Foi muito engraçado acompanhar a involuntária disputa entre Evenson Dotto, presidente da Associação Comercial e Industrial de Santo André (Acisa) e Sérgio De Nadai, empresário que integra o Conselho Superior daquela entidade. Eles foram chamados em momentos distintos, embora subsequentes, pela repórter da versão televisiva do Diário do Grande ABC. Discorreram rapidamente sobre a economia da região enquanto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, provavelmente por não reconhecer uma geografia que faz parte de seu passado de estudante, acadêmico e político, demorava a desembarcar no local em que proferiu, como sempre, uma conferência de denso valor intelectual.
Sérgio De Nadai e Evenson Dotto são amigos de longa data. Não fosse o apoio de De Nadai, Evenson provavelmente não teria vencido as eleições na Acisa. O vencedor ameaçado por um vencido bem aparelhado recorreu ao amigo para cabular votos múltiplos e nada democráticos de empresas poderosíssimas com unidades em Santo André. Portanto, Sérgio e Evenson formam uma dupla em que impera harmonia. Nada que seja necessariamente pecaminoso, porque amizade é amizade, embora a transposição desse sentimento a searas outras, como a uma entidade de classe, não seja lá muito defensável.
Bom, mas isso não interessa tanto. O engraçado mesmo é que deixaram de combinar com Sérgio De Nadai um triunfalismo que deveria ser levado aos usuários de Internet que preferiram optar pelo acompanhamento de Fernando Henrique Cardoso na tela de um computador. Até porque, o preço salgadíssimo de R$ 3 mil por cabeça completou a operação burrice do marketing do evento. Quem cobra esse valor na Província do Grande ABC, seja qual for o conferencista, inclusive Bill Clinton, um dos mais requisitados no mundo, só pode dar mesmo com a cara na porta. Por isso tão pouca gente compareceu ao restaurante.
Juntos, mas divididos
Mas isso também não tem muita importância. O fato é que Sérgio De Nadai e Evenson Dotto mostraram que a Acisa está dividida mesmo entre aqueles que estão juntos. No caso, a divisão é por conta da avaliação da economia regional.
Evenson Dotto faz parte do grupo que vê tudo cor-de-rosa, pelo menos para o público externo, nas manifestações oficiais, como se fosse obrigação de uma liderança empresarial descartar preocupações que atingem a categoria como um todo.
Sérgio De Nadai, desconhecia este jornalista, está no outro extremo. Com fluidez, ponderações, responsabilidade e cuidado com a importância de manifestação pessoal, disse em poucos minutos o suficiente para encaixar-se no modelo de contestação que esta publicação digital ostenta há mil anos.
Foi engraçado ver a cara da repórter que entrevistou Sérgio De Nadai, certamente na expectativa de que ele faria coro ao otimismo programado de Evenson Dotto, entrevistado pouco antes, ao se ver diante de um empresário rigorosamente realista sobre as fissuras da economia regional, sobretudo no esfacelamento gradual e inquietante da base da indústria de transformação, cada vez mais dependente do setor automotivo, nossa Doença Holandesa.
Um gol de placa
Não vou chegar ao ponto de dizer o que seria uma heresia, que a conferência de Fernando Henrique Cardoso perdeu o glamour ante o embate dos dois dirigentes da Acisa. Embate é força de expressão, porque, repito, eles se manifestaram separadamente no tempo, embora no mesmo espaço. Mas que foi um gol de placa o contraponto sóbrio de Sérgio De Nadai sobre o discurso vazio e ufanista de Evenson Dotto, garanto que foi.
A gestão de Evenson Dotto na Associação Comercial e Industrial de Santo André segue o ritual de mesmices dos antecessores -- sempre tendo como âncora avaliativa os pontos conceituais de um reformismo econômico que insiste em adiar desembarque na Província. Isso quer dizer que está muito aquém das necessidades, como aliás, ocorre nas demais entidades do gênero, todas sob o mesmo formato fora de moda dos anos 1950, quando a região brotava de estonteante crescimento e o mundo era dividido e subdividido em porções que pouco se comunicavam.
Os tempos mudaram, as relações multilaterais ditam o ritmo macroeconômico, mas insistimos num recorte mal-ajambrado que passa a quilômetros de distância dos anseios dos empreendedores de pequeno e médio porte, principalmente.
Preliminar inesperada
A inesperada preliminar do espetáculo de Fernando Henrique Cardoso em Santo André não poderia passar em branco neste espaço porque simboliza muito mais que entrechoque interpretativo entre dois amigos na avaliação do quadro econômico da região. Sérgio De Nadai francamente expositor de uma Província problemática e Evenson Dotto de uma Província esfuziante são o retrato bem acabado de uma divisão de bastidores que por acaso ganhou a democracia da mídia.
Sérgio De Nadai faz parte de uma maioria que raramente tem a oportunidade e a coragem de expor as mazelas da região enquanto Evenson Dotto integra a minoria falante dos aplicadores de panos quentes que se provam a cada temporada produtores de enrascadas coletivas, porque seguimos nossa trajetória de perdas econômicas e degringolada social. Basta ver como os PIBs dos outros crescem e como nossa criminalidade dispara.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!