A Doença Holandesa Automotiva de São Bernardo (vamos esquecer os demais municípios da região, menos intensamente impactados pela enfermidade) é o maior desafio da Capital Econômica do Grande ABC. Se perguntarem ao novo secretário de Desenvolvimento Econômico do Município, Rafael Demarchi, aposto que ele não saberá do que se trata. Tampouco o prefeito Marcelo Lima, que o escolheu. Quem escolhe o que foi escolhido não entende, também, nadinha de nada de Economia.
Doença Holandesa Automotiva, explico mais abaixo com a captura de um dos muitos textos que produzi sobre o assunto, é a dependência econômica e social exagerada da atividade mais competitiva do mundo.
Para facilitar o entendimento dos leitores (por favor, leiam o que se segue, mas sigam os parágrafos seguintes, porque vou fazer uma nova abordagem, ou uma abordagem mais detalhada) reproduzo o texto que escrevi para a edição de janeiro de 1997 (isso mesmo, 1977) da revista de papel LivreMercado, antecessora de CapitalSocial. Leiam com atenção e depois voltaremos ao presente:
Montadoras não podem continuar
sendo referencial de reinvindicações
DANIEL LIMA - 05/01/1997
As montadoras de veículos trouxeram progressos inegáveis ao Grande ABC e continuam a ser indispensáveis ao equilíbrio socioeconômico regional. Essa é uma verdade tão asfixiantemente incontestável que raramente sofre o impacto de algum contraponto. Mas que existe contraponto existe.
Tanto que não se pode contemplar as montadoras com pretensa santificação regional. A recíproca também é verdadeira: não se pode satirizá-las como matrizes das fundas disparidades sociais que se acentuam no Grande ABC à medida que a globalização corta postos de trabalho.
Maiores geradoras diretas e indiretas de empregos e de tributos, as automobilísticas da região consagraram o sindicalismo de Lula e seus parceiros num período de obscuridade política no País e de absoluto despreparo administrativo do empresariado.
A elite sindical do Grande ABC fez das montadoras palanque obrigatório e, com o suporte dos trabalhadores, pressionou os patrões numa frenética corrida de indexação salarial e de contínua incorporação de benefícios sociais extraconstitucionais.
Referência maior das relações entre capital e trabalho na economia nacional, as montadoras de veículos e os metalúrgicos botaram lenha na fogueira inflacionária ao longo dos anos. Os pequenos e médios empresários da região, de autopeças num primeiro estágio e dos demais setores em seguida, pagaram o pato porque tiveram de acompanhar as conquistas trabalhistas.
PESOS DIFERENTES
Deram-se mal com isso, porque o peso relativo da folha salarial numa pequena e média empresa é três ou quatro vezes maior que o de uma automobilística. Os salários indiretos, em forma de transporte, alimentação, bolsa de estudos, cesta básica, seguro-saúde, entre outros, completavam o sadismo econômico que atingia as pequenas e médias, cuja margem histórica de negociação de preços é dramática, atingidas de um lado por grupos estatais monopolistas de fornecedores de matérias-primas e de outro lado por grupos oligopolistas de clientes.
Os novos tempos, de abertura comercial e de estabilização, acabaram por agravar as desvantagens de os pequenos e médios estarem tão próximos da influência síndico-empresarial das montadoras.
Beneficiadas pelo regime automotivo que lhes garante quase que a reserva de mercado em forma de alíquota de importação de veículos protecionista de 70%, ao mesmo tempo em que lhes escancara as portas do fornecimento de autopeças em prejuízo das empresas locais, as montadoras batem recordes de produção.
E continuam servindo de referencial aos sindicalistas, para azar das autopeças desprotegidas e de pequenas e médias de outros setores tratados sem o mesmo desvelo pela política econômica do governo federal.
Poucos empresários, mesmo de grandes empresas não listadas no setor automotivo, caso de Hugo Miguel Etchenique, presidente do Conselho de Administração da Brasmotor, que esvaziou a fábrica da Brastemp em São Bernardo, têm coragem de dizer em público que o setor automobilístico do Grande ABC causa problemas aos demais no estabelecimento de políticas salariais.
Além dele, apenas Dirk Blaesing, executivo da Fairway Filamentos, do setor têxtil, lamentou recentemente o destrutivo efeito montadoras-metalúrgicos no relacionamento com os recursos humanos, admitindo-o como complicador de novos investimentos na região.
DUPLA FACE
Essa dupla face das atividades automobilísticas no Grande ABC não pode ser interpretada por seus representantes como análise oportunista e injusta diante das evidentes constatações históricas da importância do setor para o desenvolvimento da região.
Trata-se, sim, de uma espécie de chamamento à reflexão dos agentes econômicos e sindicais para se debruçarem de forma madura e consciente no problema. Os sindicatos cutistas, por exemplo, continuam a idealizar pautas de reivindicações a partir de conquistas junto às fábricas de veículos sem levar em conta que, recebendo tratamento alfandegário diferente do das montadoras, a defesa natural dos empreendedores de menor porte, até mesmo para que não fechem de vez as portas, é o enxugamento cada vez mais forte do quadro funcional.
Enfim, representações mais expressivas do capital e do trabalho ainda não se deram conta de que padrões de relacionamentos que naufragaram em períodos de clausura econômica são absolutamente inviáveis em tempos de globalização.
Quem paga a conta é o trabalhador desempregado. Mas o que se pode fazer se, como disse outro dia o governador petista do Distrito Federal, Christovão Buarque, a esquerda (que tem a fama de preocupar-se mais com o social) continua a sensibilizar-se apenas com a minoria barulhenta, esquecendo a maioria silenciosa.
DE VOLTA AO PRESENTE
Viu como era importante requisitar o passado documentado e de abordagem inédita que se repetiu outras vezes, enquanto o restante da mídia regional jamais colocou a questão como pauta obrigatória para explicar de forma prática o que se deu desde aquela análise?
Uma análise de praticamente 30 anos, como se observa. É por essas e outras que não canso de dizer que só existe uma publicação na região (e nas regiões do pais) que trata as transformações econômicas e sociais com intensidade, cuidado, comprometimento e tudo o mais. Isso não é propaganda, não é marketing. É realidade que, omitida, soaria como falsa humildade.
Mas vamos ao que interessa? Vou ser breve. Tomei emprestados dados que já completaram cinco anos, coletados pela Universidade Municipal de São Caetano, USCS, e que constam de meu arquivo. Ali se tem o comportamento do emprego formal industrial dos municípios do Grande ABC a partir de 1985, até chegar a 2019.
A defasagem em relação ao presente não altera a ordem do placar explicativo, porque não haveria grandes transformações. Dados de empregos, entre outros dados, não são água de torneira que desaparece em forma de renovação imediata com a fluidez. Dados sobre empregos são submetidos à lenta depuração ao longo dos anos. Não se chega à conclusão sustentável em breves intervalos.
MARCHA DA CONTAGEM
Os dados de emprego industrial de 2019 que o USCS divulgou em estado bruto abrangem praticamente todos os setores produtivos da região. Fixei-me em São Bernardo exatamente por conta da Doença Holandesa Automotiva.
O comportamento setorial do PIB Industrial seria interessantíssimo, porque poderia cruzar dados com dados trabalhistas, mas não há memória documentada sobre essa vertente em período tão extenso. Escrevo sobre o PIB do Grande ABC tendo por ponto de partida documental o ano de 1999, divulgado pelo IBGE. Anos anteriores, mesmo da década de 1970, também constam de meus textos, mas não são detalhados por falta de fontes confiáveis.
Fiquemos então com a Doença Holandesa Automotiva. Dos 135.666 empregos com carteira assinada no setor industrial que São Bernardo registrava no Ministério do Trabalho em 1985, ou seja, logo após a retomada da democracia no País, sobraram apenas 64.650. Uma queda de nada menos que52,13%. Daquele total de 1985, 104.944 constavam de setores diretamente ligados à produção de veículos – transporte, metalúrgico e mecânico. Os demais, de forma direta e indireta, também influenciavam o placar, mas não de forma incisiva.
CADEIAS PRODUTIVAS
O setor de transporte, umbilicalmente ligado às montadoras na produção automotiva, saiu de um ativo de 79.361 trabalhadores com carteira assinada em 1985 e caiu para 29.323 na ponta cronológica dos dados, em 2019. A metalurgia baixou o estoque de mão de obra de 14.184 para 5.216. E o setor mecânico de 11.399 para 8.071.
As demais cadeias produtivas da São Bernardo industrial também sofreram nesse período, baixando seus estoques de 26.043 para 19.424 trabalhadores formais. Há, nesses números suplementares, uma constatação terrível: as cadeias produtivas das áreas moveleiras, gráficas e borracha praticamente sumiram. Restaram, além daqueles três setores vinculadíssimos à produção automotiva, apenas as atividades químico-farmacêuticas que, de 15.186 empregos formais em 1985, caiu para 11.800 postos de trabalho. Uma queda (22%), como se vê, bem abaixo da média dos demais setores produtivos.
AMADORES E ESPECIALISTAS
A primeira medida que o novo prefeito e o novo secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo deveriam promover, repito mais uma vez, deveria ser a contratação de especialistas para estudar o fenômeno local da Doença Holandesa Automotiva.
Todos os países que sofreram dessa enfermidade se deram muito mal porque perderam tempo glorificando o sucesso da concentração de geração de riqueza sem se darem conta de que o que temos como literatura técnica e econômica é uma porta de acesso ao inferno de desindustrialização seguida de exclusão social.
O prefeito Marcelo Lima tem se esmerado num marketing de quem seria vereador, cargo que exerceu durante dois mandatos. E o secretário de Desenvolvimento Econômico tomou Doril após a derrapagem acachapante numa entrevista encomendada.
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06/03/2025 OS TRÊS TEMPOS DE LULACÁ PRESIDENTE (2)