Imprensa

CPI da Pandemia: com qual
colunista da Folha você fica?

DANIEL LIMA - 02/06/2021

Sei muito bem com quem ficar, por concordar quase que integralmente com o que ele escreveu. Estou com o sociólogo Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana pela USP. E chuto os fundilhos de outro acadêmico, Celso Rocha de Barros, servidor federal e doutor em sociologia pela Universidade de Oxford. Ao longo de edições da Folha de S. Paulo, jornal no qual são colunistas, notam-se diferenças entre os dois colaboradores.  

Celso Rocha de Barros é um incendiário ideológico. E como todo incendiário ideológico corre o risco de congelar a inteligência – como sempre dizia Roberto Campos. Celso de Barros previu que a facada no candidato Jair Bolsonaro não teria qualquer influência nas eleições. Imaginem o carão.  

Ao escrever o que acabei de escrever juro que não quero nem devo influenciar os leitores nessa disputa virtual: com quem você ficaria ao fim desse debate virtual. Debate virtual? Ora, peguei a coluna de Celso Rocha de Barros de 29 de maio último e a coloquei em confronto direto com a coluna de Demétrio Magnoli de dois dias depois.  

Como leio todos os colunistas dos três principais jornais nacionais, não perderia a oportunidade desse confronto. Não é a primeira vez que faço essa maquinação, nem será a última. Acho um espetáculo juntar o que está separado quando o juntar o que está separado trata do mesmo assunto. No caso, o assunto é a CPI da Pandemia. E, sobretudo, as projeções de mortes evitáveis, por assim dizer. 

Quem quiser ficar com Celso Rocha de Barros que fique, mas acho que vai passar vergonha. Seria algo como torcer para esse Corinthians mequetrefe contra o Flamengo que, mesmo sem ser o Flamengo de Jorge Jesus, segue sendo o melhor time brasileiro.  

Agora, deixemos de trololó e vamos direto ao confronto. Celso Rocha de Barros escreveu sob o título “Decisões de Bolsonaro causaram, por baixo, 90 mil mortes”. Demétrio Magnoli optou por “Sob o feitiço das redes”. Como o artigo de Magnoli foi publicado dois dias depois do de Celso de Barros, acho que foi um direto de objetividade e clareza na mandíbula do exagero e da politização exacerbada. Vamos lá. Façam suas escolhas. 

 Celso de Barros  

Dois fatos apurados pela CPI da pandemia, ambos documentados, mostram, sozinhos, que o número de brasileiros que comprovadamente morreram por culpa de Jair Bolsonaro durante a pandemia já se aproxima de 100 mil. Como calculamos duas colunas atrás, 100 mil mortos é mais do que a soma das vítimas de todos os assassinos brasileiros em 2019 e 2020. A primeira decisão foi a de não aceitar a oferta de vacinas da Pfizer. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, utilizando parâmetros conservadores (isto é, desfavoráveis à hipótese de que a decisão de Bolsonaro custou vidas), 14 mil brasileiros (5.000 no mínimo, 25 mil no máximo) teriam sido salvos se a oferta da Pfizer tivesse sido aceita. Uma única decisão: 14 mil pessoas morreram por ela. 

 Demétrio Magnoli 

Na pandemia, todos os governos do mundo cometeram erros. O governo Bolsonaro, porém, cometeu sucessivos crimes contra a saúde pública. A missão da CPI é documentá-los, acusando o presidente perante os tribunais da opinião pública e da história. Mas Renan Calheiros ensaia um passo desastroso: quantificar as mortes evitáveis derivadas de ações ou omissões do governo federal. Enfeitiçado pelas redes sociais, o relator ameaça converter as conclusões numa pantomima política. ."Vamos ouvir a academia, a ciência e receber os estudos das mortes evitáveis", declarou, como quem dirige-se a uma consulta com um oráculo. Qual é o endereço da Ciência? 

 Mais Celso de Barros 

A segunda decisão foi a de não aceitar a proposta do Instituto Butantan para entregar 45 milhões de vacinas da Coronavac ainda em 2020. A mesma conta feita pelo professor Hallal estimou em 81,5 mil (80,3 mil no mínimo, 82,7 mil no máximo) o número de brasileiros que não teriam morrido se a oferta do Butantã tivesse sido aceita. Outra estimativa, feita pelo jornal O Estado de S. Paulo, mostrou que as vacinas do Butantan teriam sido suficientes para vacinar todos os idosos brasileiros até fevereiro. Entre o meio de março e semana passada, morreram 89.772 idosos brasileiros. Somando as vítimas das duas decisões, já são, no mínimo, cerca de 90 mil mortes que Jair Bolsonaro, comprovadamente, causou sozinho. Se algum defensor do governo tiver cálculos diferentes, por favor, apresente-os.   

 Mais Demétrio Magnoli   

Estudos baseados em modelos estatísticos nunca faltaram na pandemia. No caso dos modelos de longo prazo, as divergências sobre óbitos sempre situaram-se nos umbrais do infinito. Todos se recordam de Osmar Terra, que sem estudo algum profetizou poucos milhares de mortes. Muitos se esqueceram dos especialistas que, apoiados no Imperial College, previram 1 milhão de óbitos no Brasil até agosto do ano passado —e isso, bem entendido, com a manutenção das restrições sanitárias adotadas no início de tudo. O que dirão as vozes oraculares sobre as mortes evitáveis? Nesta Folha (20 de maio), um professor universitário escreveu que Israel criou o Hamas. Sobram acadêmicos dispostos a jurar que George Bush ordenou a derrubada das Torres Gêmeas. A cegueira ideológica não se circunscreve à área de humanidades. Modelos dependem dos pressupostos selecionados pelo modelador: Calheiros terá em mãos os mais desvairados estudos, desde os capazes de garantir que o governo federal tem responsabilidade por 90% dos óbitos até os que celebrarão a cloroquina como elixir da vida eterna. 

 Mais Celso de Barros  

Esses 90 mil são só o começo da história. Bolsonaro combateu desde o início a Coronavac, que só existe no Brasil por iniciativa do Governo de São Paulo e é responsável pela esmagadora maioria das vacinas aplicadas no país até agora. Além disso, vacinação é só um dos pilares do combate à pandemia. Bolsonaro não investiu em nenhum dos outros: nem isolamento social nem testagem e rastreamento. Mesmo depois de verem apresentadas todas as provas citadas acima, os senadores Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Marcos Rogério (DEM-RO) continuam fazendo o possível para esconder esses fatos na CPI da pandemia.  

 Mais Demétrio Magnoli   

A melhor régua da pandemia é o cálculo do excesso de mortes —ou seja, do total de óbitos que supera a taxa de óbitos verificada em anos recentes. A revista The Economist utilizou uma ferramenta estatística para estimar esse valor, até 8 de maio de 2021 (econ.st/3yzjzoa). Sugiro que, nos seus passeios pela ciência, Calheiros consulte o estudo. No mapa resultante, o Brasil situa-se em faixa de alto impacto (150 a 250 por cem mil), junto com EUA, Argentina, Cuba, Reino Unido, Itália e Espanha. Equador, Bolívia, Bulgária e Polônia, por exemplo, situam-se em faixa superior (250 a 350 por cem mil), enquanto México, Peru e Rússia aparecem na mais elevada (350 por cem mil ou mais). Como provar que, sem Bolsonaro, ficaríamos junto com a Alemanha (25 a 50) ou o Chile (100 a 150)? Um utópico lockdown permanente talvez reduzisse as mortes a algo perto de zero. A Suécia, que nunca fechou quase nada, mas levou o vírus a sério, inscreve-se em faixa de baixo impacto relativo (50 a 100). Se tivesse optado por lockdowns, terminaria como a Finlândia (0 a 25) ou como a Bélgica (150 a 250)? 

 Mais Celso de Barros  

Na última semana, Girão tentou emplacar o boato de que a Coronavac é feita com células de fetos abortados (não é). Marcos Rogério mentiu que outras autoridades defenderam a cloroquina ao mesmo tempo que Bolsonaro, o que só ocorreu no curto período antes de vários estudos médicos (não apenas o de Manaus, Heinze) demonstrarem a ineficácia da cloroquina contra a Covid-19. Heinze tenta desviar qualquer conversa para falar de cloroquina, que só é assunto no Brasil. Em 2020, a cloroquina foi utilizada por Bolsonaro para mandar trabalhadores para as ruas com risco de morte. Agora é utilizada por Heinze na CPI para desviar o assunto, dos crimes enormes que a população entende claramente, como boicote à vacinação, para crimes menores e mais difíceis de serem entendidos, como o curandeirismo de cloroquina. Se o único crime de Bolsonaro na pandemia tivesse sido a defesa da cloroquina, se tivesse feito todo o resto certo, o título desta coluna teria um número muito menor. Heinze não quer que investiguemos todo o resto. Eu acho que isso é crime, senador. 

 Mais Demétrio Magnoli  

Bolsonaro sabotou, pelo (mau) exemplo, o uso de máscaras, as restrições sanitárias e a aquisição de vacinas. Sob Pazuello, o Ministério da Saúde abandonou os pacientes de Manaus, divulgou o receituário curandeirístico do "tratamento precoce", recusou-se a fazer propaganda das medidas de prevenção e da vacinação. São crimes de Estado pagos com vidas —mas em número incalculável. Atirando-se à aventura de calculá-lo, Calheiros deixa-se guiar pelo clamor do "genocídio", uma acusação estúpida repetida nas redes sociais por incontáveis "especialistas" e comentaristas com agenda política. O fruto óbvio seria um relatório especulativo —ou, dito de outro modo, uma pizza com sabor radical. Ele teria o aplauso de uma minoria justamente indignada, mas ricochetearia na indiferença da parcela crucial dos eleitores desencantados de Bolsonaro. A CPI pode qualificar Bolsonaro como "genocida", jogando para a arquibancada. Ou pode escrever o epitáfio de seu (des)governo. Só não pode fazer ambos. 



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