Selecionei o que chamaria de 10 pontos nucleares que explicam – conforme antecipei o escopo da proposta na edição de ontem – a inexpressiva, quando não decepcionante, participação da região nas manifestações de rua contra tudo o que está aí e sobre o qual se dispensam maiores informações. Basta acompanhar o noticiário político e econômico, quando não o criminal. Afinal, por que fracassamos tanto em levar gente às ruas? Vejam os pontos que ancoram a análise que se seguirá:
1. Ausência de marco geográfico em comum.
2. Gataborralheirismo atávico.
3. Vácuo provocado pela ausência de mídia de massa.
4. Baixa representatividade de instituições.
5. Conflitos entre classe média e trabalhadores.
6. Evasão diária de cérebros.
7. Desmoronamento econômico.
8. Limitações das redes sociais.
9. Baixa mobilidade social associada a envelhecimento.
10. Desencanto com atividades político-partidárias.
Definida a relação de pedras no caminho da Província do Grande ABC, passo à brevíssima avaliação de cada situação exposta. Poderia discorrer longa e profundamente sobre cada item apontado, mas não vejo necessidade. Os fatores listados que explicam o anestesiamento regional não são novidade aos leitores desta revista digital, mas mesmo assim sugiro leitura apurada porque, quando menos espero, eis que descubro algum ponto novo na vida cotidiana regional.
1. Ausência de marco geográfico em comum. Isoladamente, esse fato não resolveria os problemas de identidade regional, mas no caso específico das manifestações está sacramentado que, sem um ponto em comum entre os municípios, tudo fica mais improvável. São Paulo tem a Avenida Paulista como espaço de convergência e os demais municípios brasileiros engajados na mobilização sabem de cor e salteado onde concentrar a comunidade. A repartição da região em sete pedaços municipais criou uma cultura divisionista em diferentes setores e situações. Como seria possível esquecer tudo isso e acreditar que um local específico atrairia a atenção regional sem distinção de CEP? É melhor esquecer. A fragmentação dos manifestantes é o caminho mais curto à dispersão.
2. Gataborralheirismo atávico. A proximidade com a Capital estimula dois tipos de reação da sociedade regional em situações como a de domingo: ou se permanece placidamente como espectadora diante de um aparelho de televisão ou se dirige à Avenida Paulista como símbolo de engajamento verdadeiro.
3. Vácuo provocado pela ausência de mídia de massa. Como catequisar a comunidade regional a sair às ruas para protestar contra o que está aí se não temos mídia de massa e, mais que isso, somos invadidos pela mídia de massa da Capital? Como não temos nem mesmo janelas locais das programações das emissoras de TV de sinal aberto, não pegamos carona no noticiário paulistano e nacional para sensibilizar a população local. Bem diferente, por exemplo, de municípios-região como Campinas, Ribeirão Preto, Sorocaba e tantos outros que contam com emissoras que retransmitem a programação televisiva das principais redes nacionais entremeando o noticiário com jornalismo local. Não à toa esses municípios contaram com milhares de manifestantes nos endereços tradicionais reservadas à população.
4. Baixa representatividade das instituições. Vivemos crise sem precedentes na Província do Grande ABC quando se refere à participação de entidades de classe econômica, social e de classe em projetos que têm apelo além-fronteiras corporativista. Organizações como as unidades locais da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), por exemplo, praticamente se entregaram a mandachuvas políticos de plantão e não passam, em larga escala, de correia de transmissão de interesses de grupos. Sem lideranças respeitáveis, dessas que estão acima de qualquer suspeita, a mobilização fica viciada e limitada aos entornos dessas entidades.
5. Conflitos entre classe média e trabalhadores. A queda de braço entre a classe média tradicional da região e os trabalhadores de chão de fábrica doutrinados por organizações sindicais de viés socialista é uma barreira praticamente intransponível à conversão conjunta a determinadas propostas. Como esperar que petistas/cutistas da região, os quais detém uma tecnologia de mobilização aperfeiçoada ao longo dos anos, decidam virar a casaca e sair às ruas para combater referências que tanto os alimentaram ao longo dos anos? Há separação tácita entre classe média integrada por profissionais liberais como médicos, dentistas, engenheiros, pequenos empresários e tantos outros em relação a trabalhadores de chão de fábrica mesmo que economicamente em patamar de classe média. Há choque ideológico a dificultar aproximações.
6. Evasão diária de cérebros. Perdemos todos os dias um quarto da população economicamente ativa para a Capital do Estado, tão próxima daqui. Traduzindo: do contingente de trabalhadores da região, um quarto se dirige diariamente à Capital para exercer atividades profissionais. São cérebros que só vivem a vida regional, se vivem, aos sábados e domingos. Gente com lobotomia geoeconômica. Para a maioria, fim de semana é rigorosamente para descansar. A agenda regional não os aflige como prioridade de vida.
7. Desmoronamento econômico. Por mais contraditória que possa parecer, a derrocada econômica da região nos últimos meses, com choques profundos no mercado de trabalho, provoca durante algum tempo estado emocional de paralisia crítica. As preocupações com o futuro imediato de contas a pagar e também de médio prazo, com a possibilidade de as reservas financeiras se exaurirem, imobilizam as vítimas da politica econômica instaurada para recolocar o País no eixo da solvência fiscal. A Província do Grande ABC detém nestes tempos os piores índices de demissão com carteira assinada no País, muita acima inclusive de áreas mais industrializadas. Estamos em estado de choque.
8. Limitações das redes sociais. Sem mídia de massa, restaria à Província a fortaleza propagada das redes sociais. Mas não se deve esquecer que as novas plataformas de comunicação são limitadas no gerenciamento contínuo de indignação, principalmente quando atua em áreas como a da Província do Grande ABC, detentora de características diversas de capitais e também com baixa aderência das publicações locais no esquentamento da temperatura às manifestações levadas a efeito. Ou seja: nossos jornais virtuais e impressos não contam com a mesma linha de atuação voltada à política e a economia nacional como fontes propulsoras de engajamento permanente e crescente das redes sociais.
9. Baixa mobilidade social associada a envelhecimento. A quebra da mobilidade social na região é metade da laranja que também reúne a outra metade de envelhecimento da população acima da média nacional. Ora, com uma população em geral menos produtora de riqueza material e com os custos sempre crescentes de manutenção pessoal e familiar ditados pela longevidade avançada, encontramos dois agentes anticlímax ao inconformismo e à indignação como forças propulsoras à ocupação das ruas.
10. Desencanto com as atividades político-partidárias. É claro que não é exclusividade da população da Província do Grande ABC o sentimento de frustração que vem de longe com a classe política. As mais recentes pesquisas sobre o grau de esfacelamento da imagem dos políticos nacionais são de lascar. Faltam dados na região, mas não há risco algum em afirmar que os níveis de desaprovação são maiores. A tendência de aumentarem os níveis de restrições às atividades políticas numa área geográfica sensível demais às sacolejadas de esvaziamento econômico não é especulação interpretativa. Onde o desenvolvimento econômico e social se manifesta, a classe política não é tão demonizada.
Institucionalidade no topo
Se me perguntarem – porque sempre aparece alguém para debater pequenos detalhes ou não – qual desses 10 quesitos é o mais importante, espécie de carro-chefe dos demais, não tenho a menor dúvida em responder: nenhum. Se o interlocutor ou internauta insistir na pergunta, optaria pelo quarto, que diz respeito às fragilidades e baixa representatividade das instituições.
Afinal de contas, todos os demais gargalos de cidadania regional só alcançam índices de gravidade explícita no conjunto dessa obra porque não contamos com exército de profissionais de várias áreas que, em torno de um projeto de regionalidade sem vícios e artimanhas, certamente fariam emergir um novo modelo de cidadania, o qual estaria muito acima de municipalismos sanguessugas e corporativismos oportunistas, pilares de sustentação do bicho de sete cabeças em que a Província do Grande ABC se transformou.
Melhor dizendo: bicho de sete cabeças que a Província do Grande ABC só deixou de ser durante o período em que os emancipacionistas não apareceram na fita para dividir o bolo territorial por razões que não se sustentaram nas décadas seguidas.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!