Está certo que o empresário Milton Bigucci excede todos os limites na Província do Grande ABC quando se trata de vender ilusões no mercado imobiliário, mas o setor, como tenho dito e reiterado, não é mesmo flor que se cheire. Nem instituições que parecem sérias o são de fato, ou não se comportam com clareza, transparência e metodologia desejadas. Querem um novo exemplo?
Na semana passada os jornais da Capital deram manchetes sobre o balanço do mercado imobiliário em várias das principais capitais brasileiras, inclusive São Paulo. O Estadão, que tem uma agência de notícias para propagar informações a todos os rincões do País, alimentando uma rede de veículos impressos, eletrônicos e digitais, abriu a seguinte manchete de página: “Imóveis residenciais subiram 26% em 2011, mas alta dos preços já perde ritmo”. Eis a abertura da matéria:
Os preços dos imóveis residenciais subiram em média 26% em 2011, porém o ritmo de alta é cadente desde maio. A informação é do índice FipeZap, que acompanha o valor médio do metro quadrado de apartamentos prontos em seis capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Fortaleza) e no Distrito Federal. Em dezembro, a alta foi de 1,1%, a menor do ano, após um pico de 2,7% em abril. (…) A grande questão, segundo ele (Eduardo Sylberstajn, coordenador do FipeZap) é quando esse movimento de acomodação vai terminar. “Os preços podem caminhar para mais alguns meses de desaceleração e ficarem relativamente estáveis ou subirem um pouquinho”, observa, “ou pode ocorrer uma virada e os preços caminharem para alguma correção para baixo”. Em dezembro, os preços dos imóveis residenciais em São Paulo tiveram aumento médio de 1,4%, e fecharam o ano passado com valorização de 27%.
O que vem a seguir
Observaram os leitores que até aí, tudo normal na matéria do Estadão? Há comedimento do entrevistado, alertando sobre o ritmo em queda, embora, cá entre nós, esse quadro é acentuado já faz um tempão.
Onde, afinal, estaria o problema, então, a ponto de entender este jornalista que há mandraques soltos por aí, não apenas na Província do Grande ABC?
Simples, simples e simples: reparem nos seguintes parágrafos da mesma reportagem do Estadão:
O índice FipeZap é feito em conjunto pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo e pelo Zip Imóveis. O índice refere-se aos preços ofertados e se baseia no banco de anúncios de imóveis do Zap, com cerca de 200 mil registros mensais. “Em qualquer país do mundo construir um índice de preços de imóveis é um grande desafio, principalmente por causa da dificuldade em se obter dados confiáveis”, diz Zylberstajn. “No Brasil, esse desafio era ainda maior. Os registros e os cartórios de imóveis não têm bancos de dados públicos, e mesmo que tivessem, sabe-se que muitas escrituras não refletem os valores de fato transacionados”.
Verdade verdadeira do coordenador da pesquisa. Mas o especialista se refere a apenas um lado da moeda, o lado da moeda de que geralmente comprador e vendedor fazem um acerto de contas e o valor do imóvel negociado aproxima-se o máximo possível do valor venal, ou seja, do valor legalmente mínimo à escrituração no cartório, e abaixo do praticado no mercado.
O outro lado da moeda é que o banco de dados FipeZap também é impuro, imperfeito, manipulado por vendedores de imóveis, as grandes incorporadoras. Os valores anunciados não são os valores negociados, principalmente em tempos duros, como os que começam a se apresentar. Mantêm-se artificialmente os valores monetários no portal de imóveis como fórmula de balisamento das transações, para não dizer com mais objetividade que é um mecanismo que pretende orquestrar o mercado. Em período de excesso de oferta e recuo da demanda, como o atual, os valores reais do mercado imobiliário passam por critérios de rebaixamento, embora, oficialmente, no site, permaneçam aparentemente intocáveis.
Conheço gente graúda e também gente mais ou menos, até mesmo miúda, que está rebolando faz muito tempo para transformar concreto em dinheiro, a maioria alimentada pela ambição de valores divulgados nos portais de Internet. Os preços inicialmente solicitados estão salgadíssimos. Entretanto, como não conseguem receptividade, porque já caiu a ficha de que há excessos, medidas corretivas começam a surgir. Mas isso não chegou ainda e possivelmente demorará a chegar no portal de imóveis. E quanto chegar não refletirá mais a realidade, que estará ainda mais defasada e problemática. Tudo sob o manto de uma cientificidade estrábica.
Não vou chegar ao ponto de afirmar que o projeto envolvendo o portal e a Fipe foi concebido por alguma mente mais engenhosa do mercado imobiliário, de forma a gerar um ferramental que evocaria neutralidade e credibilidade a prova de suspeições, mas recorro a um provérbio espanhol para deixar um recado sobre isso: não creio em bruxas, mas que elas existem, ah, se existem.
Uma obra esclarecedora
Acabei de ler em três dias uma preciosidade sobre as raízes da crise econômica nos Estados Unidos e em vários endereços da zona do Euro. “Bumerangue”, do jornalista norte-americano Michael Lewis, é consumo obrigatório de quem quer entender mecanismos que regem a atividade financeira e seu reboque imobiliário, reunindo gente desclassificada que só enxerga o aqui e agora.
É claro que não estou generalizando, mas quando se sabe que as supostas lideranças do setor são as primeiras a inocular na sociedade o vírus da especulação insidiosa, não se deve esperar situações menos desagradáveis por aqui, embora haja série de diferenças a separar os cromossomos do sistema de financiamento habitacional nacional e o que em larga escala atingiu o Primeiro Mundo.
Certamente influenciado por aquela leitura, e também, ou principalmente, por conta de observações locais, sempre ouvindo gente que sofre com o adensamento artificial dos números, concluo que o índice FipeZap não é essa Brastemp que os jornais apregoam. Preço anunciado é uma coisa, preço vendido é outra e preço documentado nem se fale.
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