Imprensa

Biografia do Abismo exige
leitura muito cuidadosa

DANIEL LIMA - 22/12/2023

Pretendia produzir um texto mais detalhista. É isso que merece o livro “Biografia do Abismo”, de Felipe Nunes e Thomas Traumann. Expandiria intervenções que fiz recentemente, diante de publicação de uma entrevista da Folha de S. Paulo com um dos autores, o primeiro citado acima. Vou ficar devendo.  

Quando voltar em janeiro, porque devo estar de plantão apenas até hoje, talvez volte ao assunto.  Não é certo que isso aconteça diante do que escreverei agora. Mas como sou escravo confesso de detalhes que procuram explicar posicionamentos, talvez volte ao assunto.  

Isso não significa que, além do que opus como invasor da entrevista da Folha, não possa dar algumas pinceladas hoje, abaixo da linha do Equador de simples enunciados. Há comichão de ombudsman por natureza e inconformismo. Quando isso é acionado, a impaciência assume o posto de comando. Não dá para segurar.  Até porque o efeito terapêutico-desopilador não atendido se transforma em inquietação psíquica.  

CONTRAPONTO ESSENCIAL  

Biografia do Abismo teve como contraponto uma provocação mais que justa. Minha réplica preliminar em forma de “Biografia da Redenção”, um dos textos mais lidos deste dezembro, é uma reunião de enunciados aparentemente contraditórios, mas de fato, esclarecedores. Poderia ser também “Biografia da Indignação”.  

O fato é que Biografia do Abismo é um sofisma. Já vem deformado. Faz louvação a um antigo Flamengo versus Madureira, de aconchegos e malandragens de parceiros de longa jornada supostamente democrática.  Não preciso dizer que o Madureira metafórico era a população brasileira. E que Fla-Flu atual é, com todos os defeitos, uma atmosfera em que a rebeldia vale mais que o anestesiamento.  Os autores preferem condenar o Fla-Flu sob um prisma insustentável, de que estaríamos melhor antes do que agora.   

Os beneficiários do antigo regime falsamente democrático lamentam o Fla-Flu que tanto condenam porque preferem a estratégia de vitimização. No fundo seguem a se beneficiar da resiliente e longeva estrutura de poder. Não toleram embates que os retirariam do pedestal de comodismo. 

VIESES DOUTRINÁRIOS  

Biografia do Abismo tem, portanto, ingredientes que, quando expostos, recomendariam aos leitores algo como aqueles alertas que saltam às primeiras imagens de produções cinematográficas. 

O conteúdo de Biografia do Abismo não reserva objeção a qualquer faixa etária, mas não é recomendado a quem é criterioso com condições econômicas básicas.  

Os analfabetos econômicos não se sentirão frustrados. Temos um caso específico de alienação atávica, típica de cientistas políticos que mal sabem o que significa PIB e, mais que isso, o quanto a Economia influi no comportamento humano em qualquer pedaço do universo. Principalmente quando se descobrem tantas falcatruas. As mesmas falcatruas com dinheiro público, principalmente, que os autores de Biografia do Abismo praticamente ignoram. Só faltaram execrar a Operação Lava Jato, tomando-se como base crítica os desvios do Ministério Público e do Judiciário, desprezando-se a massa demolidora de provas e testemunhos.  

POLARIZAÇÃO UNIDIRECIONADA  

Também a leitura de Biografia do Abismo é um vigoroso estimulante à descoberta do quanto se subestimam o contraditório dos minimamente versados em ideologias. Esse é um componente fortíssimo no conjunto de páginas. Somente cegos ideológicos acreditam-se intérpretes exclusivos de saberes humanos.  

Indo mais diretamente aos ponto: são vastos e complexos os quesitos que serviriam à sugestão de que há potencialidade de a leitura causar danos de arrependimentos.  

Comprei “Biografia do Abismo” assim que li a entrevista da Folha de S. Paulo. Consumi o produto em 48 horas intercaladas. O que me chamou atenção particular foi a possibilidade de enveredar por pesquisas de opinião pública, uma de minhas taras. E, é claro, a polarização entre Lulistas e Bolsonaristas.  

Sabia exatamente o que poderia encontrar. Conheço os dois autores o suficiente para instalá-los entre a maioria dos jornalistas e acadêmicos de esquerda. Estava, portanto, preparadíssimo para a leitura-embate.  

CONFLITOS BÉLICOS  

Aprendi na vida profissional que não há sentido algum em, como leitor voraz que sou, buscar apenas fortalecer minhas convicções de liberalismo com responsabilidade social tendo como premissa devorar publicações de autores igualmente liberais e eventualmente com sensibilidade social.  

O senso crítico que acionei à leitura do livro aplico diariamente a colunistas dos jornais brasileiros. Faço deles todos um sarapatel de degustação prazerosa. Não importa a coloração ideológica que entregam a cada parágrafo. Mas não arredo pé de desconfiar de tudo. A ideologia congela a mente dos que a expõem, mas não pode congelar a mente de quem a consome.  

A vida só tem graça quando confrontos bélicos de conhecimento sobrevivem à insensatez. Conflitos bélicos de conhecimento quer dizer que se trata mesmo de armar-se para uma guerra psicológica que coloca dois pontos diametralmente opostos na arena de mensuração e iminente sedução. É assim que se dá o que seria a explicação para a Biografia do Abismo. A narrativa se confunde com prestidigitação.  

O que li e li bem lido é que os autores reforçaram o tempo todo o embate direita versus esquerda. Carregaram as cores a favor do outro lado do lado que signifique o lado da esquerda. Ótimo que tenha sido assim.  

Minha leitura se tornou ainda mais viva, mais previsivelmente contestatória, mais enriquecida de elementos diversos com aquilo que professo com o pragmatismo desprovido de fundamentalismo.  

Um dos conselhos ou orientação que sempre transmiti a meus filhos também consumidores das mesmas cores esportivas que adotei desde criancinha é que não caiam na esparrela do unidirecionamento de avaliações típicas do extremismo esportivo que se reproduz em vários áreas humanas.  

LINGUAGEM DISCRIMINATÓRIA  

Aliás, por falar em “extremismo”, eis um verbete que, entre tantos, quando levado a cabo no campo político, entrega a identidade ideológica do usuário.  

Entender que a derrota do time pelo qual a gente torce se deve exclusivamente ou majoritariamente aos equívocos de nosso time é reducionismo que sempre gera equívocos. O instinto de autoproteção sempre fala mais alto.  

Biografia do Abismo trata disso, mas o faz pendendo sempre subjetivamente para um dos lados do espectro ideológico. Uma contradição que interfere na própria concepção da obra. Não haveria calcificação, termos utilizado na entrevista de um dos autores, e também na obra, caso houvesse verso e reverso ideológico.  

O princípio de que há sempre duas equipes correndo atrás do sucesso e que reações e contrarreações técnicas, táticas, emocionais e mesmo ambientais pesam no conjunto da obra do resultado final pode não ser agradável a quem enxerga o jogo pelo buraco de fechadura da idolatria.  

LEITURA INDISPENSÁVEL  

É com essa perspectiva, a perspectiva do confronto de ideias, que o livro Biografia do Abismo deve ser levado às férias em qualquer canto do planeta. Talvez o faça se dispuser de tempo a uma repassada geral, observando-se os códigos de anotação com que transformo cada livro em algo indecifrável aos leigos. Tenho minhas manias de intervir com canetas fosforescentes e sinais gráficos para construir uma espécie de edição particular à conexão, compreensão e produtividade do que metabolizo.  

Sei que o leitor quer uma espécie de breve manual de recomendações sobre Biografia do Abismo. Não posso descartar a medida.  

Precisaria de mais tempo para algo mais bem elaborado. Os festejos de fim de ano quebram a rotina de quem vive há quase três anos enclausurado em casa. Isso mesmo: saí apenas quatro vezes nesse período, todos me ocupando de eventos.  

Vamos então a alguns pontos que, ao invés de desestimular a leitura de Biografia do Abismo, deveria intensificar o desejo de compra e consumo – com a vantagem de que o leitor destas linhas teria um mapa crítico já elaborado e, portanto, sujeito, esse mesmo mapa, à intensificação de um escrutínio mais agudo, porque previamente desvendado. O livro Biografia do Abismo tem as seguintes características básicas, resultado de uma curadoria apressada, mas segura:  

 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 

Temos um texto monótono que parece extraído da Inteligência Artificial. Segue-se uma toada típica de coração de atleta, sem grandes oscilações. É pragmático no sentido de não ter vaidade estilística. A autoria típica de uma máquina poderia gerar a ideia de que a restrição crítica tem vínculos com eventual ojeriza a modernidades. Não é o caso. Prefiro mesmo autores comoventes, devastadores, inquietos, profundos, acrobáticos mas, ao mesmo tempo, simples, objetivos, instigantes. Prevalece na obra o academicismo transparente, objetivo, e, por assim dizer, Alckminiano.   

 GLORIFICAÇÃO JURÍDICA 

Prevalece uma maldisfarçada glorificação irrestrita e covarde do Judiciário brasileiro, sabidamente uma ducha de água fria em tudo que se espera de uma democracia harmônica entre os três poderes. Há pouquíssimas menções ao Supremo Tribunal Federal e quando o faz não se aprofunda. Mais que isso: foge como o diabo da cruz como fomentadora do ambiente beligerante da política e da sociedade. Um dos autores, especialista em pesquisa, jamais poderia deixar de introduzir um capítulo sobre as pendengas do Judiciário nesse período de “Biografia do Abismo”. Se o fizesse, escalaria dois valores monumentais:  o Supremo está no centro do furacão de uma esbórnia midiática generalizada e a reprovação a essa mesma instituição ultrapassa o conceito de Fla-Flu lamentado pelos autores ao se encaixar em algo muito mais condenável, segundo a mesma ótica dos autores. Ativismo seria o primeiro de muitos adjetivos a definir o quadro.  

 DADOS EM CONFLITO 

Conta a obra com dados contraditórios que nocauteiam o próprio enunciado expresso na capa. Biografia do Abismo trata do que os autores chamam de calcificação do ambiente nacional, que divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. Entretanto, o livro não reproduz estatisticamente o que tanto enfatiza. Uma determinada ponte numérica seria a comprovação de que o País está dividido entre Lulistas e Bolsonaristas, quando de fato, tecnicamente, os dados são contestáveis. Ou seja: quem não tem dúvidas de que o título do livro expressa a realidade social no País, como acredito, é surpreendido com números impressos no livro. A banda estatística que aproxima os dois lados como síntese do estágio de separatismo social não toca na proporção imaginada. Menos de um terço estaria em posição de antagonismo visceral.  

  ORIGEM E CAUSA 

Parece bobagem, mas a equação que coloca a disputa eleitoral do ano passado e as pesquisas mencionadas como prova provada de que temos sim um processo de calcificação politica no País, ou seja, de separação implacável entre Lulistas e Bolsonaristas, não é exatamente a conclusão-síntese mais adequada. Os autores perderam a mão e com isso levaram para o título da obra uma troca entre origem e consequência. Traduzindo: a polarização política e comportamental no Brasil não é consequência do fenômeno eleitoral recente, mas justamente o inverso: as divisões da sociedade entre direita e esquerda, latentes neste século, principalmente a partir das manifestações de 2013, são a estrutura dorsal dos resultados eleitorais, não o inverso. Os autores poderiam ter lançado o livro quatro anos antes. O encaixe temporal seria o mais adequado, porque não se trata de um fato novo ou relativamente novo, mesmo quando se volta no tempo e se registra o resultado das eleições presidenciais de 2018.  Por isso e também por conta disso, ao contrário do que os incautos imaginam, o fervilhar da direita não é um fenômeno passageiro, como recentemente a Folha de S. Paulo confessou em editorial ter-se iludido com isso. O que se tem é a cristalização de uma sociedade em boa parte conservadora que, já inconformada com a classe política e o Estado malversador, decidiu ir adiante nas urnas, imantada por um fenômeno popular chamado Jair Bolsonaro. Como o fora, anteriormente, outro fenômeno popular, Lula da Silva, ao revolucionar o campo de pobres e miseráveis com o Bolso Família. Portanto, não são as urnas eleitorais recentes fontes calcificadoras do ambiente nacional, mas consequência de movimentações muito anteriores. A sociedade expressa a calcificação nas urnas eleitorais. Não se pode confundir origem e destino.  

 ESTADO MALVERSADOR 

Por serem produtores de diagnósticos e constatações de cunho social desconectados de realidades mais abrangentes, os autores não deram a devida atenção aos estragos que o Estado brasileiro provoca há muitas décadas. Ignorar o peso de instâncias públicas controladas em larga margem por administradores corruptos é algo como esquecer no vestiário a bola de um jogo de futebol. Não tem sentido. Mas os chamados cientistas políticos vinculados a causas e não integralmente também às motivações que fermentam o tecido de desigualdade econômica e suas consequências gravíssimas são assim mesmo. Eles não observam o óbvio. Não custa lembrar alguns dados atuais, abordados ainda recentemente por dois professores da Fundação Getúlio Vargas – Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso.  Após a redemocratização, o Estado decidiu implantar um amplo programa de assistência social envolvendo entre outros, a saúde universal via SUS, a aposentadoria rural precoce (praticamente) não contributiva (9,5 milhões de beneficiados), o Benefício de Prestação Continuada (totalmente) não contributivo (4,7 milhões), e o Bolsa Família (21,3 milhões). Em 2008, criou-se o MEI cuja contribuição simbólica para o INSS é de apenas 5% do salário mínimo (13,2 milhões de participantes), mas assegurará um salário mínimo de aposentadoria a seus aderentes. Segundo os autores do estudo, o custeio desses programas se fez via aumento da carga tributária federal, que passou de 15% do PIB em 1991 para 20% em 2000, chegou a atingir 23% em 2007 à véspera da crise do subprime, tendo-se estabilizado em 20%. As principais fontes são a alta contribuição patronal sobre a folha salarial, que estimula a informalidade do trabalho, a elevada tributação sobre lucros de empresas, que desestimula investimentos, além de outros pesados impostos federais (PIS, Cofins e IPI) que encarecem o custo de vida de toda a população. Governos estaduais e municipais também avançaram sobre os bolsos dos contribuintes.  

 ENVIESAMENTO IDEOLÓGICO 

Os autores pretendem o tempo todo, sempre que uma brecha semântica ou não se apresenta, tornar o movimento de direita conservadora uma página denunciatória à criminalização de instâncias legais ou de forma subliminar à conscientização dos consumidores da obra. Há uma profusão de expressões típicas do esquerdismo desclassificatório ou redutoras de barreiras de contenção às características do outro lado do campo ideológico. Há em contraposição à intolerância sempre patenteada como fonte de pecados da direita, o outro lado da recíproca verdadeira mas negada, quando não disfarçada, de mitigação da responsabilidade da esquerda. Há, portanto, prévias definições sobre vítimas e criminosos no ambiente politico a contaminar as relações sociais. Como se sabe, não há santo em nenhum dos templos políticos.  

 PARAISO TROPICAL 

O livro também comete o pecado capital de subestimar uma equação que centraliza e torna fértil a mobilização da sociedade. A saída do armário da sociedade então negligente, quando não omissa, ao reagir aos imperialistas que dominavam o cenário político e institucional do País, foi totalmente ignorada – ou jamais esteve à altura editorial de um contexto solidamente reativo. O movimento ganhou subliminarmente o rótulo de crime coletivo de uma parte da população à direita. Ou o título da obra (Biografia do Abismo) não deixa essa mensagem mais que evidenciada? O Estado corrupto que gerou operações policiais espetaculares de contenção de roubalheiras que capturaram instâncias supostamente democráticas do País está na raiz da calcificação apregoada, mas erroneamente diagnosticada. É uma pena que uma versão digital do livro não esteja disponível. Com o uso da tecnologia seria possível localizar em instantes tanto a quantidade como a qualidade de trechos relativos à podridão institucional do País como massa crítica à insurreição levada às urnas. Os autores passam a certeza de que a versão atual de Fla-Flu é um risco imensurável a atingir um paraíso chamado Brasil. Ou seja: que a situação de beligerância social seria um despropósito ante o patamar de sucesso do modelo político e econômico que faz do País um recorrente ocupante dos melhores postos em diferentes rankings internacionais.  

UMA OUTRA BIOGRAFIA  

Lamento que não possa utilizar mais detalhadamente os insumos do próprio livro como contra-argumento aos enunciados explorados meticulosamente. O que temo em Biografia do Abismo é exatamente o que se esperava: a festa de lançamento contemplou aplausos de uma parte de representantes de uma sociedade dividida politicamente com ramificações deletérias no ambiente nacional. Quando a lista de convidados é compulsoriamente direcionada a um espectro da sociedade, ou mais propriamente de parte dos mandachuvas e mandachuvinhas de determinado espectro político-ideológico, o que temos é a confirmação de uma obra tutelada pela agenda retroalimentadora de um enviesado estágio de iniquidades.  

Como escrevi no texto anterior, na condição de penetra confesso da entrevista de Felipe Nunes à Folha, em contraponto à exploração metafórica e incriminadora de que o País vive um ambiente político de Fla-Flu de extrema nocividade social, de fato saímos de um confronto entre um time grande e um pequeno (Um Flamengo versus Madureira) de uma falsa democracia que contava com Lulistas e Tucanos a dividir galhardamente os confrontos amistosos para controlar o País. Até que o Mensalão e em seguida o Petrolão botaram tudo em pratos limpos por determinado período. A versão Biografia da Redenção é muito mais apropriada. O tratado discreto entre opositores de araque perdeu espaço para a barulheira às vezes um pouco acima do tom de confrontos que derrubaram as cínicas barreiras de contenção de um Estado vilipendiado em nome de suposta harmonia entre poderosos podres poderes. 



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