No livro Complexo de Gata Borralheira que lancei em 2002 e que teatraliza com leveza o sentimento de inferioridade do Grande ABC em relação a São Paulo, não deixo de mostrar que São Caetano é um território à parte da região. Por estar mais próximo da Capital e por tantas outras razões, inclusive o processo separatista de Santo André, ao qual pertencia até meados do século passado, São Caetano é cultural, política e economicamente menos sensível a preceitos de regionalidade.
Quando escrevi aquele livro, Luiz Tortorello era prefeito da cidade. Um prefeito essencialmente bairrista, demarcador do espaço municipalista. O sucessor José Auricchio Júnior tem olhar mais amplo, mas não pode cair na armadilha de uma modernidade que o afaste de seu próprio povo, que, afinal, é quem lhe oferece elevados índices de aprovação como contrapartida à gestão de seis anos. São Caetano é e sempre será espécie de principado. O estudo realizado há 10 dias pelo Instituto Unidade de Pesquisa, reproduzida neste espaço sem análises mais profundas, é prova disso.
Vejam o seguinte enunciado da pesquisa:
Quando se colocam os resultados em termos regionais, ou seja, acumulando os resultados individuais por Município, o placar é o seguinte:
Esses números querem dizer que São Caetano, embora muito menos expressiva na quantidade de entrevistas realizadas, seguindo-se procedimento estatístico de representatividade demográfica, chegou na frente dos demais municípios.
Os números que retratam o sentimento regional não dão, entretanto, a ideia do que seja morar em São Caetano para quem mora em São Caetano.
Vejam o placar em termos de percepção de qualidade de vida; ou seja, o resultado Município por Município, com números que retratam o sentimento local. A pergunta foi exatamente a seguinte:
Chamo a atenção dos leitores para que procurem memorizar os números acima. Não estão aí por acaso, podem acreditar. Há contexto histórico que cerca cada avaliação. São Caetano está disparadamente adiante dos demais municípios. Ninguém ama mais suas próprias cores do que São Caetano.
O que causa surpresa é a posição de Santo André. Ou seria mesmo surpresa, porque, durante 30 anos, entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 2000, Santo André foi a cidade brasileira que mais perdeu riqueza. Houve elevadíssima taxa de mortalidade das indústrias. Sem contar deserções. A quebra da identidade industrial de Santo André abalou intensamente seus moradores.
Lembro-me que sob o governo de Celso Daniel a administração de Santo André contratou pesquisa para entender o que se passava com os moradores. Os resultados foram mantidos a sete chaves, mas escorregaram algumas informações não por conta de indiscrições, mas de medidas profiláticas.
O principal foco da ação de planejamento estratégico procurou debilitar o gigantismo do sentimento de viuvez industrial. Tanto que o lançamento do Eixo Tamanduatehy, que incorporava a contemporaneidade de indústria de tecnologia de ponta, áreas residenciais e equipamentos públicos, se deu sob vigorosa artilharia de marketing. Celso Daniel virou saudade e o projeto praticamente foi desativado. Restaram apenas alguns fiapos de investimentos. Agora o que se anuncia é algo completamente diferente para espaços que seriam ocupados pelo projeto Cidade Pirelli.
Diadema e Mauá também estão mal-posicionadas na classificação regional de auto-estima. Talvez a melhor explicação seja a associação de elevadíssimo índice de migrantes e as demandas por infraestrutura social e material. Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra não foram afetados na mesma intensidade pela enchente demográfica, mas também sofrem com índices pouco satisfatórios.
O trabalho realizado pelo Instituto Unidade de Pesquisa é apenas um aperitivo estatístico que as autoridades públicas do Grande ABC deveriam abraçar para promover algo muito mais profundo em termos de comportamento social na região.
Enquanto o Clube dos Prefeitos não se mobilizar para encontrar uma zona de prospecção que possa contribuir para o entendimento dos rumos do Grande ABC, a probabilidade de seguirmos em meio ao breu de ações empíricas não se dissipará. Ou estou enganado ao atribuir ao Clube dos Prefeitos a condição de principal instância sobre a qual se depositam as maiores esperanças de uma regionalidade produtiva?
Precisamos sim ir à fundo para detectar todos os motivos que — e aí entra uma outra indagação da pesquisa — nada menos que 56,5% dos moradores do Grande ABC não teriam dúvidas em bater asas em direção à Capital, ao Interior do Estado ou a outros Estados, caso o desejo de mudança pudesse ser efetivado. Ou não é intrigante que, mesmo com mais de 80% de auto-estima municipalista, mais da metade dos moradores de São Caetano (exatamente 52,7%) estariam dispostos a mudar-se da cidade, índice semelhante ao do Grande ABC como um todo?
Insisto na tecla de que o Clube dos Prefeitos precisa sair da pasmaceira burocrática de dezenas de agrupamentos temáticos que não fazem outra coisa senão tentar descobrir o sexo dos anjos. Vá lá que esses grupos formados por funcionários públicos e representantes da sociedade construam algumas fortificações teóricas que possam ser levadas ao campo da praticidade. O que se pergunta é simples: até que ponto esses trabalhos poderão ser catalogadas como produtivos de fato se a realidade comportamental não se encaixar nesses estudos?
Por exemplo: quais seriam os nós górdios que fazem de nossa auto-estima algo comparável ao obeso que assiste a um desfile de moda? Se nem São Caetano escapa à tentação de mudança do Grande ABC, o que dizer dos demais?
É claro que o contexto de metrópole em que está inserido o Grande ABC afeta sobremaneira a qualidade de vida e a paixão regional. Nem a Capital escapa dessa enrascada, embora por motivos diferentes. Jamais conseguiremos como região obter os mesmos números internos de São Caetano, mas estamos extrapolando os limites da insatisfação com índices tão abusivos.
Será que não vale a pena botar o dedo nessa ferida? Será que a síndrome de avestruz prevalecerá?
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11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS