O esvaziamento industrial de Santo André em 25 anos (da década de 1970 a meados dos anos 1990), seguido de estabilização nos últimos 15 anos, causou variadas sequelas sociais. A principal é o refluxo de cérebros e o esfacelamento da cidadania. Nem todo mundo se dá conta disso. A tendência dos políticos é poupar o objeto de cobiça eleitoral e endereçar a metralhadora de críticas aos adversários. Dessa forma, empurra-se com a barriga da imprevidência os reais problemas municipais e regionais. Santo André é em primeira escala o símbolo da quebra do dinamismo social da região. São Caetano vem a seguir, com menos impacto mas nem por isso livre de choques comportamentais.
Aprendi com um professor de economia que já se foi deste mundo, e com o qual mantive relacionamento amistoso até o dia em que ele se meteu numa administração pública e começou a desdizer o que dizia com convicção absoluta, aprendi com aquele professor que um dos sintomas do esvaziamento produtivo de Santo André, principalmente, e também de outros municípios do Grande ABC, era o fluxo de veículos em direção a outras cidades da Grande São Paulo, inclusive do próprio Grande ABC.
Eram meados dos anos 1990, quando o Brasil motorizado não exibia as estatísticas de agora, resultado de veículos financiados a perder de vista. Já naqueles dias, engarrafamentos que serpenteavam o sistema viário a cada nova manhã e a cada final de tarde denunciavam a reversão da mão de direção da matriz econômica mais importante à mobilidade social. A indústria principalmente de pequeno e médio porte, debandara de Santo André — e também de São Caetano.
Hoje, do alto do 14º andar de meu escritório no Centro Empresarial Pereira Barreto, divisa de Santo André e São Bernardo, com ampla visão do horizonte que se descortina, inclusive com um vão urbanístico providencial que me possibilita saber se minha residência no Jardim do Mar sofreu um novo blecaute ou há energia elétrica disponível para assistir a mais um jogo de futebol, hoje e aqui do alto sou um espectador privilegiado da evasão e da mortalidade industriais de Santo André ao longo dos anos.
O fluxo de veículos de volta da Capital e mesmo de outros municípios locais é intenso. Esse é apenas um dos corredores viários a esfregar na cara até que ponto chegamos. Santo André, sempre Santo André em primeiro lugar por conta do gigantismo populacional em relação a São Caetano, também fortemente desindustrializada, Santo André tem uma parte substancial da população economicamente ativa distante do cotidiano municipal importantíssimo à oxigenação da cultura social. São munícipes apenas de final de semana.
Não estou fazendo nenhum tipo de terrorismo com essa assertiva. Culpem os veículos que estão lá embaixo, na Pereira Barreto, na Via Anchieta, na Avenida dos Estados, na Winston Churchill e em tantos outros endereços que dão vazão aos trabalhadores e executivos. São aqueles veículos que não deixam cair no esquecimento a viuvez do outrora celeiro industrial, como registra o hino do Município, desgastado pelo tempo.
As consequências de uma Santo André debilitada na estrutura econômica são terríveis. Não é por acaso, entre outros estragos, o refluxo de torcedores do Ramalhão. E as atividades culturais, o que dizer? E os guetos de resistência aos desmandos dos poderosos? E a falta de renovação de lideranças? E a perpetuação das mazelas?
Santo André, principalmente Santo André, é o Município asfixiado pelos congestionamentos que o cercam e o controlam, quando não o descontrolam e o solapam.
Lembro que o então prefeito Celso Daniel, durante o segundo mandato, por volta de 1999, mandou medir a temperatura de autoestima de Santo André. Eu mesmo produzi a matéria para a revista LivreMercado. Eu mesmo vou resgatá-la dia desses nos arquivos digitais.
Lembro que por conta disso Celso Daniel lançou o projeto Eixo Tamanduatey entre outros motivos porque sentiu que precisava resgatar a confiança do morador de Santo André, abalada pela debandada industrial. Tratei do assunto tendo como foco conceitual o que chamei de viuvez industrial de Santo André.
Já na época aquele que foi o mais instigante agente público que o Grande ABC já produziu procurava encontrar saídas para uma cidade debilitada na alma, no corpo e nos músculos. Na alma da autoestima, no corpo econômico e nos músculos culturais.
Certamente não faltará quem poderá compreender os congestionamentos em Santo André tanto de manhã quando no final de dia como algo abstrato demais à sustentação do esvaziamento econômico local. É claro que não se trata apenas disso.
Quaisquer números que se cruzem tendo o passado como âncora e o presente como plataforma darão sustentabilidade à conclusão. Aliás, sobre isso, os números propriamente ditos, me debrucei também ao longo dos últimos 20 anos. Enfrentei, inclusive, a ira de gente que não quer admitir os percalços por que Santo André (e o Grande ABC como um todo, embora não tão acentuadamente) passou no período.
Por fim, para que não enxerguem estas linhas como mais um capítulo de possíveis imprecisões e abstrações, eis que comparo o Valor Adicionado gerado em 2009 pela indústria de transformação de Santo André e o potencial de consumo. Valor Adicionado é espécie de PIB (Produto Interno Bruto) sem os impostos líquidos. Potencial de consumo é o acumulado de salários e renda da população disponível para gastar numa determinada temporada.
Nenhum Município do Grande ABC conta com proporção tão contrastante como Santo André, nem mesmo São Caetano. Em termos de participação regional, o Valor Adicionado de Santo André não passa de 14,14% de tudo que é produzido no Grande ABC, ao passo que o potencial de consumo alcança a 29,82%. Ou seja, a incidência do acumulado de riqueza é duas vezes superior ao da geração de riqueza. Embora os números do potencial de consumo sejam de 2011, e os números do Valor Adicionado de 2009, a comparação tem sustentação lógica.
São Caetano vem logo a seguir nesse embate: com participação regional de potencial de consumo de 8,20%, conta com 12,70% de Valor Adicionado. Relativamente, menos que Santo André.
Os dois municípios têm desempenho oposto ao que se registra em São Bernardo, onde o Valor Adicionado regional de 46,32% é superior ao potencial de consumo, também regional, de 32,45%. Os demais municípios registram participações semelhantes nos dois quesitos: Diadema tem 12,90% da região em potencial de consumo e 13,73% em Valor Adicionado; Mauá tem 12,20% e 11,18%; Ribeirão Pires tem 3,90% e 1,59% e Rio Grande da Serra 0,011% e 0,033%.
A tradução para quem ainda não conseguiu me entender é que Santo André e São Caetano mostram um conjunto de habitantes com mais salários e renda no consumo no confronto regional do que geram de riqueza na indústria de transformação, entre outros motivos porque contam com trabalhadores que exercem em maior escala atividades em outros territórios. Os recursos monetários das atividades profissionais são contabilizados nos municípios nos quais residem.
Os engarrafamentos que cercam principalmente Santo André de manhã e à tarde roubam mais que cérebros de competências técnicas de empresas evadidas: mobilizações silenciosas ou estridentes de cidadania também viraram pó ao sabor da revoada industrial.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!