Apesar de o ano passado ter registrado a maior produção automobilística da história nacional, com mais de 3,4 milhões de veículos emplacados, o Grande ABC reconhecidamente sobrerrodas desde os anos 1950 viu a fatia que lhe cabe no Valor Adicionado cair na proporção de uma Ribeirão Pires. Ou seja: o Grande ABC perdeu uma Ribeirão Pires em transformação industrial, enquanto o Estado de São Paulo registrava crescimento de 5,36%.
Como o resultado negativo não se confirmou em outras importantes geografias municipais, apesar da queda do PIB (Produto Interno Bruto) do País de 0,2%, o que temos é mais um inquestionável sinal de limitações do modelo produtivo que gerou a maior porção de classe média do País, depois da Capital paulista, nossa invejável e cinderelesca vizinha.
Valor Adicionado é o mais exato medidor do processo de transformação de matéria-prima em produto acabado. Imagine uma metalúrgica que receba derivado de indústria químico-petroquímica no berço da linha de produção e, ao final, embarca retrovisor de plástico pelo sistema just-in-time para uma montadora de veículos. Valor Adicionado corresponde à diferença de valor monetário entre o custo da matéria-prima recebida e o produto acabado liberado e inclui também salários, juros adicionais e impostos. Resumidamente, é o total de vendas da empresa menos o valor de compras de matérias-primas, produtos de terceiros e serviços. Enfim, tudo que envolve transformação industrial está incorporado no conceito de Valor Adicionado.
A cidade de São Paulo cresceu no ano passado em Valor Adicionado o equivalente a uma Santo André e meia. Já o conjunto formado por Sorocaba, São José dos Campos e Campinas, de população semelhante à do Grande ABC, elevou a geração de riqueza ao equivalente a três vezes tudo que foi produzido por Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra juntas e, ainda, complementarmente, à metade de Mauá do Pólo Petroquímico de Capuava.
Talvez tantas comparações confundam os leitores deste texto exclusivo, mas é assim mesmo que se opera uma obra de garimpagem numérica que ganha corpo jornalístico. Se enfiasse goela abaixo dos leitores apenas e simplesmente os números coletados na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, certamente o embaralhamento interpretativo seria muito maior e mais complexo. Ou seja: podemos até prescindir, em determinados textos, de números e números, desde que se trabalhem organizadamente outros valores conceituais e contextuais.
Resumidamente, a indústria de transformação do Grande ABC, coração da economia regional, ficou menos importante no contexto estadual e nacional no ano passado, quando o Brasil se virou durante 12 meses para encaixar os golpes da crise financeira internacional, deflagrada no último trimestre de 2008 e que só agora, neste primeiro semestre, ficou provisoriamente ou não no passado.
Perguntariam os leitores como é possível que, sendo a capital automobilística do País e, sobrepostamente, tendo-se cenário de recorde de venda de veículos, o Grande ABC possa ter perdido participação no bolo estadual do Valor Adicionado?
Há pelo menos dois suportes explicativos.
O primeiro é que o Grande ABC perdeu ao longo dos últimos 15 anos participação relativa e absoluta no mapa de produção veicular, por conta da descentralização das plantas locais, com novas linhas de produção em outras geografias, como também da chegada de concorrentes que optaram por endereços menos alfabetizados no jogo entre capital e trabalho. Nossa participação relativa na produção automotiva não passa de 20%, enquanto das linhas de ônibus e caminhões chegam a 60%.
O segundo ponto do novelo elucidativo é que a importação de autopeças, principalmente da Ásia, avançou além da conta às linhas de produção local, reduzindo-se o conteúdo nacional dos veículos. E isso se reflete na esqualidez do Valor Adicionado comparativamente a outras atividades industriais de empresas configuradas para contar com o suprimento próximo de seus redutos.
A redução do Valor Adicionado é uma péssima notícia para o Grande ABC, porque esse é o balizador do repasse do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pelo governo do Estado.
O peso do Valor Adicionado na fatia distribuída aos 645 municípios paulistas é de 75%. Depois da chegada do Real, moeda cunhada pelo presidente Itamar Franco e glorificada por Fernando Henrique Cardoso em duas vitórias eleitorais, a queda do Grande ABC no bolo do ICMS tornou-se constante e inquietante.
Não que anteriormente se desse algo muito diferente, porque a desindustrialização da região começou em meados dos anos 1980. O problema é que se acentuou o esvaziamento de recursos financeiros repassados. Entre 1997 e 2008, o Grande ABC caiu 19,19% no bolo do ICMS.
O Valor Adicionado do ano passado aprofundará em mais alguns pontos a queda de participação relativa do Grande ABC na redistribuição do ICMS. Segundo projeção da Secretaria da Fazenda do Estado, todos os Municípios locais foram atingidos. Inclusive São Caetano, que escapou da degola no período pós-Real beneficiadíssima pela seletividade de três fontes de receitas que bombaram durante a recuperação econômica do País: as linhas de produção de veículos da General Motors, a varejista Casas Bahia e o terminal de petróleo da Petrobrás.
Quando afirmo que o Grande ABC perdeu uma Ribeirão Pires de transformação de riqueza industrial, deixo de lado o fato de que o medidor que sempre escolhi para padronizar as análises apontou, pela primeira vez, deflacionamento. Sim, o IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado) da Fundação Getúlio Vargas acusou queda de 1,72% no índice de inflação em 2009. Como o Grande ABC perdeu 1,40% de Valor Adicionado, os leitores mais regionalistas poderiam defender a tese de que não houve queda.
Está bem que se trata de bom argumento, mas, nesse caso, prefiro perder a pureza matemática e econométrica a sacrificar a grandeza informativa: gostemos ou não, em reais, nossa moeda, independentemente de critérios inflacionários, caímos 1,4% num período em que o PIB registrou 0,2% de queda.
Ainda tenho a reforçar meu discurso catastrofista (é assim que os leitores mais radicais me chamarão, tenho certeza) um golpe de mestre: poderia ter escolhido, sazonalmente, o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) administrado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) que registrou inflação de 4,11% ao final do ano passado. O buraco do Grande ABC seria, portanto, muito maior.
Em última instância, se me dobrasse aos leitores que querem, que exigem, o máximo de coerência histórico-analítica, já que sempre indexei ao IGP-M os estudos que produzo para diagnosticar a economia do Grande ABC, o máximo a que chegaria o Valor Adicionado regional seria à estagnação na temporada passada. Aí, o título deste artigo teria de ser outro, mais ameno, mais conciliador de interesses corporativos e triunfalistas da região. Menos evocativo à situação extremamente perigosa em que nos metemos há muito tempo ao confiar e confiar na sustentabilidade inexpugnável da indústria automotiva como motor de propulsão da mobilidade social que já foi para a cucuia há muito tempo.
Daremos amanhã números aos municípios do Grande ABC na disputa por transformação de riqueza que, no fundo, no fundo, é um problema coletivo. Quem observar o quadro sob condicionante municipalista e puramente circunstancial dará provas de que, além de individualismo, pratica o jogo sujo de idiossincrasia político-partidária.
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22/04/2025 PIB: LULA IMBATÍVEL? DILMA IRRECUPERÁVEL?