Não adianta mesmo perder mais tempo com divagações. O negócio é colocar a cabeça da objetividade em ordem, a alma da estratégia na regionalidade pragmática e as pernas do empenho e da responsabilidade social para correr em busca do tempo perdido. Num novo estudo do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), saltam dados inéditos da economia do Grande ABC e do Brasil nos últimos 33 anos, a contar de 1970.
Entre uma data e outra a Seleção Brasileira sagrava-se tricampeã mundial no México e o ex-operário Lula da Silva encerrava o primeiro ano de um mandato presidencial conquistado depois de três tentativas frustradas. O Brasil de 1970 tinha “90 milhões em ação”, na música de Miguel Gustavo que celebrizou a conquista do título da melhor equipe que já vestiu a camisa verde-amarela. Em 2003 o Brasil já chegava a 180 milhões de habitantes.
A participação relativa do Grande ABC no bolo nacional sofreu duríssimos golpes. Nada menos que 46,39% sumiram pelo ralo da desindustrialização regional combinada com investimentos em outros territórios. Em 1970, de cada R$ 100 gerados de riqueza no País em forma de PIB (Produto Interno Bruto), R$ 4,57 saiam do Grande ABC. Em 2000, de cada R$ 100, a participação foi reduzida a R$ 2,45. A perda significa R$ 32,98 bilhões a menos de geração de riqueza na indústria, no comércio, nos serviços e na agropecuária, atividades que determinam o conceito de PIB.
O significado desses números é emblemático: o Grande ABC é cada vez menos importante economicamente para o futuro do País. Os 46,39% compõem cesta de perdas relativas e perdas absolutas. O conceito de perda relativa implica interpretação providencial de que um Município ou um conjunto de municípios, como é o caso do Grande ABC, mantém o tônus econômico inabalável e só sofre queda de participação no quadro geral porque outras localidades melhoraram performance. Algo como um veículo que trafega a 80 quilômetros por hora durante muito tempo enquanto outros o ultrapassam a velocidades superiores.
Essa situação não ocorreu de fato com o Grande ABC na maior parte do percurso de 33 anos da pesquisa sobre o comportamento do PIB. Individualmente e no conjunto dos municípios o Grande ABC sofreu duras quedas. Viu sua riqueza econômica esvaziar-se, enquanto outros municípios evoluíram. Ou seja: o veículo do Grande ABC rateou durante a viagem de transformação de riqueza nacional enquanto muitos competidores o superaram em velocidade cada vez maior.
No conjunto da obra, enquanto dezenas e dezenas de municípios brasileiros avançaram, o Grande ABC recuou. O que explica sem contorcionismos as razões de os sete municípios locais formarem um dos cinturões mais suscetíveis à criminalidade no Estado de São Paulo, conforme estudos do mesmo IEME num ranking que envolve os principais 75 endereços paulistas.
O último levantamento histórico sobre o comportamento mais abrangente da economia do Grande ABC foi publicado em abril de 2001. O trabalho mostrava a curva descendente do PIB regional no âmbito da Grande São Paulo, do Estado de São Paulo e do País. Naquela edição, com base em dados comparativos de 1970 a 1996, conforme estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) através da Dirur (Diretoria de Estudos Regionais e Urbanos), o Grande ABC acumulava rebaixamento de 4,57% para 2,85% no PIB nacional. Nos anos subsequentes até o limite da nova pesquisa, agora do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a região continuou a cair.
Nem poderia ser diferente que sete anos após aquele trabalho jornalístico o Grande ABC insistisse em acrescentar derrotas. Em valores atualizados, a diferença de 0,40 ponto percentual de sangramento do PIB da região entre 1996 e 2003 significa R$ 6,2 bilhões, ou um pouco mais que a soma do PIB de São Caetano, de Ribeirão Pires e de Rio Grande da Serra.
Quanto representa em valores monetários as perdas do Grande ABC numa comparação entre os dois extremos desses 33 anos? A contabilidade seria praticamente impossível se fossem considerados valores das várias moedas nacionais que cruzaram o caminho dos brasileiros no período, mas se simplifica quando se traduz a equação à participação percentual. Se o Grande ABC tivesse mantido o pedaço no bolo de produção de riqueza do País ao longo das três décadas pesquisadas, em vez de R$ 38,247 bilhões de 2003, que correspondem a 2,45% do PIB nacional de R$ 1,556 trilhão, sua fatia seria de R$ 71,1 bilhões, valor referente ao 4,57% registrados em 1970, quando centralizava a indústria automotiva e explodia no setor químico-petroquímico com o Pólo de Capuava. Era um Grande ABC visto como o eldorado da mobilidade social no País. Diferentemente de agora, quando mais de 400 mil trabalhadores estão cadastrados em centrais sindicais à espera de um emprego qualquer.
O desempenho de São Bernardo é a sacramentação do desfiladeiro coletivo do Grande ABC. Em 1970, a capital econômica da região situava-se em quinto lugar na classificação nacional, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. No extremo oposto, em 2003, São Bernardo despencou para a 11ª posição, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Belo Horizonte, Campo de Goytacazes, Guarulhos, Curitiba, Duque de Caxias e Porto Alegre.
Santo André vinha logo depois de São Bernardo em 1970: sétima colocada no ranking nacional. Em 2003 caiu para o 22º posto. Nada mais natural, porque não há Município brasileiro que tenha sofrido tanto com a pulverização de riqueza industrial no período entre 1975 e 1995. Santo André praticamente estabilizou a produção de riqueza nos últimos 10 anos, mas isso não lhe garante a manutenção no ranking nacional já que outros municípios estão em plena ascensão. É a história do veículo persistentemente a 80 quilômetros por hora sendo ultrapassado por vários competidores.
Os números do PIB brasileiro divulgados pelo IBGE não descem a detalhes interpretativos de desempenhos municipais ou regionais — são o que os economistas chamam de macroindicadores. Por isso, para entendimentos específicos sobre a atuação de determinados municípios ou regiões, os dados requerem cruzamentos diversos. Quando se colocam esses mesmos números numa situação ainda mais complexa, de exame detalhado e histórico, o cuidado é redobrado. Para chegar às conclusões, foi preciso sistematizar e confrontar informações nem sempre compatíveis à primeira vista.
A complexidade chegou a tal ponto que, quando da divulgação do ranking nacional na edição de 2001, expressaram-se valores em dólares atualizados de 1998. Já os números relativos a 2003 estão em reais. Como conciliar moedas diferentes? Apelou-se para a participação relativa de cada Município. Um exemplo de que essa alternativa está correta pode ser retirado de uma comparação entre São Caetano e Curitiba no período de 33 anos. Em 1970, São Caetano detinha PIB de US$ 2,340 bilhões (em dólares mesmo), enquanto Curitiba somava US$ 2,687 bilhões (igualmente em dólares). Já em 2003, São Caetano registrava R$ 4,944 bilhões (em reais mesmo), enquanto Curitiba contabilizava R$ 15,444 bilhões (em reais mesmo).
Que lição se extrai desses números, da forma mais didática possível e que pode, sem rebuscamento de um economês pouco acessível, distinguir São Caetano de Curitiba? Primeiro: para cada R$ 100 que São Caetano produziu em 1970, Curitiba produzia R$ 129. Segundo: de cada R$ 100 que São Caetano passou a produzir em 2003, Curitiba gerou R$ 679. Esses números revelam que a capital paranaense ganhou influxo econômico incomparavelmente maior.
A comparação entre São Caetano e Curitiba é exemplar das mudanças pelas quais passaram municípios e regiões brasileiras em pouco mais de três décadas. Em 1970 o Grande ABC somava 11,46% da riqueza do Estado de São Paulo, contra 8,80% na ponta da pesquisa, em 2003 — ou 23,11% de queda. O PIB do Grande ABC caiu menos no Estado de São Paulo do que em relação ao Brasil porque os paulistas também caíram frente ao Brasil. A velocidade do veículo paulista na auto-estrada nacional foi maior que a do veículo chamado Grande ABC, mas menor que a média da velocidade do veículo verde-amarelo.
É por causa de especificidades como essas que raciocínios rasos para medir o esvaziamento da riqueza do Grande ABC se tornam aberração estatística e manipulação técnica. Desconsiderar o descompasso do PIB paulista em relação ao PIB nacional para definir conceito de desenvolvimento estadual tem o mesmo sentido que comparar o rendimento em declínio de duas famílias vizinhas cujos pais perderam o emprego. É claro que se chegará à conclusão de que passarão a manter padrão de vida semelhante, porque sustentarão diferenças entre si. Entretanto, basta olhar para uma terceira família, que nem precisou ganhar na loteria mas cujos representantes foram valorizados pelo mercado de trabalho, para diagnosticar as perdas.
No caso, Grande ABC e Estado de São Paulo são as famílias cujos chefes receberam o cartão vermelho no mercado de trabalho. O Brasil é a terceira família que, apesar dos pesares macroeconômicos, evoluiu nas últimas três décadas, embora muito aquém do movimento muito mais intenso dos competidores internacionais.
O ritmo da economia do Grande ABC pesquisado pelo Instituto de Estudos Metropolitanos alcança período mais elástico que a recente divulgação do PIB brasileiro pelo IBGE. Mas o ferramental do organismo federal comprova o declínio paulista. Em 1985, o Estado de São Paulo contava com 36,1% do PIB brasileiro, contra 31,8% de 2003. A queda de participação do Estado está vinculada à perda da fatia industrial. Em 1985 a indústria de São Paulo representava 51,6% de todo o setor no País e em 2003 caiu para 40,4%.
Estudos anteriores mostram que praticamente toda a perda do PIB paulista em períodos diversos se deve ao esvaziamento industrial da Grande São Paulo. Uma parte das empresas foi para o Interior do Estado, especialmente as regiões metropolitanas de Campinas, Sorocaba e São José dos Campos. Outra parcela correu em busca de vantagens fiscais, creditícias e locacionais de vários Estados brasileiros.
Como o peso do Estado de São Paulo é predominante na região Sudeste brasileira, a queda entre 1985 e 2003, segundo os números do IBGE, refletiu em alterações de participação relativa em vários Estados. O Sudeste, que também engloba Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, caiu de 60,2% para 55,2%. Exceto São Paulo, os demais Estados do Sudeste praticamente mantiveram participação no bolo nacional.
No campo doméstico, do Grande ABC, houve significativas mudanças no PIB regional no período de 33 anos. São Bernardo, Santo André e São Caetano compunham espécie de trio de ouro da economia regional em 1970, com a geração de 88% do PIB regional. Já em 2003 esse naco foi diminuído em 21,8 pontos percentuais ao ser rebaixado a 66,2%.
Quem ganhou mais na migração de forças foi Diadema, que saltou de participação relativa regional de 3,7% em 1970 para 12,4% na ponta da pesquisa, em 2003. Mauá saiu de 7,1% e chegou a 11,6%. São Bernardo caiu de 37,0% para 26,2%, Santo André de 30,0% para 23,0% e São Caetano de 21,0% para 13,0%. A participação da pequena Rio Grande da Serra é residual enquanto Ribeirão Pires cresceu de 1,1% para 1,7%.
Resumo da ópera regional: o ABC Paulista virou Grande ABC em pouco mais de três décadas mas, paradoxalmente, a magnitude econômica pretendida com a consagração da expressão que passou a designar a sede de sete municípios sofreu seguidos reveses.
O dimensionamento das perdas reais do Grande ABC no período de 33 anos é equação complicadíssima. As constantes trocas de moedas e os indicadores inflacionários podem gerar vieses que comprometeriam os cálculos. Mais que isso: dificultariam até mesmo a tradução em números palatáveis. Os 46,39% que sumiram da riqueza regional no período analisado são a associação de perdas relativas e perdas reais do Grande ABC no PIB nacional — o tal exemplo do veículo que não consegue manter velocidade durante o trajeto e também é ultrapassado por concorrentes.
Em junho de 2005, revelou-se o tamanho da queda do Valor Adicionado do Grande ABC entre janeiro de 1996 e dezembro de 2003. Valor Adicionado é o resultado monetário de toda a cadeia de transformação industrial, um dos componentes do PIB. Nesse período, o Grande ABC viu desaparecerem R$ 11,3 bilhões do total de R$ 15,2 bilhões que a Grande São Paulo perdeu no Estado de São Paulo. Ou seja, de cada R$ 100 que evaporaram da Região Metropolitana de São Paulo, R$ 74 tiveram origem nos sete municípios da região.
Enquanto o Grande ABC em particular e a Grande São Paulo de forma geral perdiam participação estadual (e consequentemente nacional, conforme mostram os números do PIB), a Grande Campinas de 19 municípios evoluiu no mesmo período ao aumentar em R$ 8,5 bilhões o Valor Adicionado, sempre em valores atualizados a dezembro de 2003 pelo IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado), da Fundação Getúlio Vargas. Em dezembro de 2003 o Grande ABC registrava R$ 30,5 bilhões de VA, contra R$ 43,6 da Grande Campinas. Uma desvantagem e tanto para quem, em dezembro de 1995, contava com R$ 41,8 bilhões em valores atualizados, contra R$ 32,1 da Grande Campinas.
Os reflexos são patentes nos orçamentos municipais. No mesmo período de queda do VA, o Grande ABC perdeu R$ 481 milhões de repasse do ICMS. Esse valor não é cumulativo. Refere-se exclusivamente à comparação ponta a ponta do período analisado. No conjunto, os municípios do Grande ABC perderam 38,4% de repasse do ICMS, contra 28,4% da cidade de São Paulo. O Valor Adicionado tem peso de 76% na grade de distribuição de ICMS no Estado de São Paulo.
Tudo isso quer dizer que não existe mágica de linguagem subjetiva que possa contornar o declínio industrial do Grande ABC, situação nuclear do empobrecimento do território. Em 2004, análise inédita constatou o desaparecimento de nada menos que 34.787 empresas de variados tamanhos no Estado de São Paulo. A conta se refere ao período de 60 meses, compreendido entre janeiro de 1999 e dezembro de 2003. Os 19,44% de indústrias que sumiram do mapa paulista foram fortemente influenciados pela quebra do setor no Grande ABC, que contava com 9.489 empresas e caiu para 7.824, conforme dados do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), do Ministério da Fazenda.
A soma de baixas de unidades industriais nos sete municípios do Grande ABC, da Capital, de Osasco, de Guarulhos, de Campinas, de Sorocaba e de São José dos Campos alcançou 21.336 das 34.787 empresas do Estado. A vantagem de Campinas, de Sorocaba e de São José dos Campos é que muitos empreendimentos se deslocaram em direção ao entorno de municípios menores, atraídos pela guerra fiscal e locacional. Já o Grande ABC, Osasco, São Paulo e Guarulhos viram parte das indústrias migrar para a chamada São Paulo Expandida.
O sumiço industrial nos 60 meses é tipicamente paulista, porque o Brasil ganhou no mesmo período 60.829 empreendimentos. Embora necessariamente o número de unidades industriais não signifique desindustrialização, a caracterização do fenômeno se torna irrebatível quando acompanhada de redução do Valor Adicionado e de empregos.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES