Vai mal o Brasil de chuteiras nesta semana derradeira de uma Copa do Mundo transformada em geleia real de interesses que ultrapassam todos os limites do bom senso. E o Brasil sem chuteiras vai muito pior. O Brasil de chuteiras que investiguei não tem lá sustentação fundamentada na ciência, mas de alguma coisa serve para medir a temperatura de apoio ao desorganizado time de Felipão. O Brasil sem chuteiras saiu numa pesquisa da Fundação Getúlio Vargas e mostra que no campeonato das desmoralizadas institucionalidades, a classe política bate qualquer outra em matéria de desconfiança. Apenas 7% dos brasileiros entrevistados responderam que confiam nos partidos políticos e outros 15% no Congresso Nacional. Só as Forças Armadas e a Igreja Católica se salvam. Por enquanto.
Vamos ao Brasil de chuteiras, ou seja, à Seleção Brasileira vista pela sociedade. Faltam pesquisas sobre a quantidade de brasileiros que torcem pela equipe de Felipe Scolari. Mesmo que os números revelassem o engajamento ao verde-amarelismo de Galvão Bueno, o mais irresponsável entre os animadores esportivos do País, o melhor seria desconfiar.
Nem todo o mundo diz o que pensa ante um entrevistador. Sobretudo quando o assunto sacrossanto é a pátria de chuteiras. Quantos por cento dos brasileiros torcem para valer pela Seleção que está na semifinal desta terça-feira contra os alemães? Desconfio que sejam menos do que imaginamos. Há muito não engrosso coros de vozes e gritos pró-Seleção. Não tem nada a ver apenas com a desmoralização da política partidária como atividade civilizadora. O buraco é profundo e não vale a pena destrinchá-lo agora.
Sei que eventual desclassificação da Seleção Brasileira só será sentida por mim por causa das criancinhas. Os marmanjos que se danem. Principalmente os marmanjos embandeirados dos pés à cabeça, dos retrovisores aos capôs. Quanto mais verde-amarelo nos veículos, das duas uma: a ingenuidade é um traço incorrigível ou a porta está aberta ao alarme de que ali trafega um motorista a ser investigado. As exceções confirmariam a regra.
Corridinha pedagógica
Na corridinha de sempre com que pretendo chegar aos 94 anos e, desta forma, tornar certeira a previsão daquela vidente com quem me encontrei num domingo à tarde no Guarujá tive a pachorra, ontem, domingo, de fazer uma pesquisa própria. Quantos veículos estacionados nas ruas do circuito de sempre para colocar mais vida em meus anos ostentavam algum símbolo nacional, mais precisamente a onipresente bandeira verde e amarela? Não valeram na contagem os carros que trafegavam, tampouco os veículos nas garagens. Só me dei ao trabalho de contabilizar os veículos estacionados nas ruas que percorri.
Foram 186 veículos, quase todos de passeio, que se meteram no meu caminho de resistente desbravador de quilômetros, faça chuva ou faça sol. Sabem quantos desses veículos cultivavam o verde-amarelismo? Fiquei chocado. Esperava outro placar. Em outras Copas do Mundo as imagens que retive me transmitem a sensação de que a densidade era bem maior. Pois não mais que 10 veículos (5,3% do total) carregavam nos retrovisores, portas ou capô a imagem do time de Felipão. Em nenhum caso vi bandeiras em todos os pontos possíveis de um veículo. Menos mal. O resultado final, sinceramente, é muito pouco para um País evangelizado diariamente, hora após hora, por uma mídia emburrecedora.
Podem os detratores da pesquisa que nem merece ser chamada de pesquisa porque não tem cientificidade dizer que estou a cheirar cola. Não seria um roteiro num bairro de classe média suficiente para expressar mesmo que de forma sujeita a contestação o grau de brasilidade futebolística. Pode ser que tenham razão, pode ser. Mas não vejo nada muito diferente em outras situações em que me peguei como pesquisador do Ibope a farejar o estado de ânimo neste período de Copa do Mundo.
Nas ruas já me observei contando veículos em tráfego pela Avenida Pereira Barreto, caminho da roça de casa para o trabalho, e também por ruas e avenidas diversas. Afinal, tenho o direito de procurar médico, encontrar com fontes de informações em bares, botecos, cantinas, e de correr atrás do prejuízo em instituições financeiras. Principalmente nesse período de Copa do Mundo fui movido a dar uma passeada suplementar por bairros mais populares. Pude constatar que bandeirinhas, bandeirões e bandeirolas aumentam de densidade na medida em que o dinheiro é mais curto e a escolaridade diminui.
Qualquer semelhança com os indicadores mais favoráveis à reeleição da presidente da República talvez não seja mera coincidência. Por mais que as estatísticas garantam que vitória da Seleção significa derrota da situação, quem asseguraria que os resultados não seriam ainda piores se os resultados em campo não tivessem sido favoráveis? Há certos conceitos que pretendem petrificar o contraditório.
De qualquer forma, não arredo pé da constatação intuitiva de que já fomos muito mais pátria de chuteiras do que parecemos hoje. Talvez o povo esteja a descobrir que há exagero exponencial na cobertura do evento enquanto a vaca do PIB atola, a lebre do emprego desacelera e o dragão da inflação persiste e ameaça romper o extremo da meta.
Mártir fabricado
Transformar Neymar em mártir é de lascar. O fato de ser craque maior do escrete não o qualifica como santo. Neymar foi abalroado por um colombiano desastrado que, conforme boa parte da crônica mais sensata, o que não é o caso de Galvão Bueno e de seguidores da Globo, trocou a cautela pelo joelho. Reparem que a bola está no alto e que o adversário corre de olho em sua direção, tendo Neymar no meio do caminho para dominá-la e puxar um contragolpe. O colombiano não se dá conta de que o atacante brasileiro estancou o movimento. Neymar preferiu utilizar o corpo para proteger a bola que chegaria a seus pés. Ocupou previamente um espaço que só os craques anteveem. Foi o suficiente para o choque. O joelho erguido pelo colombiano reproduziu mais um instinto de autoproteção ao impacto do que um gesto deliberado de agressão.
Bem diferente, por exemplo, da olhadela para trás e do golpe traiçoeiro de cotovelo de Neymar no rosto de um adversário croata na estreia do Brasil na Copa. A Globo registrou o lance com absoluta discrição, como algo mais natural do mundo. Assim como as vaias que parte dos brasileiros dedicou aos sempre amigos chilenos, sobretudo durante o trecho em que os visitantes entoavam o hino à capela. Uma vergonha que me fez encolher no sofá e lamentar o sentimento de propriedade intelectual que os brasileiros pareciam destilar por terem inventado em Fortaleza, logo após as manifestações de junho do ano passado, durante a Copa das Confederações, essa nova modalidade de apoio popular nos estádios. Uma manifestação que me emociona sempre, é bom lembrar.
Pesquisa devastadora
A grande maioria silenciosa de brasileiros que não aparece em reportagens ufanistas da Copa do Mundo porque prefere mesmo o recato cívico, o sossego do lar, a insatisfação silenciosa com os rumos de um País sempre em busca do futuro, está traduzida numa pesquisa que a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas acaba de publicar no jornal Estadão sob o título “Brasileiro vai às ruas por direitos, mas desrespeito às leis aumenta”.
O enfoque do material estatístico pelo qual o jornal paulistano optou não é o mais importante. A constatação de que para oito de 10 brasileiros é fácil desobedecer às normas não é novidade. As causas para quem viola as regras são falhas da Lei e o mau exemplo de autoridades. E esses maus exemplos estão expressos apenas num apêndice do trabalho jornalístico. Estão ali números que também não são novidade, mas deveriam ser reproduzidos frequentemente para que, até mesmo por coerção ambiental, os responsáveis se dessem conta de que precisam mudar. O Brasil sem chuteiras é muito mais preocupante que o Brasil de chuteiras.
E o que dizem esses números? Que apenas as Forças Armadas (64%) e a Igreja Católica (54%) escapam à degola de desconfiança dos brasileiros ouvidos pela Fundação Getúlio Vargas. As demais instâncias de governo, partidos políticos, Judiciário e Polícia não resistem ao paredão. Até o Ministério Público incensado como força-motriz de cidadania é reprovado pelos brasileiros, porque apenas 45% lhe conferem confiança. A imprensa escrita vem a seguir com apenas 42% de aprovação, ante 38% das grandes empresas, 31% das emissoras de TV, 30% da Polícia, 30% do Poder Judiciário, 29% do Governo Federal, 15% do Congresso Nacional e 7% dos partidos políticos.
Já imaginaram os leitores se a Fundação Getúlio Vargas fizesse pesquisa análoga restrita ao território da Província do Grande ABC, essa imensa incubadora de malandros juramentos, de parasitas, de sanguessugas e de compadrios imundos? Desconfio que os números seriam ainda mais alarmantes.
Números, aliás, que, numa reportagem bem mais densa que a apresentada pelo Estadão, poderiam dar sustentação a uma senhora manchetíssima de primeira página neste período de euforia fabricada pela massificação de uma ilusão de que temos uma Seleção Brasileira digna dos bons tempos.
Galvão parceiro de Noé
Uma Seleção Brasileira que pode até ser campeã do mundo, porque a concorrência não lhe é tão superior, mas que não justifica tamanha centralidade midiática. Palavra de quem começou no jornalismo aos 15 anos de idade pelas portas sempre abertas do esporte, é apaixonado por futebol, não perdeu um único jogo desta Copa do Mundo mas entende que tudo que se produz ultimamente sobretudo pela Rede Globo tem uma finalidade clara e específica: garantir a riqueza de uma operação de marketing estrondosa que faz de um acontecimento extraordinário algo que, fosse possível voltar no tempo dispondo-se de tecnologia, se rivalizaria com a epopeia de Noé.
Não tenham dúvidas: Galvão Bueno teria exclusividade nas entrevistas com Noé, como as tem com Felipe Scolari. E não sugeriria nada que fosse diferente de um supervisor de ouro na escalação da equipe que deveria embarcar na aventura da sobrevivência. O problema é que se Noé não tomasse cuidado, Galvão Bueno o atiraria ao mar. Como é possível que o faça com Felipão, caso o Brasil perca o Mundial e seja preciso arrumar um bode expiatório para ficar de bem com a audiência, suprema forma do universo verde-amarelo.
Por enquanto, o empenho está concentrado numa campanha mais que descarada para responsabilizar as arbitragens pelos erros da equipe. Fabricam-se pênaltis, faltas, perseguições com cartões amarelos e outros manejos conceituais que os telespectadores noviciados ou contaminados pelo narrador dão crédito quando, no fundo, o que se pretende mesmo é criar um ambiente que favoreça as arbitragens nos jogos decisivos.
O Brasil de chuteiras dentro de campo, apesar dos pesares, não precisa disso para ser hexacampeã. Só precisa jogar um pouquinho mais de futebol. E como futebol é a arte da contradição, a saída de Neymar, o craque maior do time, pode ser favorável. Finalmente poderemos ter um meio de campo mais denso e compacto, com a entrada de William, e a definição de um jogo de contragolpes e também de aproximação entre laterais, meio de campo e os atacantes Fred e Hulk. Que não são lá essas coisas mas também não são muito diferentes de tantos outros adversários da posição.
Felipão deveria ter feito esse arranjo tático quando Neymar estava inteiro. Agora, terá de fazer sem ele. Homem de sorte esse Felipão, o maior destruidor de meios de campo da história nacional. Resta saber, apenas, até que ponto o atacante Neymar não fará falta. A possibilidade de a Seleção Brasileira ter arrumado o meio de campo mas sentir os abalos da destruição do poder de fogo de um artilheiro ausente não pode ser descartada.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!