquecimento do Diário do Grande ABC (que, repito, faz parte da regra internacional nestes tempos de adoração ao digital) talvez passe pela experiência saudável de um cavalo de pau se a gestão da publicação der uma espiada nas alternativas que podem aparecer no horizonte pós-vírus. Sobretudo se a cobertura jornalística desse período virulento seguir rotina de regionalidade de informações e análises.
O desafio ao Diário do Grande ABC do futuro está lançado pela própria direção do Diário do Grande ABC do presente. A combinação de edições robustas tanto na forma impressa quanto na digital mostraria que há muita luz diante dos olhos. Esse é apenas o primeiro passo rumo a algo que, como o vírus, é desafiador.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)