Faz muito tempo que escrevo sobre a dívida das entidades de classe empresarial, sindical, social e cultural junto à sociedade regional. Somente os imbecis juramentados ou os aproveitadores semânticos que buscam esconder a própria incapacidade de gerar cidadania não enxergam essa realidade histórica, pretendendo transformá-la em ação de vingança pessoal ou corporativa. Nada mais estúpido.
Quem individualiza minhas críticas a determinada associação por conta de diferenças pessoais é um desastrado observador da cena regional, quando não um patético alquimista na tentativa de inverter a ordem das coisas. A origem da discórdia não tem relação alguma com o que se passa fora do campo profissional. As rupturas se deram e se dão porque dirigentes dessas organizações se repetem nas ações mequetrefes, cujas críticas são cláusulas pétreas das publicações que dirijo e que podem ser resumidas no seguinte enunciado: a cidadania regional está acima de interesses particulares inclusive deste jornalista.
Por conta do fato de que considero importante descaracterizar as bobagens de que movo perseguição individual e seletiva a inutilidades regionais que ostentam dísticos tão tradicionais quanto envelhecidos na forma de se conduzirem, decidi vasculhar rapidamente o acervo desta revista digital. Encontrei uma porção de exemplos que combatem frontalmente a premissa de objeção gratuita a determinadas falsas lideranças da região.
Encontrei entre as alternativas uma espécie de resumo do trabalho que desenvolvemos há muito tempo. Vou repassar logo abaixo um trecho de 8.123 caracteres do Planejamento Estratégico Editorial que preparei como plano de voo para dirigir a redação do Diário do Grande ABC entre julho de 2004 e abril de 2005. O contrato moral de cinco anos foi rompido pelo jornal porque havia um conflito latente entre o que propôs este profissional como condição para assumir aquele cargo e as demandas paralelas daquela empresa de comunicação.
Trabalho, muito trabalho
Cheguei àquele jornal não com o deslumbramento de muitos jovens e imaturos que pretendem construir currículo, mas com a coerência de quem não abriria mão do conhecimento agregado para mudar a rota da publicação. Deus sabe quanto relutei em aceitar a direção editorial daquele jornal, por razões as mais variadas, entre as quais certo esgotamento do jornalismo diário. E Deus também sabe o quanto agradeço por ali ter por estado por apenas nove meses. O Diário do Grande ABC não é um veículo que comporta um jornalista com raízes conceituais antagônicas às mediocridades instaladas principalmente nas entidades de classe, oportunistas por natureza e safadeza. Fui contratado para jogar ofensivamente, mas o jornal preferiu a retranca em que se enredou de vez.
Lamentavelmente, o que se viu desde minha saída da direção editorial do Diário do Grande ABC foi uma piora contínua da qualidade editorial exatamente no que se refere à abordagem que faço agora: a institucionalidade da publicação perante as forças de pressão da região. O jornal não conseguiu enfrentar o desafio de que só seria reformista, na medida exata das necessidades de uma região que se apequenou inclusive intelectualmente ao longo dos anos, caso colocasse todos os dedos nas feridas institucionais.
Fico muito à vontade para escrever sobre o assunto porque o fragmento do macrotexto que preparei para dirigir aquele jornal é instrumento público, está disponível nestas páginas digitais há muito anos e foi entregue pessoalmente por mim aos diretores daquela empresa antes mesmo do primeiro dia de trabalho. Sem contar que também todos os colaboradores da publicação, inclusive de áreas não diretamente ligadas à Redação, foram contemplados com cópia do material.
Não fiz de minha estadia no Diário do Grande ABC intervalo de obscuridades e conchavos. A revista LivreMercado me dera até então e também na sequência tudo de que um profissional de comunicação não abre mão: personalidade própria, independência editorial, qualidade insuperável dos textos, entre tantos predicados. Morro de rir quando comparo aquela publicação com os jornais da região. A diferença é abissal. Aos textos relatoriais e escravizados às fontes de informação LivreMercado opôs interpretação, especialização, personalização.
Liberdade condicionada
Não pensem que estou satisfeito ao constatar, 10 anos após minha chegada ao Diário do Grande ABC (e 30 anos após atuação entre os anos 1970 e 1985) que a situação se tornou ainda pior em relação aos pressupostos que lancei no Planejamento Estratégico Editorial. Muito pelo contrário: aquele legado que exercitei durante todo o tempo em que estive no comando da Redação virou pó. A linha editorial desta revista digital é flagrantemente antagônica ao que apresenta regularmente o Diário do Grande ABC, como o fora durante todo o tempo a revista LivreMercado, criada por mim.
Tanto virou pó a proposta de libertar o Diário do Grande ABC das forças de pressão que jamais me deixaria levar pela lorota da Acisa e da OAB de Santo André, anunciada ontem pelos respectivos presidentes, sobre uma empreitada apenas cosmética, de contrariedade com a proposta de aumento do efetivo de vereadores.
Nem a Acisa nem a OAB contam com massa crítica para opor-se àquela empreitada. Tanto uma entidade quanto outra oferecem baixíssima representatividade de classe. Nada diferente das demais, restritas a grupinhos de comando. E mais ainda: tanto a Acisa quanto a OAB só se manifestaram porque o aumento de cadeiras do Legislativo não agrada ao prefeito Carlos Grana, a quem as duas entidades estão atreladíssimas, e também porque é uma causa integralmente apoiada em silêncio pela sociedade. Desafio as duas entidades a encararem outras disputas. Por que, por exemplo, não cobram veementemente a apuração completa do escândalo do Semasa?
Aqueles que avaliam apressadamente que só me oponho às entidades de classe porque supostamente teria alguma diferença com seus dirigentes têm na sequência deste texto, na reprodução de parte da proposta de recuperação editorial do Diário do Grande ABC, em julho de 2004, a oportunidade de observar uma fina conexão elucidativa, lógica e coerente do trabalho que exercitamos muito antes de chegar àquele jornal.
Um terreno sagrado
Diria mais: fosse este jornalista o oportunista que a Província merece, tanto o senhor Evenson Dotto (presidente da Acisa) como Fábio Picarelli (presidente da OAB) seriam meus interlocutores permanentes. Entretanto, como não consigo me desvencilhar do compromisso de informar com o máximo possível de isenção, afastei-me tanto de um quanto de outro para dispor de liberdade ética para atuar com absoluta independência. Evenson e Picarelli são pessoas educadas, simpáticas, agradáveis. Mas não me servem como jornalista porque estão a léguas de distâncias das reais necessidades da região.
Agora, coloco à disposição dos leitores, parte do texto relativo ao que pretendia aplicar durante os primeiros cinco anos de um contrato verbal com o Diário do Grande ABC, mas que se resumiu a nove meses naquele endereço e a uma vida inteira como profissional em vários veículos de comunicação que não abre mão do direito sagrado de exercitar a função de comunicador social. Gostem ou não os mandachuvas e mandachuvinhas de plantão.
Relacionamento externo
O relacionamento com público externo é uma equação que requer desprendimento. Nem sempre é possível detectar, mas geralmente é viável abortar inescapáveis problemas. Basta querer. Trata-se do distanciamento mínimo dos formuladores editoriais e dos responsáveis acionários pelo produto que vai às ruas e as fontes de pressão. O apadrinhamento de pessoas e entidades é o desvio mais rápido para a acomodação editorial, seguida da desmoralização nem sempre impactante mas sem dúvida suficientemente danosa.
Premiar agentes improdutivos com mistificações deliberadas ou acríticas destila indignação mesmo que silente no seio da comunidade que conhece mais de perto o oportunismo de atores que se aproximam da mídia apenas para levar vantagem. Quando essas sanguessugas se cristalizam no poder midiático, acabam por definir o padrão ético-editorial da publicação. Se os improdutivos tomam tanto espaço, como será possível aos eventuais produtivos apeá-los do poder sem correr o risco de antagonizar-se com a mídia?
O Grande ABC vive momento especial demais para permitir a perpetuação dessa tradição arraigada no jornalismo nacional. É preciso dar vez ao reformismo sem, entretanto, cair no viés extremo de fabricar novos agentes. Os relacionamentos institucionais do Diário do Grande ABC — ou seja, as relações da empresa com o público externo formado por administrações públicas, entidades econômicas, legisladores, lideranças sociais e culturais, gestores e produtores acadêmicos, entre tantos — não podem ser confundidos com a linha editorial.
É verdade que uma coisa necessariamente não exclui a outra, mas também é fato que uma coisa pode contaminar a outra e destilar, como dissemos, o conceito de que mais importante do que fazer é fazer de conta que se faz, porque sempre haverá um veículo importante para sacralizar o pecado da omissão dissimulada e do despreparo escamoteado.
O jornal, como produto e como instituição, não pode, portanto, construir relações circunstanciais ou efetivas que afetem os insumos editoriais. Dar oportunidade a todos para que participem de uma grande virada institucional do Grande ABC é ação prospectiva que tem o condão de zerar os déficits do presente e do passado. A vantagem de incrementar essa nova empreitada é que os erros acumulados deverão servir de lição. Somente um novo enquadramento editorial que dignifique quem tem garrafas para vender permitirá a reconstrução de relacionamentos entre as instituições mais importantes da região, provavelmente com o Diário do Grande ABC como catalisador dessas operações.
Nada, entretanto, que lembre o fracasso do Fórum da Cidadania, deliberadamente uma ação do jornal que, por não ter tido o controle estratégico recomendado, cometeu o desvio múltiplo de baixa representatividade, politiquismo partidário, afrouxamento institucional, entre outros problemas.
Tornar-se o centro nuclear das ações de restauração das forças econômicas e sociais da região não significa afirmar que o Diário do Grande ABC deve paternalizar as entidades. Pelo contrário: nosso regionalismo recomenda que as instituições sintam-se livres de amarras que eventualmente as embalem incondicionalmente e as coloquem, portanto, a salvo de restrições e correções de rumo.
Tivesse o Fórum da Cidadania dispensado o hierarquismo do Diário do Grande ABC, cujos vários representantes tutelaram reuniões de forma muitas vezes explícita, outras vezes implícita, provavelmente não se teria desperdiçado o mecanismo até então mais interessante de reação organizada da comunidade. Mesmo considerando-se que o Fórum da Cidadania reduziu-se a apenas um ou dois representantes de cada entidade e que não demorou quase nada para a esfuziante usinagem inicial virar sucata.
A osteoporose econômica do Grande ABC, que perdeu 39% do PIB industrial ao longo dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, é a prova cabal de como o Diário do Grande ABC fracassou editorialmente no suposto exercício de atuar como guardião da comunidade, como expressa o mote “100% Grande ABC”. Pior que a perda econômica que só a Editora Livre Mercado detectou e martelou incessantemente é a omissão do jornal em, mesmo com uma afiliada denunciando os descasos econômicos locais, regionais, estadual e federal, manter linha editorial amorfa, defensiva.
Ora, isso é a mais irritante prova de que o relacionamento que o Diário do Grande ABC mantinha — e ainda mantém — com a comunidade regional, sobretudo os tomadores de decisão, não valem um tostão furado. Denunciamos à frente da Editora Livre Mercado, em sucessivas matérias, a letargia dos agentes econômicos, governamentais e sociais. Nada que repercutisse na consciência dos responsáveis editoriais do Diário do Grande ABC. Ou se trata de muita incompetência ou os interrelacionamentos beiraram o estapafúrdio, com o jornal se obrigando a omitir-se em assunto tão escandalosamente candente.
De qualquer forma, a crise econômica é mais localizadamente profunda no Grande ABC do que em qualquer outro território do País. Mostramos em análises impressas na revista e também nos três livros que escrevemos nos últimos dois anos as razões dessa diferença. Fundamentalmente a resposta se prende à nossa matriz automobilística.
O terremoto macroeconômico que desabou sobre nossas cabeças nos entregou de bandeja o retrato fiel de nossas instituições, todas forjadas no período de riqueza compulsória. Não temos capacidade de reação individual ou coordenada porque as entidades políticas, econômicas, culturais e sociais ainda navegam nas águas passadas dos tempos de glória de investimentos em profusão nesta região. Suas estruturas estão corroídas. Quando muito, essas organizações funcionam como escritórios de prestação de serviços aos associados.
Nota zero, entretanto, como organizações preparadas para o jogo da interlocução produtiva com quem decide a sorte de cada um dos 2,4 milhões de habitantes da região. Aplaudimos aventureiros locais e visitantes que nos colocam na boca um torrão de ilusão e execramos os poucos que ousam botar a boca no trombone porque estão cansados de esperar por medidas corretivas. Aos primeiros, lantejoulas; aos segundos, tomatadas e batatadas.
É esse Grande ABC traumatizado pelas políticas econômicas que se seguiram à abertura comercial e inerte em suas representações econômicas, políticas, sociais e culturais que olham para o próprio umbigo, que exige uma nova arremetida editorial. É preciso fazer acordar e vitaminar esse moribundo. E não será com novos lances de compadrios que veremos esse corpo quase inanimado ganhar musculatura de atleta depois de período de tratamento cuidadoso, meticuloso, monitorado pelo bom senso.
Ou aplicamos uma nova fórmula de entendimento dos papéis que devem cumprir os agentes individuais e coletivos que compõem o tecido regional, ou estaremos adiando a autópsia de que certamente não haveremos de escapar diante do estouro da boiada da globalização.
O jornalismo politicamente correto praticado há tempos pelo Diário do Grande ABC — em larga escala assemelhado a outras publicações diárias — não pode reincidir na queda no buraco negro de confundir alhos de entidades de vigorosa representatividade com bugalhos de entidades representativas no sentido burocrático do termo.
Críticas que se façam a organizações sociais, econômicas e políticas do Grande ABC ainda são confundidas com retaliações pessoais. No nosso caso, até mesmo velhos amigos acabaram se afastando de nosso convívio porque imperou a responsabilidade social inerente ao jornalismo. É muito mais cômodo o apadrinhamento dos amigos e dos conhecidos, mas essa fórmula se comprovou nefasta para a região. Quem perde tanta riqueza em poucos anos e se mostra incapaz de qualquer reação — pior do que isso, a maioria procurou esconder a realidade em cada esquina de desemprego e em cada fábrica abandonada — há muito já entregou a rapadura do compromisso com a seriedade e a dignidade.
Nossas entidades de classe econômica, política, social e cultural estão vegetando. Mas, com a proteção do jornal, sempre se sentiram, ou pretendiam fazer-se crer, no melhor dos mundos.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!