A disparidade salarial entre metalúrgicos de montadoras e de autopeças é um fenômeno tipicamente local que transmite a falsa impressão de que a categoria como um todo desfruta de condição privilegiada no Grande ABC, quando, na realidade, os vencimentos dos trabalhadores fora do universo das montadoras e sistemistas estão praticamente equiparados aos de outros municípios paulistas. Eis a principal interpretação da análise de LivreMercado do levantamento “Do Holerite às Compras”, produzido pela CNM/CUT (Confederação Nacional dos Metalúrgicos da Central Única dos Trabalhadores) em parceria com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Basta analisar a tabela preparada pelo estudo, e que traz médias salariais de montadoras e autopeças em vários municípios brasileiros. Metalúrgicos das montadoras do Grande ABC recebem R$ 2.760 enquanto a média salarial da base nas autopeças da região é R$ 1.408. Significa que os trabalhadores das montadoras recebem 96% a mais que os trabalhadores das autopeças – ou quase o dobro. Na gaúcha Gravataí, os metalúrgicos da General Motors recebem R$ 1.444, 33% a mais que o salário de R$ 1.086 nas autopeças. Na baiana Camaçari o desnível praticamente inexiste, já que trabalhadores com carteira assinada pela Ford ganham R$ 1.035 e os das autopeças recebem R$ 939,43.
Mais exemplos? Na mineira Betim, a remuneração média dos metalúrgicos da Fiat é R$ 1.214, 30% a mais que o salário de R$ 929,95 nas autopeças. Em São José dos Pinhais os trabalhadores da Volks recebem R$ 1.471, 54% a mais que os R$ 956,65 nos fornecedores. A fluminense Resende, sede da fábrica de veículos pesados da Volks, é a única localidade em que metalúrgicos de autopeças ganham mais do que os da montadora: R$ 1.245 contra R$ 1.607: “Naquela planta impera o sistema de consórcio modular, pelo qual os funcionários dos sistemistas de autopeças atuam diretamente na linha de produção” – explica a pesquisadora Adriana Marcolino.
A diferença abissal entre os vencimentos de metalúrgicos de montadoras e de autopeças observada no Grande ABC só encontra rival na região do Vale do Paraíba, onde estão fábricas da General Motors e da Volkswagen. Em São José dos Campos chega a 97%, R$ 2.689 contra R$ 1.364. Em Taubaté atinge 130% – mais que o dobro – R$ 2.677 contra R$ 1.161.
E fácil entender por que no Grande ABC e no Vale do Paraíba os metalúrgicos estão divididos em duas classes distintas – a dos primos ricos e a dos primos pobres. As duas regiões são marcadas por industrialização automotiva mais antiga, o que significa que salários – e benefícios – concedidos pelas montadoras foram inflados pelo compressor das reivindicações sindicais em décadas de mercado fechado. No Grande ABC, os salários nas autopeças também fermentaram nos tempos pré-globalização, porque as reivindicações impostas às montadoras reverberaram em toda a cadeia de suprimento. Mas a situação dos trabalhadores das autopeças da região mudou drasticamente desde que Fernando Collor, ex-presidente da República recentemente empossado senador, começou a abrir a economia após afirmar que o País fabricava carroças.
Conforme explicou o sindicalista Cícero Martinha, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, em Reportagem de Capa de LivreMercado de março, as chamadas conquistas históricas de benefícios polpudos foram praticamente pulverizadas pela globalização. Além de arcar com boa parte dos custos de saúde, transporte e alimentação antes integralmente bancados pelas empresas, metalúrgicos fora da órbita das montadoras e sistemistas amargam salários em constante compactação porque a troca de trabalhadores mais velhos e bem remunerados por jovens que aceitam ganhar menos se alastrou como praga. E nem reposições salariais acima da inflação são suficientes para estancar a sangria causada pelo turnover – rotatividade de pessoal.
Nas regiões de industrialização mais recente como Gravataí e Camaçari o quadro é outro. O salário pago nas novas fábricas de veículos não foi anabolizado por décadas de reivindicações sindicais. Por isso não destoa tanto dos vencimentos nas autopeças. Embora a Fiat não possa ser incluída na categoria das new comers (novatas), pois está em Betim desde 1976, o salário de R$ 1.214 equivale a menos da metade do das montadoras no Grande ABC. Isso significa que, a despeito do discurso segundo o qual vantagens salariais são temporárias e não magnetizariam montadoras, porque os trabalhadores se mobilizam por melhores rendimentos, a montadora radicada em Minas ainda leva enorme vantagem sobre o Grande ABC no tocante aos custos com a folha de pagamentos.
Estreitamento – Se os salários das montadoras no Grande ABC estão muito acima dos de outras localidades, o mesmo não ocorre em relação às autopeças. Há municípios onde já se pagam salários mais altos, outros onde se verifica empate técnico e um terceiro grupo onde a diferença é tão pequena que, com o andar da carruagem descrita por Cícero Martinha, tende a se anular num futuro não muito distante. Aos números: tirando o caso especial de Resende, Campinas é a cidade que paga o salário mais alto para metalúrgicos de autopeças, com R$ 1.571. Em seguida vêm Santo André, São Bernardo e Diadema, com R$ 1.408, e logo na sequência estão Pindamonhangaba, com R$ 1.379, São José dos Campos, com R$ 1.364, Sorocaba, com R$ 1.268, a gaúcha Caxias do Sul, com R$ 1.195, Sumaré, com R$ 1.193, Taubaté, com R$ 1.161, e Araraquara e Limeira, com R$ 1.148.
O que pode ser extraído dos dados – aí sim, sem ufanismo – é que os salários nas autopeças paulistas, sobretudo na macrorregião da Grande São Paulo expandida, são consideravelmente mais elevados que nas similares de outros Estados, embora a diferença não faça sombra ao abismo entre as montadoras. O salário médio do metalúrgico de autopeça é de R$ 929,55 em Betim, R$ 939,43 em Camaçari e R$ 956,65 em São José dos Pinhais, no Paraná.
O levantamento apresentado por CNM/CUT e Dieese representa atualização de estudo divulgado em 2003 e tem alvo certo: fornecer subsídios para a adoção do chamado Contrato Coletivo Nacional do Trabalho, que, em termos simplificados, significa a instituição de piso nacional com base em vencimentos mais altos das montadoras no Grande ABC. Já que não haveria diferenças significativas de custo de vida nas diversas cidades analisadas, como as entidades sindicais garantem ter constatado através de pesquisa que envolveu cesta de produtos e serviços composta de 54 itens, não faria sentido ter remunerações tão destoantes. No que depender dos sindicalistas, o acúmulo de benesses nos tempos de mercado fechado será estendido à base em território nacional.
A idéia é tão oportunista do ponto de vista sindical como virtualmente desastrosa para uma indústria que enfrenta crise em nível mundial e convive com alta capacidade ociosa no Brasil, a despeito do aumento das vendas internas impulsionadas pelo alongamento dos prazos de financiamento. Além disso, é altamente improvável. Num cenário em que fábricas migram da Europa Ocidental para a Europa Oriental a fim de escapar de altos custos trabalhistas, e em que China e Índia despontam como superpotências do setor, é impossível acreditar que o Brasil se curve à proposta entre outros motivos porque competitividade não é um animal que se subordina ao corporativismo.
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21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?