Em casa onde falta o pão da competitividade, todos gritam e ninguém tem razão. Engana-se quem acredita que o acordo fechado no mês passado para a demissão premiada de 3,6 mil trabalhadores da Volkswagen em São Bernardo encerra de vez a longa e penosa trajetória de esvaziamento de emprego num dos mais respeitados símbolos da industrialização do Grande ABC, marca do desbravamento automotivo do então presidente Juscelino Kubitschek. Esse drama ainda não chegou ao fim, por mais que esperneiem os sindicalistas da CUT (Central Única dos Trabalhadores) numa das mais concorridas fortalezas trabalhistas, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
O novo capítulo de escaramuças entre metalúrgicos e a direção da maior fábrica da multinacional alemã fora do território europeu começou em maio, estendeu-se até o início de setembro e deixou rastro de acusações, idiossincrasias, destemperos, pressões, acomodações e, principalmente, a tentativa de transformar a Volks em vilã nacional. Pura bobagem. Não há quem escape do ônus. O peso da responsabilidade deve ser compartilhado por muitos agentes.
A Volkswagen abre a lista apenas porque é o centro dos problemas, não porque responde por maior peso de vilania. A subsidiária brasileira calibrou mal os investimentos à exportação e, com isso, foi colhida na armadilha de nova valorização da moeda nacional da qual não é a única vítima o que, portanto, não a coloca como insana planejadora. Recentes números apresentados pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) colocam a maioria dos setores da indústria nacional em situação desconfortável por causa do peso do real.
Depender demais de exportações é mesmo um desastre para quem conhece a ciclotímica performance da economia verde-e-amarela. Situação que, combinada com o chamado Custo Brasil, praticamente aniquila a alíquota protecionista de 35% às importações no setor automobilístico. Além disso, a Volkswagen demorou para perceber tanto na Alemanha como no Brasil que o curso da história automotiva mudou de rumo depois que apareceram os asiáticos e agora também o Leste Europeu com mão-de-obra aviltada por sistema trabalhista que beira o escravagismo, abundância de investimentos e imensa capacidade de aprendizagem sob a base educacional.
Desbotado
Os metalúrgicos também entram nesse jogo em que todos perdem porque insistem em repetir cenários desbotados dos tempos de mercado fechado, salários generosos e conquistas trabalhistas de Estado de Bem-Estar Social. Eles fabricavam carroças que uma classe média ascendente consumia por falta de opção. Um acordo arrancado a fórceps há cinco anos, de congelamento de demissões em São Bernardo, retardou o redesenho do quadro de trabalhadores e minou os indicadores de rentabilidade da empresa.
Mesmo aquele acordo não impediu que no período de 60 meses a Volkswagen aplicasse linha de corte de trabalhadores pela supressão de vagas de demissões voluntárias ou eventualmente premiadas longe dos tentáculos do sindicato. Eram 16 mil trabalhadores em São Bernardo quando se anunciou no final de 2001 o acordo de pacificação precedido, como agora, de ameaça de fechamento da fábrica.
O governo Lula da Silva acrescenta-se aos ingredientes dessa mistura explosiva porque não se tem tornado competente para sair da enrascada administrativa e tributária deixada por Fernando Henrique Cardoso. Em última instância, a situação interdita qualquer possibilidade de elevação significativa do PIB (Produto Interno Bruto) por habitante que, nos últimos 25 anos, avançou mísero 0,9% ao ano.
Mesmo ao se especializar em encurtar a distância que separa rendimentos da população, o resultado do governo Lula da Silva se dá à custa do empobrecimento da classe média consumidora de veículos e da massificação do assistencialismo do Bolsa Família e do aumento real do salário mínimo aos aposentados e pensionistas da Previdência Social.
O contraponto dessa operação esparadrapo é a limitação de investimentos públicos a 0,5% do PIB, quando deveria alcançar pelo menos três vezes mais para incrementar a economia, especialmente a infra-estrutura logística. As vantagens de Lula sobre FHC é que sincronizadamente a quebra da espinha dorsal de rendimentos da classe média foi menos intensa nos últimos três anos do que no período do antecessor, e a elevação dos favores aos pobres e desvalidos foi fortemente alavancada com o Bolsa Família que já atinge 11 milhões de residências.
O fantasma do governo Fernando Henrique Cardoso continua em cena porque foi eficientíssimo na desmontagem da herança de mobilidade social do Grande ABC. Durante oito anos FHC lancetou o coração econômico da região com a mais abusada abertura econômica. Os ataques de liberalismo sem contrapartidas e gradualismo inegociáveis pelos asiáticos atingiram principalmente o conjunto de autopeças e montadoras locais.
A descentralização automotiva premiou competidores internacionais e também montadoras instaladas na região. A guerra fiscal campeou solta por vários territórios, sempre a dano do Grande ABC. Além de decepar 86 mil empregos industriais com carteira assinada, FHC torpedeou a grade dos melhores assalariamentos numa operação de desmobilização social sem precedentes. Em oito anos o Grande ABC perdeu de assalariamentos industriais de mais de 20 salários mínimos o equivalente à dupla lotação do Estádio Bruno Daniel, em Santo André, ou cerca de 30 mil empregos.
Covas e Alckmin
O governo Mário Covas e seu sucessor, Geraldo Alckmin, também nada fizeram exceto promessas para conter o dilúvio federal nos tempos de Fernando Henrique Cardoso. A omissão no enfrentamento da guerra fiscal foi um grande vácuo do governo estadual que, apenas nos dois últimos anos, movido por interesses eleitorais de chegar à Presidência da República, introduziu série de rebaixamento de alíquotas em duas centenas de produtos para minimizar efeitos dilapidadores provocados anos seguidos por outros pedaços da Federação. Nada, entretanto, que significasse respiro ao setor automotivo, literalmente abandonado ao deus-dará pelos gerenciadores públicos paulistas no período.
Não passou de miragem o que foi prometido pelo governo do Estado como plano estratégico que emergiria da Câmara Regional do Grande ABC. O governo Covas seguido do governo Alckmin foi eficientíssimo na redução da sonegação fiscal. Apertou o cerco contra contribuintes, especialmente empresas de cadeias produtivas, racionalizando receitas com operações que colocaram o conhecimento técnico e as parafernálias tecnológicas a serviço do Estado. Entretanto, nem Covas nem Alckmin tiveram vocação e competência para o incremento de atividades geradoras de riqueza. Assistiram passivamente à guerra fiscal impactar a economia paulista. Tanto que o Estado de São Paulo vem perdendo cada vez mais participação relativa no bolo nacional de produção industrial. Especificamente no setor automotivo, os números amplamente conhecidos colocam os paulistas no acostamento nacional.
Para completar, o Grande ABC é um deserto de institucionalidade. Entidades sociais, governamentais e econômicas se comportaram o tempo todo nos anos 1990 como expressão clássica de autismo social. Descrentes da possibilidade de ameaça ao capitalismo que vicejou no Brasil com certa extravagância durante pelo menos três décadas, poucos se lixaram com os fartos sinais de alerta de que o barco do desenvolvimento fazia água.
Efeitos colaterais
Ainda hoje, quando há consciência coletiva do desastre econômico com fundas repercussões sociais, a maioria dos agentes econômicos, sociais e governamentais prefere distanciar-se entre si e assistir de camarote aos embates entre sindicalistas e executivos da Volks, na expectativa de que eles, que geraram Mateus, que o embalem. Não sem uma certa dose de razão, porque metalúrgicos e montadoras sempre se comportaram como um mundo à parte no Grande ABC, embora as decisões que patrocinaram, como se observa mais uma vez agora com o corte de mais de três mil cabeças, reflita na quebra suplementar da qualidade de vida regional.
Faltou aos agentes governamentais, sociais e econômicos do Grande ABC durante o período de afrouxamento automotivo a sensibilidade para entender que, mais dia, menos dia, os efeitos colaterais da atividade mais competitiva do mundo atingiria a sociedade como um todo. Esperar que o novo assalto que envolveu a Volkswagen e os metalúrgicos de São Bernardo demarque o fim da história de conflitos entre capital e trabalho no Grande ABC é ingenuidade ou boa desculpa à inação.
Trata-se mesmo de apenas mais um assalto de uma luta desigual cujos contendores mais visíveis estão em cantos de um ringue que atrai muitos holofotes. A Volkswagen tem poderes e necessidade para reduzir, reduzir e reduzir o número de trabalhadores. Enquanto isso, as lideranças dos trabalhadores não têm feito nada senão exercer resistência cujo escopo perde o viço na velocidade dos entrechoques por conquista de mercado nacional e internacional.
O Grande ABC ainda não se deu conta de que o setor automotivo é questão emergencial porque significa a própria estabilidade socioeconômica da maior parcela de 2,5 milhões de habitantes. Agir na contramão da tradição envelhecida é o golpe de mestre que se espera. Basta intensificar a competitividade de montadoras e autopeças com um plano de ação que rebaixe impostos à reocupação de terrenos e galpões vazios e que repactue custos trabalhistas em sintonia clara com indicadores de produtividade e competitividade internacionais, criando-se, portanto, condições para a viagem de volta de autopeças que se evadiram desse espaço minado.
Parece muito? O custo de novas demissões na Volkswagen e nas demais montadoras do Grande ABC, e do estreitamento e enxugamento de quadros de autopeças cada vez mais comandadas pelo capital internacional, é comprovadamente muito mais doloroso. Escolher seletivamente a Volkswagen como megera de relações trabalhistas no Grande ABC é uma grande bobagem, até porque é um equívoco. O problema econômico do Grande ABC chama-se competitividade.
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