Uma das questões-chave na trajetória de LivreMercado, a necessidade de conferir tratamento diferenciado às regiões metropolitanas ficou ainda mais evidente. Levantamento realizado pelo economista André Urani, diretor-executivo do Iets (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), do Rio de Janeiro, apontou com números o que milhões de habitantes sentem na pele: a luta pela sobrevivência nas metrópoles e aglomerações urbanas é mais árdua que no restante do País. E se a metrópole em questão responder por Grande São Paulo, como é conhecido o conjunto de 39 municípios e 19 milhões de habitantes — incluindo os 2,5 milhões pertencentes ao Grande ABC — a situação piora ainda mais.
Antes de esmiuçar os dados, convém explicar aos não iniciados no tema: regiões metropolitanas são compostas pelas capitais estaduais e municípios vizinhos. São áreas densamente povoadas e relativamente mais ricas que o conjunto das demais regiões brasileiras pelo simples fato de que serviram de plataforma para a industrialização em décadas passadas. O problema é que a combinação de explosão populacional e enxugamento industrial em anos mais recentes gerou uma tremenda dor de cabeça para administradores públicos e estudiosos ávidos por encontrar soluções para o problema. Como as metrópoles incharam demograficamente e empobreceram economicamente, o bolo menor precisa ser dividido entre uma quantidade maior de bocas. O que torna conflitos humanos refletidos em altas taxas de criminalidade, desemprego e subhabitação uma consequência tão lógica quanto lamentável.
A metáfora do bolo menor sintetiza os resultados do levantamento de André Urani. Ao comparar dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) entre 1992 e 2004, o pesquisador constatou que as regiões metropolitanas regrediram ou avançaram muito pouco em indicadores econômicos e sociais que tiveram melhora mais significativa no País como um todo. Por isso, qualificou as metrópoles como baleias encalhadas que retardam o desenvolvimento do Brasil, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. O único veículo impresso de massa, aliás, que conferiu destaque à pesquisa de irrefutável importância.
A expressão baleia encalhada é perfeita porque corresponde a derivação bem humorada — e paradoxal — da expressão países baleias, utilizada por economistas para designar nações continentais e populosas com grande potencial de crescimento, casos de Brasil, Índia, China e Rússia. Sem desatar o nó górdio metropolitano com políticas públicas especificamente planejadas, países emergentes não alcançarão o status de desenvolvidos.
A pesquisa constatou, por exemplo, que o número de pobres regrediu quase 10 pontos percentuais no Brasil, de 40,8% em 1992 para 31,7% em 2002. Mas no conjunto das regiões metropolitanas a queda foi muito menor, de 30,1% para 26,7%, e na Grande São Paulo ficou praticamente estável ao oscilar de 24,2% para 23,5%. A renda média no Brasil subiu 9,4%, de R$ 584,81 em 1992 para R$ 640,36 em 2004. No conjunto das regiões metropolitanas a renda subiu 1,2%, de R$ 868,16 para R$ 878,24, e na Grande São Paulo houve recuo de 3,1%: de R$ 1.035,97 para R$ 1.003,62.
Cai a renda, aumenta a informalidade. A participação dos empregados sem carteira assinada na força de trabalho cresceu 2,3 pontos percentuais no Brasil, de 21,7% para 24% — incluindo o setor rural predominantemente informal. Nas regiões metropolitanas a informalidade subiu cinco pontos percentuais, de 17,6% para 22,6%, e especificamente na Grande São Paulo saltou 8,8 pontos percentuais, de 14,9% para 23,7%. A participação do emprego industrial no total da força de trabalho manteve-se praticamente estável no Brasil, de 7,4% em 1992 para 7,6% em 2004. Nas regiões metropolitanas caiu de 8,6% para 6,6% e a Grande São Paulo registrou tombo de 10,6% para 6,6%. A taxa de desemprego foi única a evoluir de forma homogênea, mas atinge nível mais elevado na maior metrópole do País: cresceu de 6,42% para 9,01% no País, de 9,14% para 13,06% nas regiões metropolitanas e de 10,10% para 13,85% na Grande São Paulo.
Desindustrialização
É fácil entender por que a Grande São Paulo é um caso à parte de compactação de renda e empregos no contexto brasileiro e metropolitano. Basta recorrer à reportagem “Um longo refluxo de investimentos”, publicada por LivreMercado de abril último, para compreender que dieta forçada tem ligação estreita com emagrecimento socioeconômico. A matéria produzida com base em pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) mostra que a região metropolitana abocanhou apenas 31% das intenções de investimentos privados anunciadas para o Estado de São Paulo em 2004. Ou US$ 4,835 bilhões do total de US$ 15,6 bilhões. Na outra ponta, Interior e Baixada Santista despontaram com 69% dos recursos para implantação, ampliação ou modernização de empresas dos mais diversos segmentos.
A situação da Grande São Paulo se torna ainda mais preocupante quando entra em campo a análise do perfil dos investimentos. Do total de US$ 15,6 bilhões, US$ 7,2 bilhões dizem respeito a investimentos industriais, ou 46%. E desses US$ 7,2 bilhões, apenas US$ 1,8 bilhão está relacionado à região metropolitana, ou 25% do bolo.
Como o setor industrial tradicionalmente paga salários mais elevados que comércio e serviços, além de fazer uso mais intensivo de carteira assinada, os dados levantados por André Urani estão mais do que consubstanciados.
A reportagem de LivreMercado lembrava ainda que, em meio a fatos tão desanimadores, era possível pinçar notícia supostamente redentora para o Grande ABC: a região despontou como destino de 61% dos investimentos industriais anunciados para a Grande São Paulo. Mas a notícia é apenas supostamente redentora porque quase 90% dos recursos estão atrelados à modernização de seleto grupo de empresas já instaladas, e não ao desembarque de empresas seduzidas por vantagens locacionais. Embora investimentos de atualização sejam bem-vindos, é preciso comemorar com comedimento porque o potencial de geração de postos de trabalho é baixíssimo ou simplesmente nulo.
E o cenário de perda de atratividade não é circunstancial. Na média de nove anos, entre 1996 e 2004, a Grande São Paulo ficou com 32,5% dos investimentos captados pela Fundação Seade.
Os motivos pelos quais a Região Metropolitana de São Paulo concentra fatia minoritária de investimentos compulsórios em atualização fabril enquanto pólos promissores do Interior crescem com multiplicação de novas fábricas? Trânsito caótico, criminalidade galopante, alto custo fundiário, baixa qualidade de vida, entre outros efeitos do crescimento desordenado que caracterizou a urbanização paulista e brasileira.
Efeito público
A escassez de investimentos privados engendra mais problemas de ordem pública. Além de rebaixar níveis de emprego e renda, a evasão industrial causa rombo nas finanças de municípios metropolitanos. Ao mesmo tempo em que aumenta a demanda por serviços públicos de saúde, educação, habitação, transporte e segurança, a capacidade de atendimento é seriamente comprometida pela redução do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) proveniente das atividades industriais.
A pressão sobre a estrutura pública na contramão da capacidade de investimento coloca municípios metropolitanos em ciclo vicioso do qual torna-se praticamente impossível escapar sem ajuda externa. Por isso LivreMercado defende — historicamente — que os governos estadual e federal criem mecanismos que contribuam para resgatar a Grande São Paulo do buraco em que se encontra. Uma das soluções mais polêmicas é a criação do Estado da Grande São Paulo. A proposta defendida por Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, foi esmiuçada em Reportagem de Capa da edição de fevereiro de 2002. Basta recorrer ao arquivo para constatar que a proposição não tem nada de preconceituosa ou separatista, como podem imaginar analfabetos no temário. A conversão em Estado seria a maneira mais eficiente de garantir recursos financeiros e representatividade política à altura da importância econômica — e dos desafios — dos 39 municípios.
Outra saída possível seria a criação de um Fundo de Participação das Regiões Metropolitanas, sugerido pelo economista Marcos Mendes na edição de outubro de 2002. A principal vantagem é que o fundo metropolitano não implicaria na criação de novos impostos, mas no direcionamento dos recursos existentes. O FPRM seria formado por fatias do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), FPE (Fundo de Participação do Estado) e do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
“A idéia não seria dividir os recursos entre os municípios metropolitanos de acordo com algum critério objetivo, como população ou índice de pobreza. O melhor seria aplicar os recursos em investimentos conjuntos, como corredor de transporte, usina de lixo, despoluição de rio, remoção de habitantes de área de risco e políticas de prevenção social e combate à violência. O fundo financiaria parte dos projetos, que deveriam contar também com recursos das cidades envolvidas” — explicou Marcos Mendes, consultor do Senado Federal.
Outra possível intervenção que já esteve no foco de LivreMercado diz respeito à alteração no sistema de partilha do ICMS, que confere importância desproporcionalmente maior ao quesito produção em detrimento da população. Como os municípios da Grande São Paulo perderam geração industrial e incharam do ponto de vista demográfico, o sistema de partilha carrega flagrante viés antimetropolitano.
Antes de se candidatar à presidência da República, Geraldo Alckmin prometeu uma revolução na governança da metrópole paulista através da criação de agência e fundo financeiro específicos, a exemplo do sistema vigente nas regiões de Campinas e Baixada Santista. E garantiu que o Grande ABC serviria de modelo, graças às experiências do Consórcio Intermunicipal. Há vários pontos vulneráveis na proposta. A metropolização de Campinas e Santos é alvo de incontáveis críticas, mesmo sendo muito menores e menos complexas que a Grande São Paulo. Além disso, o Grande ABC fraturado por interesses políticos não deve servir de referência para ninguém em pleno juízo. A não ser como manancial de erros a serem evitados. As deformações genéticas da proposição perdem importância ao se constatar que o plano virou pó no rastro da candidatura presidencial. A possibilidade de virar realidade é menor que a da seleção de Togo sagrar-se campeã da Copa de 2010.
Enquanto representantes políticos dos municípios metropolitanos não se mobilizam para implementar o Estado da Grande São Paulo, o Fundo de Participação dos Municípios Metropolitanos ou pelo menos para alterar o sistema de partilha do ICMS, a Região Metropolitana de São Paulo permanece como ficção jurídico-institucional. Não há exemplo mais sintomático do deletério improviso brasileiro que a manutenção da região à margem de ações minimamente planejadas.
Abacaxi internacional
Se serve de consolo, o abacaxi das grandes cidades está longe de ser exclusividade brasileiro. O problema deita raízes internacionais e de forma ainda mais profunda em países da América Latina, Ásia e África, que concentram praticamente a totalidade do um bilhão de favelados. Isso mesmo. Cerca de um bilhão vive em favelas, quase um sexto da população mundial estimada em 6,45 bilhões e quase um terço dos 3,22 bilhões em áreas urbanas. E 52,4 milhões de favelados são brasileiros, ou 34% da população do País.
Os números são da ONU (Organização das Nações Unidas), que converteu os males da urbanização frenética em alerta global. Tanto que promoveu o 3º Fórum Urbano Mundial entre 19 e 23 de junho em Vancouver, no Canadá. O evento marcou 10 anos da fundação da Agenda Habitat, composta por 64 diretrizes de planejamento urbano, e três décadas do lançamento do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, realizado em encontro semelhante também em Vancouver, em 1976.
Mantidas as atuais taxas de crescimento demográfico, a população das cidades vai ultrapassar no ano que vem a das zonas rurais pela primeira vez na história. Como os problemas se multiplicam na mesma proporção, cerca de seis mil representantes de 150 países foram ao Fórum Urbano Mundial em busca de soluções. Incluindo João Avamileno, prefeito de Santo André e diretor-executivo da Rede Mercocidades, formada por 160 municípios latino-americanos. O resultado dos debates e sessões plenárias que se estenderam por cinco dias? Prefeitos querem maior independência financeira no contexto dos arranjos federativos e garantia de que recursos oriundos de organismos internacionais de cooperação sejam destinados diretamente às cidades, sem passar por esferas superiores de poder constitucional. Prefeitos alegam que, por manter mais proximidade com os problemas urbanos do que governantes estaduais e federais, estão mais aptos a aplicar recursos de forma mais eficiente. Sustentam ainda que o repasse de verbas internacionais diretamente para cofres municipais contribui para eliminar possíveis focos de corrupção.
Os argumentos endereçados aos membros das Nações Unidas e do Banco Mundial partem do pressuposto de que grandes municípios metropolitanos merecem compensação à baixa fatia nos tributos nacionais a que normalmente têm direito. Principalmente no Brasil, onde União e Estados ficam com cerca de 80% da arrecadação. “As atribuições das prefeituras aumentaram muito como resultado do processo de descentralização nos últimos anos, mas os recursos não acompanharam essa mudança” — observou João Avamileno, cuja opinião é compartilhada por Evelyn Herfekens, representante da ONU.
O norte-americano Mike Davis é um dos principais especialistas em urbanização acelerada, habitações precárias e outros temas do universo metropolitano. Professor do Instituto de Arquitetura da Califórnia, urbanista e escritor com quase uma dezena de títulos, entre os quais Planet of Slums, literalmente Planeta de Favelas, Mike Davis concedeu entrevista ao jornal O Estado de São Paulo na qual explicou por que a Terra está se transformando a passo acelerado no que chama de um imenso favelão.
“A imigração para as cidades continua incrivelmente alta em termos mundiais e especialmente na África, mesmo com as evidências de que, a cada dia, são menores as possibilidades de mudar o padrão de vida nos grandes centros. Os pobres preferem vir para a cidade para morar mal, comer mal, viver mal e ter oportunidade de garantir estudo para os filhos. Apostam numa loteria da vida: mesmo que a possibilidade de fracasso seja alta, acham que ganharão lá na frente”.
Em outro trecho, o especialista fez uma previsão que já se consuma em alguns pontos do globo, como o Brasil emparedado por organizações criminosas. “Do jeito que as coisas vão, já estão dadas as condições para uma espécie de triagem da humanidade. E as favelas funcionam como recipiente para quase um bilhão de pessoas. Se essa gente um dia se rebelar, o planeta será sacudido em seus pilares”.
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