Mais uma fabricante de autopeças genuinamente regional acaba de ser tragada pelo capital internacional. Exemplo de eficiência e qualidade, vencedora do Prêmio Desempenho em 2001, a Metalúrgica Jardim, de Mauá, foi integralmente adquirida pelo grupo espanhol Cie Automotive, dono de 30 fábricas espalhadas pelo mundo. Anos depois de reinventar a Metalúrgica Jardim para não sucumbir à competitividade global instaurada no início dos anos 90, os sócios Laércio Reverte e Valdir Rigout repassam o controle acionário numa clara demonstração de que a desnacionalização completa do segmento é apenas questão de tempo.
Afinal, se nem a exemplar Metalúrgica Jardim resistiu ao assédio de contendor internacional incomparavelmente mais robusto, outras autopeças nacionais dificilmente terão futuro diferente. A onda de desnacionalização, que no início engolfou até marcas superlativas como Cofap e Metal Leve, está longe de se acalmar. Fornecedores de autopeças de capital exclusivamente nacional são aves cada vez mais raras, a caminho de inexorável extinção.
A capacidade de se adaptar aos tempos de globalização garantiu a conquista do Prêmio Desempenho à Metalúrgica Jardim em 2001. Em matéria de capa (”Sobrevivente da Globalização”), publicada em abril de 2001, LivreMercado relatou como a metalúrgica instalada no Distrito Industrial de Sertãozinho se reinventou para escapar da guilhotina que ceifou centenas de pequenas autopeças nacionais. “Um dos principais impactos da internacionalização é a redução drástica no número de fornecedores.
Permaneceram no circuito próximo das montadoras apenas os sistemistas, como são chamadas as empresas capazes de fornecer conjuntos completos, formados por várias peças. Fornecedores de peças isoladas perderam terreno, já que as montadoras terceirizaram em larga escala conjuntos que produziam com estrutura própria. É o fenômeno da desverticalização para reduzir custos de produção e repassar mais responsabilidade ao fornecedor de modo a dar maior enfoque a áreas estratégicas como marketing e comercialização.
A Metalúrgica Jardim se adaptou e passou a fornecer sistemas completos em vez de componentes avulsos. Ao tanque de combustível foram agregadas peças menores produzidas por outras empresas, como bomba, chicote, mangueira e filtros. A mesma lógica vale para outros conjuntos. Cada alavanca de câmbio é complementada por outras 15 peças fabricadas por terceiros antes de aterrissar nas montadoras. É assim com o sistema de freio e muitos outros itens.
A obrigatoriedade de entregar conjuntos completos impôs necessidade de criar rede de fornecedores confiáveis da mesma forma que as montadoras cultivam time de sistemistas de primeira linha. O nível qualitativo de cerca de 500 subsistemistas é avaliado periodicamente pelo Departamento de Qualidade da Metalúrgica Jardim. E somente os certificados com as normas QS 9000 e ISO 9000 são dispensados das avaliações” – descrevia a reportagem.
A cartilha de sobrevivência incluiu lições que vão além da capacidade de reger orquestra em vez de tocar um só instrumento. Como o just-in-time chegou para ficar, porque as montadoras não estão dispostas a arcar custos com estoques nem a tolerar atrasos nas entregas, a Metalúrgica Jardim adotou sistema de comunicação via satélite para viabilizar fornecimento inteligente. “Os pedidos das plantas da GM, Ford e Volks são transferidos via satélite para software que executa a programação da produção com base em informações alimentadas periodicamente pelo departamento de compras. Dotado de tecnologia MRP (Manufacturing Resources Planning, ou Planejamento dos Recursos de Manufatura), o software indica a necessidade de novos pedidos aos subsistemistas com base no cruzamento dos pedidos das montadoras com o volume de produtos acabados prontos para o embarque. Isto é, o software sincroniza da maneira mais eficiente os pedidos das montadoras à Jardim e da Jardim aos subfornecedores. Um duplo just-in-time de racionalidade operacional” – descrevia aquele texto.
Ainda sobre eficiência logística, não resta dúvida de que é mais fácil cumprir prazos de entrega quando se está fisicamente próximo das fábricas. Exatamente o que fez a Metalúrgica Jardim ao instalar unidades em Caçapava, a 10 quilômetros da fábrica da General Motors de São José dos Campos, e nas proximidades do Complexo Industrial Ford Nordeste, na baiana Camaçari. A lição mais valiosa, entretanto, é a que apregoa a necessidade de desenvolver produtos em parceria com técnicos das montadoras, em vez de restringir fabricação de itens pré-especificados. A Metalúrgica Jardim cumpriu a mais essa exigência com louvor ao viabilizar produção local de dezenas de peças então importadas pelas montadoras.
Se a Metalúrgica Jardim deu show de flexibilidade, qualidade e eficiência a ponto de ter sido reconhecida como a melhor estamparia do Brasil pela Ford e amealhar o Prêmio Desempenho de Livre Mercado como melhor do setor industrial, por que caiu na rede do capital internacional representado pela Cie Automotive? A resposta deve ser dividida em duas partes. Na primeira é preciso deixar claro que, por mais paradoxal ou contraditório que pareça, qualidade e eficiência não garantem longevidade a autopeça genuinamente nacional. Como a rentabilidade é baixíssima – quando não negativa – é preciso ter estrutura e escala mundiais para suportar reveses financeiros e colher bons resultados com base no volume de vendas. Some-se à anorexia financeira a necessidade de investir continuamente na atualização do parque fabril para fazer frente ao ritmo vertiginoso das montadoras e chega-se à condição de sufocamento ou falta de perspectiva, raiz da desnacionalização.
As dificuldades do segmento mundialmente atolado em graves problemas financeiros sempre rondaram a Metalúrgica Jardim. Na reportagem publicada por LivreMercado em abril de 2001, Laércio Reverte reclamava que o acirramento da competitividade entre as montadoras repercutia na redução das margens de lucro dos fornecedores. Informava que o lucro líquido de 2000 foi de 2,2% sobre o faturamento de R$ 60 milhões. O índice representava metade do projetado. Não era de todo ruim num cenário em que também a metade das montadoras estava – e ainda continua – no vermelho.
Vista em retrospectiva, outra matéria publicada por LivreMercado, em julho de 2005, assume tom premonitório. Intitulada “Sobrevivente, mas até quando?”, a reportagem mostrava que, apesar de todos os avanços, a Metalúrgica Jardim se desdobrava para não sucumbir. “Quem imagina que as turbulências que chacoalharam as autopeças ficaram no passado precisa conhecer os desafios da Metalúrgica Jardim, um dos raros fornecedores genuinamente nacionais da indústria automobilística que se manteve de pé no pós-globalização. Com tantas credenciais de sucesso, a Jardim está muito longe da sustentabilidade” – explicava a reportagem.
Os sócios fizeram tudo que puderam para colocar a empresa nos trilhos. E colocaram. “Mas mudanças vertiginosas a reboque da indústria mais competitiva do planeta e um País cronicamente ciclotímico jogam areia na previsibilidade e não afastam riscos de descarrilamento” – alertava a matéria.
Laércio Reverte contava que em 2005 a Metalúrgica Jardim finalmente sairia do vermelho após colher prejuízos sucessivos desde 2000 e empatar receitas e despesas em 2004. E que a empresa só conseguia se manter em déficit na contabilidade por anos consecutivos porque recursos financeiros que deveriam ser reservados à modernização dos equipamentos eram rotineiramente sacados para despesas do dia-a-dia. “O dinheiro que deveria ser investido em máquinas novas acaba transferido para capital de giro, o que coloca em risco a sobrevivência no longo prazo” – observava.
A situação de vender o almoço para comprar a janta, resultava de apertos generalizados. Se a impossibilidade de repassar aumento do custo do aço incomodava, a valorização do real corroia as margens de lucro das montadoras e tornava a situação simplesmente insustentável. Por essas e outras, Laércio Reverte enxergava a associação com sistemistas internacionais como desfecho inevitável. “Tarda mais não falha” – anunciava com sinceridade acachapante poucos meses antes da venda ao grupo Cie Automotive, consumada em dezembro do ano passado. “Será cada vez mais complicado e improvável que um fornecedor consiga se manter isolado em cenário dominado por multinacionais. A maioria dos veículos resulta de projetos concebidos nas matrizes. Quando chega ao Brasil, as peças já estão encomendadas a filiais locais dos fornecedores globais” – avaliava.
A segunda parte da resposta da entrega da Metalúrgica Jardim ao capital internacional é a inversão do sentido da própria pergunta: a empresa só atraiu o interesse de grupo internacional porque fez a lição de casa, cultivou relacionamento com montadoras e manteve operações bem azeitadas. Se tivesse a imagem arranhada ou em más condições de competitividade, definharia até fechamento completo em vez de ter longevidade garantida em novas mãos. Como ocorreu com dezenas de autopeças familiares no Grande ABC. Tradução: para a empresa de 280 funcionários e para os ex-sócios brasileiros a absorção por gigante muito mais preparado não poderia significar notícia melhor, embora cause desconforto por acentuar as fragilidades das corporações brasileiras no contexto global.
Sempre solícito às entrevistas de LivreMercado, Laércio Reverte se nega a falar sobre a venda porque a operação envolve cláusula de confidencialidade. Mas uma consulta ao site da Cie Automotive mostra o quanto a compra é supervalorizada pelos espanhóis. A começar pela cifra envolvida na transação: 10 milhões de euros, ou R$ 26 milhões. “A aquisição consolida a posição do grupo no Brasil em relação à complementação de produtos e dá prosseguimento à expansão na zona do Mercosul” – lê-se no site do grupo que também controla a Autometal, com unidades em Diadema, São Bernardo, Taubaté (no Vale do Paraíba), e na Bahia.
Ao viajar pelo ciberespaço e traduzir as informações em inglês, descobre-se ainda que a aquisição da Metalúrgica Jardim faz parte da estratégia corporativa de se instalar em países emergentes para acompanhar movimentações mais recentes das montadoras, que enfrentam crise de supercapacidade nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Nos últimos meses a Cie Automotive chegou ou reforçou presença na China, México e em países do Leste Europeu, além do Brasil. A companhia aterrissa por meio de joint ventures, como ocorreu em Xangai, ou por aquisições, como em Mauá. O importante é aproveitar a base física e de conhecimentos do fornecedor historicamente estabelecido para pegar atalho na rota de atendimento às montadoras sob a égide do global sourcing (suprimento global).
A Cie Automotive também comemora o fato de a aquisição proporcionar maior inserção na produção brasileira de veículos de passeio, já que a Metalúrgica Jardim construiu sólido relacionamento comercial especialmente com três das maiores montadoras do Brasil sediadas no Grande ABC: Volks, Ford e General Motors. As 30 fábricas do grupo espanhol espalhadas pelo mundo empregam seis mil funcionários e neste ano as vendas globais devem alcançar um bilhão de euros.
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