Sociedade

Caso freudiano, não
para marqueteiros

DANIEL LIMA - 14/08/2001

O Grande ABC sofre de dupla esquizofrenia cultural. Rejeita a si próprio, num sentimento paroquial de explicação sociológica nada complicada, e quer que o valorizem, algo que também tem fácil explicação sociológica. Recente pesquisa anunciada pela Agência de Desenvolvimento Econômico a propósito dos serviços industriais na região confirma o que há muito LivreMercado batizou de Complexo de Gata Borralheira, expressão metafórica criada para sintetizar a sobreposição que permeia a realidade histórica local.


 


Queremos que outras regiões nos respeitem, sobretudo os paulistanos tão próximos, mas insistimos em nos subestimar. Ou, numa tentativa caricata de tornar a emenda pior que o soneto, partimos para um bairrismo artificializado para tentar mudar um quadro sistêmico.


 


A pesquisa da Agência aponta que os empreendedores da área de serviços industriais querem campanhas de marketing tanto internas quanto externas para valorização do Grande ABC. Não há nada de surpreendente na constatação porque, até prova em contrário, a quase totalidade dos entrevistados mora e vive na região. Se o universo da pesquisa for ampliado, o resultado será o mesmo porque não há como mudar os fatos. Somos, decididamente, uma região que sofre do complexo de inferioridade pela proximidade com a Capital, mais rica e exuberante. Achamos isso internamente. E nos acham isso, externamente.


 


Se a patologia é velha conhecida -- e não seria essa pesquisa que a contrariaria --, o perigo está na terapêutica. Não faltam experimentos desastrosos que entornaram ainda mais o caldo cultural de subserviência psicológica à Capital. Toda vez que se lança qualquer proposta de valorização da imagem da região, o bom senso corre o risco de ser assassinado em nome do Complexo de Gata Borralheira. O tratamento é mais perigoso ainda quando surgem oportunistas que desconhecem o histórico de ocupação social da região, mas não medem esforços para agradar a platéia com ações e discursos evasivos, sempre recheados de palavras mágicas.


 


Capital sempre melhor


 


São tantos os exemplos que fundamentam o caráter suburbano do Grande ABC que talvez se torne perda de tempo relacioná-los. Em pequenos gestos, em ações aparentemente pouco importantes, está lá escancarado um certo ranço de pertencer ou não à região. Formaturas de colegiais? A maioria opta pela Capital. Não adianta argumentar com preços mais vantajosos oferecidos pelos clubes locais. São Paulo dá status. Agência de publicidade? Da Capital, é claro. Mídia impressa? É difícil convencer o leitor do Grande ABC de que o esvaziamento industrial é algo tão certo quanto dois e dois são quatro se um veículo qualquer da Capital, mal informado quase sempre sobre a região, escrever o contrário. Produtos sofisticados na região? Bobagem. Os da Capital são melhores. E os produtos populares também.


 


É por essa e outras que paulistanos que vêm até o Grande ABC geralmente arrebitam o nariz com olhar e gestos de delegados de polícia incomodados por mais uma ocorrência envolvendo miseráveis. Não faltam, com isso, charlatães que se locupletam por determinado período porque exibem credenciais paulistanas com a mesma força de uma ISO 9000. São constrangedores os casos de empresas que se deixaram cair no canto de sereias engravatadas, polidas, paulistanas da gema, deixando de lado profissionais locais menos emplumados. Ou mesmo de profissionais da região que, por terem passado pela lavagem cerebral da Capital, voltam como heróis.


 


A vocação de subordinação à Capital está entranhada no Grande ABC. Só não é mais insidiosa do que as tentativas canhestras de quem procura combatê-la com balas de festim do aventureirismo, do messianismo e, principalmente, do proselitismo servil.


 


Não se trata de tarefa simples transplantar medidas de marketing confiáveis e sábias que reposicionem a auto-estima regional num amplo compartimento, com flexibilidade suficiente para readequações pontuais ancoradas em estratégia que tenha a responsabilidade social como manto sagrado. Somos um caso para Freud, não para marqueteiros. 


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