Salvo engano (e nesse ponto não acredito em engano), a origem da expressão “Custo ABC” está nas digitais cognitivas do empresário e médico Fausto Cestari, uma das principais lideranças dos pequenos e médios industriais do Grande ABC, ocupante da direção da unidade de Santo André do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo), braço da Fiesp.
No texto que se segue, escrito para a edição de janeiro de 1998 da revista LivreMercado (então com oito anos de circulação), fiz uma análise sobre as razões potenciais e também já consolidadas de o Grande ABC ocupar o acostamento nos investimentos produtivos e de assumir espécie de primeiro lugar no desaquecimento provocado pela desindustrialização.
Quem desdenhou daquelas conclusões certamente está arrependido. A premência de avanços institucionais que pareciam ganhar força naquela temporada era a resposta esperada. Acompanhem esse que é o vigésimo-quinto capítulo da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, resultado da junção de LivreMercado e CapitalSocial.
Custo ABC está
na linha de tiro
DANIEL LIMA - 05/01/1998
O Grande ABC ingressa num novo ano, mais próximo do século XXI, insistindo em desprezar dolorida, mas elementar verdade: o Custo ABC é chama que o frio pragmatismo do capitalismo globalizado exige que se elimine. Principalmente porque se sobrepõe a outra chaga nacional, o Custo Brasil. O embate entre a Volkswagen do Brasil, a maior empregadora da região, e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC longe está da superação, depois do acordo preliminar de estímulo a demissões voluntárias. Mesmo protegida pelo regime automotivo, que assegura minguada cota de importação de veículos fabricados na Europa, EUA e Ásia, além de muralha de 70% de alíquota de imposto, as montadoras do Grande ABC, e não só a Volkswagen, precisam elevar a produtividade. A competição com logomarcas que brilham lá fora começará a despejar produtos no mercado doméstico no ano que vem, através de fábricas instaladas em alguns Estados brasileiros, beneficiadas por guerras fiscais e mão-de-obra mais em conta.
É verdade que a situação da fábrica da Volks em São Bernardo, inaugurada há 40 anos, é a mais dramática. Sua estrutura está aquém dos modernos manuais do setor automotivo. O índice de modernização tecnológica é baixo e é contraproducente o gigantismo físico de suas instalações. A fábrica Anchieta reúne 22.348 funcionários que produzem 1,5 mil veículos por dia. A Ford, que investiu milhões para atualizar a fábrica e adaptou seu mix a produtos mundiais, como o Fiesta e o Ka, produz 1.035 veículos por dia com sete mil funcionários; isto é, pouco menos de veículos com um terço do contingente empregado. A Fiat, em Betim, tem 24.100 funcionários -- quase tanto quanto a Volks -- e produz bem mais veículos -- exatamente 2,3 mil por dia.
A reação da Volks, expressa em declarações do diretor de recursos humanos Sérgio Tadeu Perez, de cortar 10 mil trabalhadores da fábrica Anchieta, foi um blefe que estremeceu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O aumento dos juros e dos impostos, embutido no pacote fiscal lançado em novembro pelo governo federal para proteger a estabilidade do Real contra especulações nas Bolsas de Valores, a partir da crise asiática, era o pretexto que a Volks precisava para aprimorar o enxugamento de uma planta industrial em sintonia com a competitividade internacional.
Fim das conquistas?
Os resultados das negociações do titular de RH da multinacional e o presidente do Sindicato, Luiz Marinho, apenas aparentemente significaram vitória dos sindicalistas da CUT, que se opõem ferozmente à alternativa de redução de salários e de carga horária de trabalho, acertada dias antes pela rival Força Sindical com o Sindipeças. A CUT julga que abriria precedente para outros setores da economia. O elenco de cortes de custos acertado entre as partes -- a começar pelo voluntariado de até 3,1 mil trabalhadores, ou 10% dos quadros da Volks no Brasil -- romperá chamadas conquistas históricas do sindicalismo vinculado ao PT.
Salários serão congelados, pagamentos de participação nos lucros ou resultados serão suspensos, 300 funcionários administrativos vão ganhar bilhete azul, o adiantamento do 13º salário quando o funcionário tirar férias vai virar folclore, a hora extra trabalhada aos domingos cairá de 200% para 100% e aos sábados de 100% para 50%, o adicional noturno será rebaixado de 30% para 20%, subsídios para plano de saúde cairão de 85% para 50%, acabará o transporte coletivo gratuito e a jornada flexibilizada tanto pode ser de quatro como de seis dias por semana, conforme a sazonalidade do mercado, entre outras propostas. Tudo isso, queiram ou não, tem nome e sobrenome: Custo ABC.
O que muitos ainda não compreenderam é que já se foi o tempo em que o mercado automotivo era predominantemente do Grande ABC. Com a Fiat em Minas, as novas plantas em outros pontos do País e a abertura comercial, principalmente na relação com o Mercosul, a vulnerabilidade regional está exposta ao menor balanço do mercado. E que a estridência corporativa do sindicalismo, embora legítima, não tem oferecido resultados práticos que possam concorrer a qualquer premiação voltada aos recursos humanos.
A relação entre emprego e salário da fábrica da Volks em São Bernardo ajuda a explicar o processo de exclusão social que se observa na região, principalmente em São Bernardo e Diadema, onde há maior concentração de trabalhadores de setores direta e indiretamente ligados às montadoras. Em 1980, tempos de porteiras fechadas, a fábrica Anchieta contava com 37.467 trabalhadores e o salário médio atingia US$ 712,19. Em 1997, o contingente de trabalhadores caiu para 22.217 (menos 60%) e o salário médio subiu para US$ 1.517,55 (mais 113%). A produção de veículos deu saltos ainda maiores, mas a relação veículos-funcionários é francamente desfavorável à unidade.
Criminalidade em alta
Como o enxugamento de quadros não é decisão isolada da Volkswagen -- Ford, Mercedes-Benz, General Motors e Scania tornaram permanente a demissão incentivada --, é mais que correto correlacionar o crescimento do desemprego no Grande ABC aos cortes de pessoal da indústria automotiva e de seu universo de empresas satélites, principalmente as autopeças, jogadas às traças da globalização sem a menor proteção do governo federal.
São Bernardo e Diadema figuram como campeãs de criminalidade no Grande ABC e no Estado. Segundo números da Seccional de Polícia de São Bernardo, que compreende também Diadema, é assustador o crescimento de delitos nos dois Municípios. A situação é mesmo calamitosa. O furto e o roubo de autos cresceram respectivamente 22% e 55% entre o ano passado e este ano. No mesmo período, furtos a residências aumentaram 47%. Furto e roubo de comércio saltaram, respectivamente, 37% e 48%. Roubo a transeunte cresceu 72%, roubo a banco 98%, homicídio 75% e estelionato 51%.
É evidente que boa parte dessa avalanche de crimes está ligada às dores de um País que desastradamente trocou o autarquismo pelo globalismo sem considerar o ritmo dessas ações. Uma espécie de estrupo econômico que atinge em cheio o Grande ABC, protegido ao longo de décadas por um sindicalismo e um empresariado de grande porte que contabilizavam para si e lançavam para ao restante da sociedade nacional os preços que mais lhe convinham dos veículos que saiam da linha de produção. Desconectar o avanço da criminalidade dos traumas da metamorfose econômica é algo que só se perdoa por ingenuidade sociológica. Principalmente porque os demais Municípios da região, menos dependentes dos empregos de montadoras e autopeças, apresentaram taxas mais amenas de criminalidade. Na média, o salto na região foi de 19%.
Muito pouco
O que se sinaliza para os próximos anos, até a virada do século, é que a região será obrigada a seguir a trilha globalizada e que o Custo ABC acabará mesmo minimizado, sob pena de novas deserções industriais. Nem mesmo o anúncio da instalação da Land Rover, subsidiária inglesa da BMW, em área ociosa da Karmann-Ghia em São Bernardo, deverá quebrar esse clima de preocupação. O investimento total de US$ 148 milhões, com suposta criação de 800 empregos diretos e indiretos, é apenas uma gota no oceano.
É claro que as autoridades públicas procuraram tirar proveito do investimento. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, Emerson Kapaz, cujas visitas já foram mais frequentes à região, relacionou o investimento da Land Rover à Câmara Regional do Grande ABC, mas isso não é exatamente a realidade. A decisão pela região independeu do governo do Estado e foi estratégica porque São Bernardo está a meio caminho do Porto de Santos, os fornecedores de autopeças estão no quintal da Karmann-Ghia e a mão-de-obra (excedente e de salários a combinar, com rebaixamento em relação às montadoras tradicionais) é de boa qualidade.
A Câmara Regional, conjunção de autoridades políticas da região e do Estado que abarca também representantes sociais, econômicos e sindicais do Grande ABC, já viveu dias melhores. Em dezembro, num show de precipitação, reuniu-se a toque de caixa para aprovar manifesto contra a onda de demissões na região. O documento é agressivo e tendencioso politicamente, porque avacalha com a política econômica do governo federal, até prova em contrário aliado do governador do Estado. Antonio Laganá, representante do governador Mário Covas, percebeu a cumbuca em que estava se metendo e não assinou o manifesto. Não havia nenhum secretário de Estado presente na formulação do documento, que, evidentemente, despreza o Custo ABC.
Considerada espécie de voo da esperança para colocar o Grande ABC em contato direto com as decisões estratégicas do Estado, a Câmara do Grande ABC já sofre fundas restrições. A chegada do ano eleitoral é observada como ingrediente suficientemente divisionista para esvaziar o calendário ainda incipiente de ações desse organismo informal, modelo de metropolização com a tutela do Estado que não agrada a várias autoridades públicas locais.
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