O jornalista André Marcel de Lima produziu na edição de outubro de 1997 uma bem-acabada preocupação da linha editorial de LivreMercado: um caminho conciliador entre capital e trabalho no Grande ABC que, a partir dos últimos anos de 1970, com o advento do sindicalismo liderado por Lula da Silva, iniciou trajetória de conflitos de resultados positivos e negativos que se espalharam no tempo.
LivreMercado jamais abandonou a perspectiva de que o ambiente trabalhista era um dos pontos essenciais à competitividade econômica de uma região que, naquele final dos anos 1990, seguia com o acirramento entre capital e trabalho. CapitalSocial segue essa mesma trilha.
A reportagem assinada por André Marcel de Lima é um atestado de modernidade de LivreMercado tanto quanto um tapa na cara da ignorância manifestada em redes sociais. Afinal, ainda há na praça gente raivosa que desconhece a possibilidade de uma publicação que sempre defendeu o liberalismo econômico preocupar-se também, e muito, com o equilíbrio social tendo o mercado de trabalho como um dos ramais de peso.
Esta é a 23ª matéria da série que consolida a história de 30ANOS do melhor jornalismo regional do País.
Direita, Esquerda
ou Espiritualidade?
ANDRE MARCEL DE LIMA - 05/10/1997
O conflito político e econômico entre direita e esquerda permeou o mundo neste século. Parece até espécie de mal crônico. Até bem pouco tempo, ainda fervia a guerra fria travada pelos Estados Unidos, representantes do capitalismo, e a extinta União Soviética, que encabeçava o bloco das nações avessas à economia de mercado. Um lado argumenta sobre a queda do Muro de Berlim, o outro responde com os bons indicadores sociais de Cuba, mas a discussão jamais se apaziguou. Entretanto, o embate entre as duas mais célebres polarizações do pensamento humano está a caminho de não ter mais razão de existir. Motivo: um novo sistema econômico está emergindo para substituir a ambos.
O enunciado é forte e soa loucura, precipitação ou efeito idílico-romântico especialmente para aqueles que, embebidos em radicalismos, não têm capacidade para enxergar além de suas conveniências político-ideológicas. Mas é extremamente simples de ser compreendido. Basta se desligar por um instante de tudo o que já se viu nas relações econômicas, sociais e até mesmo interpessoais para notar o novo movimento que emerge da essência humana para desembocar no mundo tangível dos negócios, com desdobramentos inevitáveis no sistema político e econômico. Esse movimento é conhecido como espiritualidade nos negócios, ou espiritualidade no ambiente de trabalho. Está engatinhando no Brasil, mas ganha cada vez mais adeptos nos Estados Unidos, Comunidade Europeia e Japão.
A constatação de que radicais de esquerda e de direita terão de encontrar outro tema para discutir com racionalidade faz parte da última análise dos pensamentos de um dos maiores especialistas mundiais em espiritualidade no ambiente de trabalho, o consultor de empresas inglês Christopher Schaefer, que esteve pela terceira vez no Brasil em setembro para dois workshops em São Paulo. Um na região de Parelheiros com o tema Liderança e o Sermão da Montanha, as Qualidades que o Líder tem que Desenvolver, e outro intitulado Disciplinas Espirituais como Caminho de Liderança e Saúde Organizacional, no Espaço Empresarial da rua Frei Caneca.
Currículo de fôlego
O currículo de Christopher Schaefer exige fôlego. PhD em economia internacional, atua há mais de 20 anos como consultor nas áreas de desenvolvimento e reestruturação organizacional, planejamento estratégico e administração de conflitos, com trabalhos que contemplam empresas dos mais diferentes perfis, instituições educacionais e organizações não-lucrativas nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, entre os quais Kimberton Waldorf School, Ford Motor Company, Seneca College e Lamb Studios. É cofundador das instituições Social Ecology Associates e Centre for Social Development, ambas na Inglaterra, e foi professor do MIT (Massachutsetts Institute of Technology), nos Estados Unidos, por muitos anos. Atualmente, Schaefer integra a consultoria americana High Tor Alliance, situada em Spring Valley, próximo à Nova Iorque. É também coautor da obra Vision in Action: Working with Soul & Spirit in Smal Organizations (Visão em Ação: Trabalhando com Alam e Espírito nas Empresas de Pequeno Porte), pela editora Lindisfarne Presse.
A idéia de que direita e esquerda caminham para o desaparecimento empurradas por novo modelo econômico que tem o conceito de espiritualidade nos negócios como gênese não surge apenas como produto de interpretação. Perguntado sobre o posicionamento do fenômeno da espiritualidade no ambiente de trabalho sob o ângulo das preferências ideológicas, Christoepher Schaefer vai direto ao ponto: "Radicalismos de um lado e de outro são cada vez mais irrelevantes. O movimento da espiritualidade no ambiente de trabalho caminha para configuração de novo modelo econômico, espécie de capitalismo responsável, no qual as empresas não só encampam o desenvolvimento pessoal dos recursos humanos como também se preocupam e participam mais da comunidade e da sociedade como um todo" -- disse.
Para compreender como espiritualidade no trabalho vai transformar o macrocosmo econômico num futuro próximo é fundamental entender o que essa expressão significa. Espiritualidade nos negócios nada mais é do que a humanização da empresa. Uma empresa espiritualizada é aquela cujo clima e ambiente favorecem o desabrochar da alma, do espírito, da personalidade e dos valores de cada colaborador, da faxineira ao big boss. Numa empresa espiritualizada, o trabalho não é visto como mal necessário da vida, o sacrifício inevitável. Não assume aquele lado negro pintado por Karl Marx, idealizador do socialismo e do comunismo e inspirador das diversas facções de esquerda, para quem o meio de produção privado não passava de arena explícita para exploração do homem pelo homem na busca da mais valia. Do ângulo moderno da espiritualidade nos negócios, o trabalho se consolida como caminho para o desenvolvimento humano e espiritual. Assim como outras atividades da vida, entre amigos ou com a família.
Venenos compreensíveis
Os equívocos de Marx envenenam o bom senso mas são compreensíveis; afinal, sua produção intelectual teve os primeiros passos da industrialização como matéria-prima. As relações entre capital e trabalho eram belicosas e precárias. Mas se ainda estivesse vivo ou pudesse enviar mensagem psicografada, certamente apagaria muito do que escreveu sob pena de parecer ridículo diante do relacionamento de patrões e empregados sob a moldura da espiritualidade.
Pesquisa conduzida em 1996 pela High Tor Alliance com empresas norte-americanas registrou inúmeras práticas para florescimento do lado humano no ambiente de trabalho: uso de momentos de silêncio no início ou término de reuniões, troca de histórias pessoais para elevar o entendimento e o compromisso entre companheiros de trabalho, leitura em voz alta de versos, poemas ou ditados populares, assim como produção de informativos internos com pensamentos da semana, distribuídos para todos os funcionários e confeccionados com a contribuição deles.
"Também está se tornando comum nos Estados Unidos empresas liberarem funcionários para causas sociais, bem como investirem na educação dos menos abastados" - comenta Schaefer. São práticas que exorcizam discursos maniqueístas de que todo empresário é aproveitador e todo trabalhador é coitado, vítima do sistema, como ainda hoje se ouve até de professores universitários perdidos no labirinto do fanatismo.
Lucro com saúde
Se espiritualidade empresarial em nada se identifica com a síndrome de perseguição da esquerda, a mesma distância a separa da extrema direita de Augusto Comte e outros ideólogos, segundo os quais o progresso econômico e material de uma sociedade justifica qualquer tipo de esforço. Christopher Schaefer deixa isso bem claro. Indagado se a espiritualidade nos negócios desponta como divisor de águas entre empresas de sucesso e as fadadas ao fracasso, questionou a própria pergunta de maneira a desarmar qualquer intenção de se colocar a espiritualidade no mesmo saco da reengenharia, do downsizing e de outras ferramentas de gestão meramente mercantís.
A resposta: "Talvez a palavra sucesso necessite de esclarecimento. O que entendemos por sucesso? Entendemos como capacidade para gerar lucros ou como sinônimo de disposição em engendrar saúde em todos os colaboradores, o que posteriormente até acaba se refletindo nos indicadores econômicos, mas não é o objetivo inicial da ação? Para mim as organizações saudáveis são aquelas cientes de suas missões e valores e baseadas na intenção de servir o próximo com eficiência através de sua especialização. A espiritualidade nos negócios é um movimento de implemento de saúde física e mental, de qualidade de vida, que é o que realmente importa. Lucro é importante, mas deve ser balanceado com saúde".
Christoepher Schaefer falou em São Paulo para executivos de organizações como Xerox, Ericsson e Tecban. Trata-se de estratégia eficiente de propagação de conceitos, porque homens de negócios são genuínos agentes multiplicadores pela condição de poder transformar paradigmas humanos. "Existem basicamente duas maneiras de gerenciar e conduzir os recursos humanos. Uma é através da ameaça e do medo, do tipo se você não faz o que eu mando, vou punir você, e o outro jeito é aquele em que o empresário ou executivo assume a postura do líder servidor. Nesse caso, seu comportamento é definido por perguntas do tipo como eu posso ajudar as pessoas a obter os objetivos que a empresa precisa atingir? É um modelo baseado na confiança, no qual o líder se coloca à disposição do grupo sem imposição de idéias e com delegação de poderes e responsabilidades" - afirma.
Aprendendo com a vida
Segundo Schaefer, algumas características destacam o líder servidor. Geralmente é humilde, alegre, consciente, interessado, sereno, justo, sabe ouvir, fala a partir do coração e ao coração, é aberto, atento, sabe que o aprendizado é cíclico e constante, não tem preconceitos, valoriza a ética, a moral e a integridade e, um aspecto pitoresco, não tem receio de ser diferente. Entretanto, esses traços não vêm como obra do acaso. São resultado de trabalho de desenvolvimento interior.
"Assim como pesos fortalecem os músculos, moral e integridade podem ser fortalecidos com prática sistemática de exercícios de desenvolvimento interior" - ensina Schaefer. Há três caminhos para atingi-lo. Um é o que o consultor chama de aprendendo com a vida, através da conscientização de hábitos e acontecimentos. Significa prestar atenção em si mesmo, transformando-se em ferramenta de benchmarking para fazer sempre melhor da próxima vez. As práticas anímicas conscientes são outra forma de obter desenvolvimento interior -- como concentração em sons da natureza, caminhadas, prática de Tai Chi, exercícios mentais de revisão do dia antes de dormir e com reflexão nas passagens mais importantes, previsão matinal -- uma agenda mental de como será o dia -- e exercícios de respiração em ambiente de quietude com mentalização dos próprios valores.
Práticas espirituais
Já as práticas espirituais incluem meditação, rezas e preces. "Pedir vantagens leva ao caminho errado. O importante é perguntar ao mundo espiritual como posso contribuir para que as coisas corram melhor para os outros. A prece ou oração deve ser feita no sentido de pensar nos outros e não em si mesmo. Se você procura algo que ajude outras pessoas, recebe mais facilmente a resposta. Se você procura vantagens próprias, vai se conectar com energias negativas" - acredita Schaefer.
O consultor assegura que o desenvolvimento interior provoca grandes mudanças nos campos do pensar, do sentir e do querer, com reflexos positivos em todos os aspectos da vida. Na área do pensar, o orgulho, a arrogância e o cinismo dão lugar ao interesse sincero pelo outro. Já no nível do sentir, é comum a polarização do gostar ou não gostar, de simpatia e antipatia. Mas quando se eleva o sentir para a empatia, tende-se a se colocar no lugar do outro. Em vez de julgá-lo, passa-se a entendê-lo. Já na base do querer, a mudança se dá do puro egoísmo para a intenção de servir e trabalhar.
"O mundo consumista e materialista nos impele no sentido do egoísmo, nos prepara para vencer à custa do perdedor, mas é possível se prevenir dessa mentalidade, dessa energia negativa, com a prática de exercícios de desenvolvimento interior" -- afirma Schaefer.
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