Sociedade

Madres Terezas

VANILDA DE OLIVEIRA - 05/03/2001

Terezas, Aparecidas e Marias quase anônimas do Grande ABC dividem o dia-a-dia entre crianças e idosos carentes e filas de banco para negociar o estouro na conta das entidades assistenciais que fundaram e comandam. São as madres Terezas da região que, independentemente do credo, ajudam a remendar o rombo que a miséria e a ineficiência pública deixam no tecido social. Sem a visibilidade de um Herbert de Souza, o Betinho da campanha contra a fome, ou de uma Zilda Arns, indicada ao Nobel da Paz por seu trabalho à frente da Pastoral da Criança, em São Paulo, mulheres que não aparecem na tevê nem em colunas sociais -- e o mais perto que chegam de um evento é do sagrado bingo -- tocam abrigos, asilos, creches e fartas distribuições de alimentos. Têm nenhuma ou muito pouca ajuda oficial de órgãos públicos.

 

Nossas Madres Terezas deixam casa, filhos e até casamentos para dar amparo a crianças, idosos e deficientes carentes. Formam grupo de assistencialismo de chapéu na mão, mal documentado e à margem do Terceiro Setor e de entidades que conseguem recursos financeiros por meio de irmandades de elite, megagincanas televisivas e repasses governamentais.

 

Estão longe das cifras que fazem o Terceiro Setor arrecadar US$ 11 bilhões por ano no Brasil e carimbar nada menos que 13% do PIB dos Estados Unidos. A anos-luz dessa montanha de dólares, esse bloco de assistencialismo corre desorganizadamente atrás de dinheiro e verbas públicas para ganhar sobrevida. Quase sempre, porém, Nossas Madres Terezas param na burocracia e são atropeladas até por programas oficiais de combate à pobreza como o Renda Mínima, adotado em Santo André e São Bernardo.

 

Trata-se de benefício oficial na contramão do que faz a maioria das entidades assistenciais pequenas: dar o peixe, já que o pescador, à míngua, não tem barco nem anzol. Mas o que fazer até que crianças, idosos e deficientes possam aprender a pescar com a ajuda de programas governamentais embalados ao andamento de valsa?

 

Abnegação e chapéu na mão. É o que fazem essas mulheres que sofrem como mães por seus idosos e crianças desnutridos, semi-analfabetos e abandonados. Gente que chora as mazelas alheias em silêncio, mas faz barulho para ajudá-las, Nossas Madres Terezas mal têm tempo de pensar nelas próprias. E ainda acham que fazem pouco, que têm de lutar mais, amparar mais.

 

Para sobreviver, esse bloco pobre do assistencialismo regional tem de rebolar e usar quase a mesma receita da maioria sem a projeção e porte de uma Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) ou AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa). Os ingredientes desse bolo de fraternidade são o bater de porta em porta, o garimpar associados. Quase sem fermento, o bolo cresce à base da máxima eternizada pelos mosqueteiros de Alexandre Dumas: um por todos e todos por um.

 

Essas entidades sobrevivem acima de tudo do amor e da criatividade de suas fundadora-dirigentes. Sem muita opção, as Madres Terezas do Grande ABC ressuscitam jurássicas formas de arrecadação de recursos, como rifas, além de improvisar na hora da falta de dinheiro.

 

Fazem e entregam pizza, como a irmã Adriana Rubino, do Centro Comunitário Crianças Nossa Senhora de Guadalupe, no Jardim Laura, em São Bernardo.

 

Montam cooperativas de sócios e vendem ferro-velho, como é o caso de Terezinha Gamba Pafundi, fundadora-diretora da Casa do Caminho Ananias, de Santo André, e sobem até em árvore, se preciso for. E é. Cleide Aparecida Ardigó, fundadora e dirigente da Amare (Associação Modelo de Amor e Respeito ao Excepcional), escola que atende alunos com múltiplas deficiências em Santo André sem receber um centavo de subvenção da Prefeitura, subiu no telhado, de onde caiu em novembro passado, para evitar goteiras na cabeça das suas crianças.

 

A ação de mulheres como Cleide, que representam todas as Madres Terezas da região, tenta suprir parte do vácuo histórico deixado pelos poderes públicos no setor de assistência social. "Abrigo para crianças é um mal necessário" -- defende a missionária da Igreja Batista Ester Vacario Bachin, de 33 anos, fundadora e diretora da Casa Monte Gerezim, no Parque Novo Oratório, em Santo André. Ela dá abrigo a 54 crianças e adolescentes numa casa de 300 metros quadrados e três banheiros, sem receber um tostão da Prefeitura.

 

Santa pizza

 

Para driblar a falta de subvenção, entra em campo a dobradinha boa vontade e criatividade que, em São Bernardo, tenta garantir amparo a mais 200 crianças, a maioria criada no meio do lixão do Alvarenga e bem longe dos programas governamentais. Sem verba municipal nem dólares de multinacionais, irmã Adriana Rubino conseguiu comprar terreno de 700 metros quadrados no Jardim das Orquídeas, onde garante que vai construir novo centro comunitário.

 

A receita veio de muito suor e trabalho que ela conhece bem. Há 11 anos Irmã Adriana está à frente do Centro Comunitário Crianças Nossa Senhora de Guadalupe. Hoje, a casa dá complementação educacional e alimentação a 220 menores com idades entre sete e 15 anos, 40 deles filhos de subempregados do lixo.

 

Qual é o milagre para a nova casa? Centenas de discos de pizza vendidos e entregues em domicílio em toda a região por R$ 5 cada. Em dezembro foram 689 pizzas feitas e distribuídas pela solidariedade de dezenas de voluntários. À frente, irmã Adriana. Agora ela sonha com doações que possam garantir a obra orçada em R$ 200 mil.

 

O Centro Nossa Senhora de Guadalupe funciona como extensão escolar: tem aulas de educação física e capoeira, lazer e alimentação. Tudo que falta a esses meninos e meninas que reviram lixo com os pais para sobreviver. A idéia de arrecadar fundos com pizzas uma vez por mês foi de irmã Adriana. Não tinha outro jeito. O caixa do centro vive zerado. Os R$ 50 mil anuais repassados pelo governo federal, quando vêm, são insuficientes para cobrir os gastos, que dirá comprar o terreno, que custou R$ 62 mil.

 

Irmã Adriana lamenta a falta de ajuda municipal. Sofre por isso. "Já fui à Prefeitura várias vezes, mas até agora ninguém resolveu nada" -- conta a religiosa que nasceu na Itália. Ela garante que comida não falta e nunca faltará. "Porque Deus ajuda. Mas as crianças precisam de mais".

 

Irmã Adriana Rubino espera que empresários da região se interessem pela causa e a ajudem a levantar o novo prédio. Não se intimida, porém, com a possibilidade de isso não acontecer. "Vou fazer. Sei que vou conseguir. Não sei como, mas vou" -- promete a freira.

 

Irmã Adriana luta para ajudar algumas centenas de crianças num País onde nove milhões de famílias vivem na indigência, ganhando menos de meio salário mínimo por mês (R$ 68), segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

 

Distante das ambições e números governamentais, instituições como a Nossa Senhora de Guadalupe e a Amare sobrevivem do dinheiro que arrecadam com associados, eventos e doações. Mantêm o caixa com ajuda de quem já paga impostos que, em tese, deveriam ser usados na educação e no combate à miséria. Ou seja, quem não deve paga a conta duas vezes.

 

Afinal, de quem é a culpa por haver milhares de crianças vivendo nas ruas ou em abrigos longe de suas famílias? Dos pais? Do governo? Menos de 10% dos abrigados em orfanatos e lares assistenciais são realmente órfãos. A realidade é que não só as crianças foram abandonadas, mas as famílias também. Hoje, 57 milhões de brasileiros vivem na indigência, o que representa 21% da população do País, ou seja, uma Argentina.

 

As estatísticas negativas são tão impressionantes quanto a boa vontade das Nossas Madres Terezas: 15 milhões de crianças e adolescentes -- um quarto da população infanto-juvenil do Brasil -- vivem em condição de pobreza. Mais de 20% desse total residem em áreas urbanas, sem estudar, subnutridos, esmolando ou subempregados na informalidade dos cruzamentos de trânsito. Vida dura para quem conseguiu a façanha de sobreviver aos índices de mortalidade infantil do Brasil (36%), que enterra anualmente 180 mil bebês antes que completem um ano de vida.

 

As exceções cada vez mais raras revelam que os governos federal, estaduais e municipais têm agido com ineficiência e descaso quando o assunto é saúde pública e políticas de assistência social. Soluções exigem audácia, inteligência, planejamento. Audácia que nunca faltou a Cleide Aparecida Ardigó. Os 58 anos, a maioria dedicada a garantir melhor qualidade de vida a excepcionais, não foram empecilho para que, num arroubo juvenil, essa Madre Tereza da região escalasse os galhos de uma mangueira para atingir o telhado da entidade que dirige: a Amare, de Santo André.

 

Os galhos sujavam e quebravam as telhas. Um risco. Sem ter a quem recorrer, Cleide -- mãe e irmã de portadores de Síndrome de Down -- subiu e acabou caindo do telhado, tombo que rende dores nas costas até hoje, três meses depois. É um problema pequeno para quem coleciona dificuldades, principalmente financeiras, desde setembro de 1992, quando resolveu fundar a Amare, escola para excepcionais com múltiplas deficiências como o filho de Cleide, que também é deficiente visual.

 

Tudo começou pelo mesmo movente da maioria das fundadoras de entidades assistenciais da região: a carência de vagas, a falta de atendimento público, enfim, o abandono. "Um grupo de mães que tiveram os filhos desligados da Apae por problemas de comportamento e porque tinham múltiplas deficiências decidiu fundar uma associação. Durante nove meses fizemos bingos, chás beneficentes e rifas para conseguir fundar a escola" -- recorda Cleide Ardigó.

 

Ela lamenta não receber ajuda de órgãos públicos. Reclama que perdeu um ano e meio nas filas da burocracia da Prefeitura correndo sem sucesso atrás de papéis e documentos. "Cansei de ficar atrás de papelada" -- desabafa Cleide, que não recebe nenhuma subvenção da administração de Santo André. Um luxo numa cidade onde, segundo pesquisas da USP (Universidade de São Paulo), 92% das crianças excepcionais estão fora de escolas apropriadas por falta de vagas.

 

Essa estatística dá ainda mais importância ao trabalho realizado pela Amare, mantida apenas pela contribuição voluntária de sócios e pela mensalidade simbólica dos alunos que podem pagar. Resultado: a entidade vive com a conta bancária no vermelho para garantir assistência a 16 alunos com custo mensal de R$ 300 cada e a folha de pagamento de 10 funcionários. "Já bati muito às portas da Prefeitura, mas cansei. Eles (a Prefeitura) usam as verbas estaduais nos programas deles" -- explica Cleide.

 

Se cansou de carregar chapéu na mão, nem de longe Cleide Ardigó pensa em abandonar o que faz na Amare. A escola tem trabalho de sociabilização do aluno, como tirar fraldas, ensiná-lo a fazer a própria higiene e inseri-lo num mundo cheio de dificuldades até para quem não tem deficiência mental ou física. "Isso a Apae não faz. Lá, se o aluno tiver comportamento mais agressivo ou usar fraldas, nem entra" -- relata Cleide Ardigó.

 

Muitas vezes ela tem de recusar novos alunos por falta de espaço e condições de atendê-los. Gostaria que fosse diferente, sonha em ter sede própria e ampliada, mas não depende só dela. O que depende Cleide consegue. "A gente vai tocando, sinto muita pena de quem não posso atender" -- lamenta, ao contar que mais de 90% dos alunos são carentes e boa parte vem da periferia paulistana.

 

A maioria dos que têm poder e verbas públicas nas mãos prefere ignorar estatísticas miseráveis e se esconde atrás de números mais cômodos do que os que revelam indigência, menores nas ruas, mortalidade infantil e excepcionais sem escolas. Os dados confirmam que a cortina de fumaça usada por muitos governantes é até real.

 

O Censo 2000 do IBGE mostra que dos 5.507 municípios brasileiros, 1.501, ou seja, 27%, encolheram em consequência da migração para regiões metropolitanas e grandes cidades. Encolhimento que atingiu 87 (13%) dos 645 municípios do Estado de São Paulo.

 

Nos últimos 35 anos, 40 milhões de pessoas deixaram as zonas rurais do País. Fugiram da falta de comida, do desemprego, das péssimas políticas públicas de saúde e educação. Vieram atrás do chamariz das indústrias. Gente que inchou os já problemáticos grandes centros urbanos.

 

Na cidade de São Paulo, por exemplo, o ritmo de crescimento populacional e urbano aumentou em 33% na década de 90, porcentagem extensiva à parte da Região Metropolitana. O problema é que a Capital cresceu mais onde não devia: na periferia, segundo estudo da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo.

 

O fenômeno da periferização se repete no Grande ABC, onde o crescimento de bairros afastados é duas vezes maior que o dos centros das cidades. Mauá, por exemplo, tem 300 mil dos 390 mil habitantes morando na periferia.

 

A falta de dinheiro incentivou a ocupação dos bairros distantes do centro na base da autoconstrução e da invasão de terrenos, comprometendo ainda mais a infra-estrutura urbana. Na mesma trilha vem miséria, indigência, abandono, mas também novas madres Terezas dispostas a fazer o impossível para minimizar o problema. Fluxo migratório e periferização dos centros urbanos têm sido usados como escudo por governantes para não promover ou ignorar políticas que evitem a falta de serviços básicos de educação, saúde e assistência social.

 

Diante dessa realidade de carência e demandas reprimidas, o Grande ABC ensaia avançar timidamente. Não poderia ser diferente num País onde as políticas públicas voltadas à assistência social começaram a ser pensadas só a partir da década de 90. O que existia até então era essa rede solidária formada por Madres Terezas, que lidam com emergências de carências e demandas. Um trabalho curativo e não preventivo. Não havia política de inclusão social. Não havia? Nesse vácuo, as Madres Terezas da região vão fazendo o que podem: mágica, milagre.

 

Missão

 

"Atendi a um chamado". Assim Ester Vacario Bachin, de 33 anos, explica seus mais de 10 anos de trabalho voluntário à frente de um abrigo para 40 crianças de zero a 12 anos e 14 adolescentes até 18 anos. A casa sociabiliza as crianças, que, sem o apoio, engordariam os números de menores que perambulam pelas ruas da região e do País e formam batalhão de 14 milhões de analfabetos brasileiros, segundo dados do IBGE. É a segunda maior taxa da América Latina. Estamos atrás somente dos bolivianos.

 

O abrigo Monte Gerezim não vai mudar essa realidade. Ester sabe disso, mas, como outras Madres Terezas da região, tenta amenizar as tintas desse quadro cubista, à margem de programas governamentais que demoram para sair do papel e, quando saem, quase sempre já foram sangrados por desvios e desmandos.

 

As crianças chegam a abrigos como o Monte Gerezim após terem sofrido negligência familiar, maus-tratos, abandono e violência sexual. Estudos revelam que 70% dos casos de violência contra crianças e jovens ocorrem dentro de casa, cometidos pelos próprios pais, segundo dados da Fundação Abrinq. Essa é a história de muitos abrigados pelo Monte Gerezim, que tem 10 funcionários que custam R$ 9 mil por mês, R$ 3,8 mil em encargos sociais. Apesar de pequena, a casa tem aluguel de gente grande: R$ 1,1 mil. A Fundação Salvador Arena faz a sua parte e manda os alimentos necessários para a mistura. "Levo o que faço como uma missão, porque não lidamos com máquinas" -- justifica Ester, para quem trabalho assistencial só vinga se houver emoção e amor.

 

Vocação

 

Uma das muitas madres Terezas anônimas que tocam entidades assistenciais na região, a fundadora e diretora da Casa do Caminho Ananias, na Vila Pires, em Santo André, Terezinha Gamba Pafundi, de 58 anos, conseguiu em 11 anos multiplicar sua ação social. Também multiplicou os custos e preocupações financeiras, enfim, as dívidas. Mas nem pensa em parar.

 

Quer muito mais. Casada, mãe e avó, tem também no cuidado com 24 idosos acamados e 160 crianças a razão da sua vida em tempo integral de dedicação. O sábado não é para descanso. É dia de distribuir 400 refeições para carentes do bairro na Casa da Sopa, que foi o começo de tudo, em 1990. A vocação benemerente de Terezinha é quase hereditária.

 

Quando criança já visitava favelas e sofria com o desejo de ajudar desamparados sem saber como. Um dia, numa visita ao médium Chico Xavier, encontrou o dono de um asilo, falou da vontade de amparar carentes e idosos e pediu que lhe cedesse um terreno para dar início ao trabalho. Dois anos depois foi atendida. Começava aí a batalha para manter o asilo. Não fugiu à regra da dificuldade.

 

Juntou até ferro velho para conseguir dinheiro. Hoje faz bingos, jantares, sai de porta em porta, apela a voluntários e faz render o dinheiro arrecadado com eventos realizados no salão de festas da entidade, que é alugado a terceiros. "Comida não falta; falta dinheiro para pagar mão-de-obra" -- explica Terezinha Pafundi, que emprega 25 funcionários e recebe subvenção municipal que equivale a 40% da receita da instituição. "Os outros 60% consigo na raça" -- orgulha-se, ao afirmar que precisaria de no mínimo mais 10 funcionários para os trabalhos. Cada idoso custa R$ 1 mil por mês.

 

Terezinha Pafundi trabalha 12 horas por dia, sete dias por semana. Não tira férias. Não descansa. Garante que vale o esforço. "É um prazer servir ao próximo, alimentar alguém com fome, amparar uma criança que não tem ninguém" -- justifica. Voluntários? Sempre ajudam, mas para lidar com idosos, que são 9% da população brasileira, não é tão fácil conseguir. "Quem quer limpar xixi, cocô de um velhinho?" -- pergunta Terezinha, que tem toda a família engajada no assistencialismo. O sonho dela é abrir abrigo para excepcionais, que ela garante vai virar realidade.

 

Foi um chamado, repete mais uma Madre Tereza à frente de trabalhos assistenciais na região. Terezinha de Jesus Tortelli, 50 anos, três filhos e dois netos, há 22 anos dedica tempo quase que integral à Casa Assistencial Amor ao Próximo, no Bairro Camilópolis, em Santo André. A entidade fundada e dirigida por Terezinha cuida de 110 menores carentes. São crianças com família que têm renda quase zero, por isso a casa ajuda filhos e pais. O problema vem em cascata: pai desempregado, filho sem comer e sem escola.

 

Da Prefeitura vêm 50% de subvenção, valor insuficiente para suprir a casa, ampliá-la e, assim, diminuir o tamanho da lista de espera de 150 crianças. Este ano a entidade só abriu 40 novas vagas. As crianças ficam na casa das 7h30 às 17h, recebem cinco refeições e atenção de 12 funcionários. Para garantir tanta comida, Terezinha repete a fórmula dos bingos, noites da pizza e do bater de porta em porta em busca de novos associados, que contribuem espontaneamente com a quantia que quiserem ou tiverem. Hoje, 80 sócios ajudam a entidade.

 

A fundadora-diretora lamenta, porém, não receber doações de empresas e afirma que o espírito de irmandade entre as várias entidades assistenciais do Município garante a sobrevivência de todas. No Ano Internacional do Voluntário, Terezinha relata que está difícil conseguir gente para ajudar a instituição. "A mulherada está trabalhando para sustentar a casa" -- analisa.

 

Da Prefeitura ela reclama que há mais de três anos pede aumento de subvenção. "Estamos tentando desde que o Celso Daniel entrou". Lamenta também que agora tenha de contratar funcionários que estejam cursando Pedagogia -- antes bastava o Magistério -- por conta da LDB (Lei de Diretrizes e Bases). "Não sei para que tantas exigências. A maioria das crianças não tem nem o que comer em casa" -- desabafa.

 

As estatísticas mais uma vez dão razão a Terezinha Tortelli: apenas 17% das crianças brasileiras de zero a seis anos têm acesso a vagas em escolas, apesar de a Constituição Federal referendada pelo ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) garantir o direito na rede pública. Hoje, 60% das crianças que ingressam na rede pública de ensino não conseguem concluir a oitava série -- o antigo Ginásio --, segundo fontes oficiais e pesquisadores. Pior: 24% são excluídas ou abandonam a escola nas primeiras séries.

 

Sem muito tempo para estatísticas, Terezinha Tortelli conta que sua história de caridade começou com o grupo espírita Luz do Vale. "Cheguei a levar comida nas favelas, na casa dos carentes. Hoje sou reconhecida na rua pelas crianças do bairro que cuidei". Para ela, não há o que pague esse reconhecimento. "Com essa força vou conseguir ampliar a casa, se Deus quiser" -- promete.

 

Menos anônimas e igualmente batalhadoras, outras madres Terezas da região são precursoras nas ações sociais em favor de carentes e abandonados.

 

Gente como Ilda Lopes Ortiz, 54 anos, do Centro de Recuperação Camille Flammarion, em Mauá, que deixou tudo, inclusive o casamento, para cuidar de quem precisava. Ilda começou sua história de caridade no final dos anos 80 levando sopa quente a indigentes na Praça Roosevelt, na Capital. Mais tarde, ela e seu grupo conseguiram alugar pequena casa. Em 1995, Ilda conquistou 6,7 mil metros quadrados de terreno cedido pela Prefeitura de Mauá em regime de comodato, onde funciona o centro de recuperação até hoje.

 

A assistencialista não dá conta da demanda, por isso sonha com a ampliação do Camille Flammarion e batalha para transformar o lugar em casa-abrigo com estrutura hospitalar. O centro recebe da Prefeitura R$ 88 por interno. Repasse suficiente apenas para abrigar 100 adultos, entre indigentes, idosos e deficientes -- a casa já tem mais de 150. "Devagarinho a gente vai conseguir" -- confia Ilda, que por conta da dedicação aos carentes acabou se separando do primeiro marido.

 

Sempre bem-humorada, a responsável pelo Centro Camille Flammarion admite a grande transformação que sua vida sofreu para que pudesse se dedicar aos carentes. Só confessa uma frustração: não ter estudado e cursado Medicina ou Assistência Social. Deixou a escola no primário por imposição do pai. Mas fez direitinho a lição da vida.

 

Precursora

 

Outra madre que dá lição de vida é uma das figuras mais conhecidas de São Bernardo: Mamãe Clory. Nascida Clory Fagundes de Marques, no Rio Grande do Sul, há 83 anos, é visita obrigatória para quem quer conhecer trabalho solidário que deu certo, apesar dos bolsos vazios.

 

Mamãe Clory é exemplo de desprendimento à frente da Associação Cristã Verdade e Luz, entidade beneficente instalada em 25 mil metros quadrados no Bairro Assunção, em São Bernardo. São atendidos 180 crianças e adolescentes, 25 idosos e ainda gestantes.

 

Em 30 anos de trabalho duro, Mamãe Clory conseguiu dar à entidade organização física que serve como exemplo a quem engatinha no assistencialismo. Serralheria, marcenaria, gráfica, laboratório de informática, padaria e confecção são oferecidos a internos e semi-internos. Parte da produção das oficinas é usada para custear o lar, onde as despesas são altas: R$ 2 mil só em conta de energia elétrica.

 

Apesar das dificuldades para todos, Mamãe Clory não se cansa. Diabética e cardíaca, soma quatro infartos. Mesmo assim, quer dobrar o atendimento e criar espaço para mais 150 vagas. Mais de meio século depois da primeira adoção, Mamãe Clory parece ter a mesma força e disposição da moça que, em 1943, encontrou uma menina de 16 dias na porta de casa em Pontaporã, Mato Grosso. Foi a primeira de uma enorme lista de bebês abandonados que ela cuidou e viu crescer.

 

A situação de abrigos e asilos de São Bernardo é complicada. Dirce Gasperini Pereira, presidente a Febes, federação que reúne 65 entidades assistenciais do Município, admite que o improviso é a regra para as entidades. "Nem todas recebem verbas públicas e a maioria está no vermelho" -- esclarece Dirce. A própria federação tem de suar muito para cumprir o papel de ajudar a quem ajuda, através de assessoria contábil, jurídica e pedagógica.

 

"Assim como as entidades que cuidamos, nós também estamos no vermelho, lutando para arrecadar fundos com pequenos eventos" -- relata Dirce Pereira, que não recebe verba da Prefeitura. A dirigente admite que, às vezes, a família acha sua dedicação à entidade exagerada. Garante, porém, que nunca descuidou de ninguém e que acompanhou até o tratamento dentário do neto de 20 anos. Ela está todos os dias na federação e não tem horário para sair. Como as demais madres Terezas, é incansável nos seus 65 anos de idade, mais de 40 dedicados ao assistencialismo.

 

Conhecida por sua obra, Irmã Indiana tem mais uma história de abnegação e solidariedade à frente do Jeda (Juventude Esperança do Amanhã), entidade de Santo André com mais de 16 anos de atividades. No ano passado, foi eleita Empreendedora Social do Prêmio Desempenho. No Jeda, Irmã Adriana cuida de cerca de 250 crianças carentes com ajuda de voluntários e poucos funcionários. Além de oferecer alimentação, a entidade dispõe de atendimento odontológico, encaminhamento médico e cursos semiprofissionalizantes.

 

Quando era professora da Escola Coração de Jesus, há mais de 16 anos, irmã Indiana lançou desafio aos alunos: analisar as condições sociais da população da região. A idéia da freira era contribuir para a formação de jovens mais conscientes de sua responsabilidade social. Dessa semente surgiu o Jeda que, em 1990, conseguiu terreno da Prefeitura e com ajuda da comunidade construiu sede própria.

 

Irmã Indiana acredita que seu trabalho é muito parecido com o de uma mãe: ela orienta, dá conselhos e garante que até briga, se for necessário. "Faço o que muitas mães acabam deixando de fazer" -- costuma dizer. Sua dedicação às crianças é integral. A freira quer agora o que outras dirigentes de entidades assistenciais da região também sonham: ampliar o atendimento. Ela luta por mais espaço para acolher crianças e prepará-las para o futuro, que não existiria não fossem nossas madres Terezas.                              

 

Uma vida inteira

dedicada aos pobres

 

Pouco se sabe da sua infância, adolescência ou juventude. Madre Tereza de Calcutá tinha horror de falar de si. Mas tudo que se conhece a respeito de sua grande obra de caridade, que inspirou milhares de pessoas, é o que interessa. Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 1979, Madre Tereza chegou a ser comparada por estadistas ao líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), que pregou a não-violência como estratégia na luta pela independência da Índia.

 

Uma das mais conhecidas figuras do catolicismo por seu trabalho junto a doentes e pobres, Madre Tereza morreu de ataque cardíaco às 21h30 (13h em Brasília) de uma sexta-feira, em setembro de 1997. O corpo da religiosa teve de ser colocado num caixão de vidro sobre plataforma de 1,3 metro de altura para que milhões de pessoas pudessem lhe dar adeus. O enterro teve honras de chefe de Estado: o caixão desceu enrolado na bandeira da Índia. Poucos desconhecem os motivos de tanta homenagem para quem viveu na completa simplicidade. Mas as razões existiram e foram muitas.

 

Madre Tereza nasceu, mas nunca morou na Albânia. Foi educada numa escola estatal da atual Croácia durante os difíceis anos da Primeira Guerra Mundial. Filha de um próspero empresário albanês, Agnes Gonzha sentiu-se chamada por Deus para a vida religiosa aos 18 anos, quando ingressou na ordem irlandesa de Loreto e logo depois rumou para a Índia. A essa altura já havia abandonado o nome de batismo.

 

Sua primeira missão foi ensinar Geografia para garotas ricas do Saint Marys High School, o mais elegante colégio religioso de Entally, Capital da região de Bengala. Ficou no trabalho por 16 anos. Mas não era o que desejava fazer. Foi durante uma viagem de trem, em 1946, que se disse chamada por Deus. "Foi uma ordem" — ela contaria mais tarde. "Deveria abandonar o conforto do convento, renunciar a tudo e seguir Cristo nas favelas, entre os pobres". Madre Tereza seguiu a ordem à risca.

 

Terceiro Setor é a saída?

 

A ineficiência dos poderes públicos em dar conta das mazelas causadas pela miséria e a fragilidade das políticas sociais levaram ao surgimento e sucesso do Terceiro Setor, principalmente em países como o Brasil. Começou-se a sair da era do faz de conta: faz de conta que o governo fez, faz de conta que a sociedade faz, mas ninguém faz nada, ou quase ninguém. É por causa dessa mágica negativa que existem entidades assistenciais frágeis, desorganizadas, paralisadas na burocracia pública. São casas guiadas apenas pelo esforço de abnegadas dirigentes, as nossas madres Tereza.

 

Apesar da falta de estatísticas, há cinco ou seis anos o Grande ABC avança rumo ao Terceiro Setor. Em fóruns referendados pela presença de centenas de pessoas foi implementada política de assistência social na região, tímida, mas foi. Houve troca de experiências, traçaram-se diretrizes e também um planejamento comum. O setor necessita de indicadores e, até então, só atendia à demanda, mas não planejava intervenções, não tinha metas, agia tão desorganizadamente quanto as entidades assistenciais não subvencionadas por falta de documentação. Hoje, os municípios da região se estruturaram. Falta muito, mas começaram a estabelecer parcerias que exigem contrapartidas maiores de ONGs. Os programas Criança e Adolescente, Prioridade 1 e Andrezinho Cidadão vieram na esteira dessa mobilização e são norteados por demandas comuns.

 

Por conta da instituição dessas políticas públicas em todo o País, desde 1995 os municípios têm de ter plano de assistência social em obediência à Constituição Federal. Isso fez com que os governantes municipais tivessem, pelo menos, de pensar no assunto, trabalhar indicadores e planejamentos. As cidades da região, umas mais e outras menos, passaram a pensar em orçamento para o setor e parcerias com ONGs. Foram produzidas pesquisas e estudos como o Eixo Estruturante de Inclusão Social, que agrega geração de renda, saúde e habitação, além de estabelecer diretrizes para os próximos 10 anos. Como vão indo? Devagar.

 

Especialistas do Grande ABC que atuam na área defendem que a Agência de Desenvolvimento Econômico Regional deveria ser de desenvolvimento sustentado, para englobar o social. Por meio da agência, os governos municipais poderiam driblar a burocracia e as amarras legais para a destinação de verbas e gerar trabalho e renda junto a entidades para que avançassem na autogestão. Seria a solução para o vermelho nas contas de instituições como a Amare, Monte Gerezim e Casa do Amor ao Próximo, entre outras.

 

Santo André vai ter primeiro

centro de voluntários da região

 

Ser ou não voluntário. Quem já não se flagrou pressionado por essa questão ou dever? A opção, porém, não é tão fácil assim. Não depende apenas de boa vontade e da sobra daquele tempinho -- que nunca sobra --, mas também de ações planejadas por parte do Terceiro Setor e dos poderes públicos para organizar e direcionar a mão-de-obra certa à carência e demanda exatas. De olho nessas necessidades, Santo André deve criar ainda neste ano o primeiro centro de voluntários da região, segundo a assistente social Maria Inês Villalva, coordenadora técnica da Feasa (Federação das Entidades Assistenciais de Santo André). A Prefeitura de São Bernardo montou programa de voluntariado no mês passado e que já atraiu 150 pessoas. Em todo o Brasil, existem 35 centros do gênero.

 

No Ano Internacional do Voluntário, instituído pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 123 países, o objetivo da Feasa ao criar o centro é dar cursos para candidatos a voluntário, montar banco de dados, cruzar informações e direcionar essa mão-de-obra às reais necessidades de instituições assistenciais do Município. "O voluntariado tem de ser espontâneo e estar de acordo com a vontade e a atividade da pessoa. É preciso haver prazer na ação" -- conceitua Maria Inês. Os cursos começam este mês para grupos de 25 pessoas e estão abertos a toda a população. O limite mínimo de idade é de 16 anos. Cerca de 20 milhões de pessoas dedicam-se a algum tipo de trabalho voluntário no Brasil, segundo a ONU. Quase 50% desse total é ligado a instituições religiosas. Nos Estados Unidos, 67% dos jovens são voluntários; no Brasil, apenas 7%.



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