O texto que assinei na edição de setembro de 1997 é tão atual que bastariam algumas adaptações para ser impresso agora sem que se notasse qualquer diferença conceitual. Há 27 anos a linha editorial da revista impressa LivreMercado não deixava dúvida quanto ao liberalismo que defendia e que CapitalSocial segue a defender: a livre-iniciativa e o Estado em suas várias dimensões não podem perder o foco na solidariedade. Tanto quanto na competitividade. Só os energúmenos não enxergam essa bilateralidade.
É pura coincidência o texto de 1997 estar hoje como vigésimo-quarto capítulo da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País.
O material em questão foi selecionado no final de semana e encaixado em ordem cronológica exatamente para hoje. Algumas horas antes, ontem à noite, o Jornal Nacional deu uma folga à perseguição que move contra a presidência da República (a recíproca é verdadeira) e exibiu longa reportagem sobre grandes empresas que, preocupadíssimas com os desdobramentos mais que sombrios da peste chinesa, decidiram unir-se para mitigar os estragos sociais.
Lembro aos leitores que não precisei de nada disso para escrever o que escrevi há quase um quarto de século. Não custa rememorar que já naquele 1997 estávamos na terceira edição do Prêmio Desempenho, o maior evento regional do País, cuja largada se deu em 1994 e se estendeu até 2008, quando LivreMercado foi transferida de titularidade acionaria e editorial -- até morrer de morte matada. Morrer em termos, porque o acervo que não tem preço segue em meu poder. E o será para sempre.
Veja o que pensava este jornalista (pensava uma ova, continua a pensar!) sobre o papel de empreendedores e do Estado. Comparecem com o Jornal Nacional de ontem.
Menos estado,
mais compaixão
DANIEL LIMA - 05/09/1997
A sensibilidade social que falta à maioria dos empreendedores é a contra face da obtusidade dos administradores públicos, legisladores e acadêmicos quanto ao real papel reservado ao Estado. É tão equivocado considerar que empresa foi feita exclusivamente para ganhar dinheiro como exercitar retórica ideológica contrária ao enxugamento da União, dos Estados e Municípios. O que espanta é que estão entre os defensores de teses tão furadas tanto empreendedores privados de lastro e tecnicamente bem preparados como executivos públicos mais talentosos e que não se identificam com métodos ultrapassados de gestão de recursos dos contribuintes.
Há entre eles, numa contraposição de pensamentos, o que se poderia chamar de escassez e excesso de sensibilidade. Uns entendem que a mão invisível do mercado resolve tudo; outros que a mão grande do Estado Interventor oferece as melhores garantias de equilíbrio socioeconômico. .
Fosse o Estado nacional, em suas três esferas, menos perdulário, arrogante e voraz, provavelmente a livre-iniciativa faria aflorar sua veia social de forma menos tímida. O gerenciamento pelo Estado de parte dos recursos obtidos pelas empresas no concorrido jogo do capitalismo, cuja massa de impostos no Brasil alcança a 31% do Produto Interno Bruto, é um descalabro. O notório caudal de falcatruas originárias na União, nos Estados e Municípios bastaria para destruir devaneios quanto ao tamanho do Poder Público, mas o infantilismo dogmático dos pretensos socialistas é mais resistente que os replicantes de filmes de ficção. Eles insistem em defender o gigantismo do Estado operador, quando o bom senso indica que deveriam redobrar esforços pela robustez do Estado gestor.
Celso Daniel enxerga
O problema todo é que o jogo duro da realidade não permite mais romantismo. A quebradeira pública, em larga escala e em todas as faixas de atuação, apenas começou. Ou os homens públicos se dão conta disso e começam a agir, ou vão ver o que os espera lá na frente, antes que seus respectivos mandatos se encerrem e eles possam ser levados a sério numa eventual disputa pela reeleição. O prefeito Celso Daniel, de Santo André, bem assessorado no setor de administração e finanças, teve a lucidez de enxergar o trem-bala que vinha em sentido contrário, mesmo tendo contra si fósseis sindicais e do funcionalismo público stalinista. Mas há outros prefeitos sem o necessário discernimento técnico-operacional que vão ter o prestígio esmagado se insistirem em manter castelos de areia. Entre os quais, pelo visto, não estará Maurício Soares, de São Bernardo, vertiginoso na proposta de privatizações que só a Câmara Municipal poderia abafar diante de pressões localizadas de autopreservação dos privilegiados.
Reformas administrativas em âmbito federal e estadual são mais complexas do que as municipais. Mas todas são igualmente improváveis quando não há vontade política para executá-las. Uma equação que envolva custos e benefícios sobre a providencialidade de se meter a mão na cumbuca que Celso Daniel, por exemplo, meteu e Maurício Soares está metendo, não deve levar em conta simplesmente os imediatos dividendos político-eleitorais, linguagem que normalmente os administradores públicos alçam como prioridade nos planos estratégicos. Não há passivo maior que a combinação de demagogia e imprevidência tanto no jogo eleitoral quanto administrativo.
Acabou a inflação
Os contratempos de agora, decorrentes de medidas corajosas e de aniquilamento de paradigmas fora de moda, podem ser compensados mais à frente pelo saudável equilíbrio entre custos operacionais e investimentos em qualidade de vida dos contribuintes.
O fim da inflação estratosférica não quebrou só empresas mal-geridas e não interrompeu apenas o processo macunaímico que tinha na correção monetária sua correia de transmissão. Virou passado a farra-do-boi dos preços de amanhã serem garantidos pela lucratividade de ontem, sempre com a salvaguarda das aplicações financeiras. O Poder Público, beneficiado de imediato pela estabilidade, porque deixou de ver a arrecadação corroída pela desvalorização da moeda, descuidou-se das perdas decorrentes do outro lado da moeda, em forma de compromissos financeiros igualmente protegidos pela estabilidade.
O jogo de empurra-empurra estimulado pela inflação, cujo mico invariavelmente era o sucessor da autoridade de plantão, agora vai estourar no colo de quem estiver na chefia do Executivo, porque já não há a menor folga orçamentária para protelar compromissos e, muito menos, ambientes propícios a novas irresponsabilidades administrativas.
Dieta rigorosa
Desta forma, o novo figurino dos Poderes Públicos pauta por medidas que determinam dieta rigorosa. Foi assim que ocorreu e ainda ocorre nas empresas que resistiram ao Plano Real. Foi assim que ocorreu e ainda ocorre nos Sindicatos de trabalhadores e de empresários à esquerda ou à direita da globalização, cujas medidas saneadoras, como se sabe, nos casos dos representantes dos trabalhadores, geralmente são mais contundentes que as dos patrões. As Prefeituras locais não podem agir com a mesma cara de pau e dissimulação do penetra de um grande espetáculo. E é isso que alguns prefeitos ainda estão a ensaiar, até que sejam pilhados pela dura realidade de que em regime de moeda estável, mandraquismos não têm vez. É só esperar para ver o que vai acontecer.
Tanto para os gestores de empresas privadas enfeitiçados pelo dinheiro e alheios às questões sociais quanto aos administradores públicos alérgicos a equações matemáticas que estabeleçam relações responsáveis entre receitas e despesas, está a faltar o ponto de equilíbrio que o premier britânico Tony Blair, do Partido Trabalhista e que (atenção nem sempre bem informada produção do Programa Jô Soares Onze e Meia) nada tem de marxista, evocou recentemente numa entrevista. Vejam só o que ele disse: "Acredito em uma sociedade que combine ambição e espírito empreendedor com compaixão e algum sentido de obrigação em relação aos outros".
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)