Já escrevi alguma coisa e muita coisa tenho a escrever sobre reverberações das redes sociais no imenso guarda-chuva da regionalidade. Não tenho experiência dos fanáticos ou dos mais apegados às novas plataformas tecnológicas que supostamente aproximam as pessoas. Entretanto, como consumo obras de especialistas internacionais, converso o necessário com terceiros e também vivo a prática das consequências dessas transformações, o assunto não me é estranho. Por isso, reafirmo posição já manifestada em artigo escrito no ano passado: as consequências das redes sociais são a fragmentação, quando não o esquartejamento, da regionalidade no sentido mais integrativo de ser. Regionalidade, se pudesse resumir em poucas palavras, é a magia da aproximação de iguais e de contrários seguida de capacidade de mudanças. Estamos cada vez mais longe disso.
Durante a fase de preparação e organização do movimento Defenda Grande ABC, que acabou dando com os burros nágua porque os voluntários dispostos a enfrentar os carcarás da praça escafederam-se na medida em que a realidade de enfrentamentos parecia mais próxima, durante essa fase, dizia, senti o que as redes sociais podem fazer de danoso à costura da cidadania.
A agenda regional, por mais relevante que seja, está em segundo plano diante da agenda nacional nestes tempos de convulsão política, ética e os escambau. Existe demanda fortíssima por notícias de cunho nacional em detrimento de informações regionais. E uma das razões para tanto é a pobreza franciscana das coberturas da mídia regional, toda vinculada ao impresso ou ao digital, em contraponto às mídias eletrônicas de massa da vizinha Capital.
Compatibilidades compulsórias
Grande parte do noticiário tanto da mídia impressa quanto da digital da região está voltada ao que chamo de quinquilharias. Entre as quinquilharias locais e as estranhas ao tecido físico regional, o engajamento nas redes sociais se direciona a outros territórios.
Além do aspecto de audiência maior de temáticas estaduais e principalmente nacionais que mexem com o bolso e a qualidade de vida -- além do embate ideológico direita versus esquerda que esquentou de vez -- os regionalistas que se jogam nas redes sociais alinham-se de acordo com o perfil dos interlocutores. Os consensos são por isso mesmo automáticos. Grupos se dividem como batalhões de exércitos inimigos. Eles não se misturam. Incompatibilidades de pensamento são compulsoriamente eliminadas, muitas vezes a golpes de arbitrariedades e ameaças. As redes sociais e seus aplicativos só toleram e, portanto, glorificam espelhos. É uma sociedade engajada sob o pressuposto de que desagradar a audiência é descuido imperdoável.
A aproximação do calendário eleitoral municipal deverá abrandar temporariamente a nacionalização da audiência, mas não haverá mudança significativa. Será algo semelhante às eleições anteriores, quando as redes sociais foram ativadas em defesa de posições que geralmente não são do interesse e necessidade da maioria da população.
Ditadura multifacetada
Vivemos um mundo tecnológico que multiplica a divisão compartimentada de visões que se rejeitam mutuamente e, por isso, dificultam tremendamente proposituras que entrelacem demandas da sociedade como um todo. Somos órfãos do contraditório fértil. Somos senhores absolutos de convicções e conceitos intocáveis. As redes sociais são uma ditadura de múltiplas faces, portanto.
Voltando ao movimento Defenda Grande ABC, senti que a discussão preliminar de uma agenda previamente definida, porque óbvia, sofreu estrangulamentos contínuos ante a visão generalizada de que o ambiente político nacional comportava mais atenção. Por mais que o paradoxo significasse desfaçatez sem limites, era essa a realidade dos fatos. Um escândalo local não tinha importância alguma à maioria dos inscritos no Defenda Grande ABC porque o noticiário diário de Brasília, principalmente, oferecia cardápio muito mais apetitoso. O noticiário regional sobre assuntos beligerantes são páginas em branco de omissão permanente.
Também havia um componente a salvaguardar os interesses daqueles que ingressaram no Defenda Grande ABC: sem saber exatamente o que lhes estava reservado, não tiveram dúvidas: ao constatarem que o embate contra poderosos do mundo político e econômico da região seriam inescapáveis, trataram de picar a mula. Alguns, mais espertos, preferiram um jogo sórdido de permanecer no movimento até encontrar desculpa esfarrapada que supostamente lhes asseguraria retirada não declaradamente acovardada.
Guerreiros entre iguais
A experiência do Defenda Grande ABC, portanto, foi duplamente importante e contributiva ao acúmulo de interpretação dos fatos e do comportamento de individualidades nestes tempos em que muitos heróis no manuseio de aparelhos de celular dotados de tecnologia de ponta, não encaram a perspectiva de colocar os pés na estrada da cidadania prática. Expõem-se, portanto, apenas em circuito fechado, de iguais, de iguais igualmente batalhadores virtuais.
Temos, portanto, sem exagero algum, uma Era dos Fazedores de Marolas. Por isso, a regionalidade que abarca pelo menos duas dezenas de temas decisivos ao futuro das próximas gerações na Província do Grande ABC fica senão totalmente esquecida, pelo menos subjugada pelo comodismo de pautas estranhas à vida local. Bater em Dilma Rousseff é o esporte preferido das redes sociais -- e defende-la, em contraponto, também -- mas mexer com os vespeiros dos escândalos regionais, dos improdutivos regionais, das desgraceiras regionais, nem pensar.
Há impedimentos de ordem social e financeira que, cada vez mais, desestimulam ações de recaptura das forças tradicionalmente já esquálidas de uma regionalidade eternamente a ser construída. Trata-se de dependência quase crônica do que nos sobrou de lideranças da sociedade em relação às forças políticas e econômicas constituídas, muitas das quais mais insidiosas que reformistas. Com a perda da mobilidade social, sobretudo nas camadas mais elevadas da população regional, outrora a salvo de injunções ao ocupar postos importantes em empresas industriais, sobrou uma cautela exagerada de não criar áreas de atrito que possam tolher os passos profissionais.
Deitando e rolando
Os administradores públicos da região são espertos o suficiente para calarem forças individuais que mais se mobilizam por transformações. Desde a criação do Fórum da Cidadania, em meados da última década do século passado, quando a região começou a perder empregos de qualidade, os gestores públicos adotaram sistema de captura de antagonistas, convertendo-os em aliados.
Existe um vazio enorme entre o poder quase absolutista do Estado (em forma de Municípios), a Sociedade e o Mercado na região. O tripé de sustentação do que se consagrou na expressão capital social foi para o buraco. Tudo começou quando empregos mais valorizados passaram a ser uma raridade e os comerciantes e prestadores de serviços mais críticos foram bombardeados por uma concorrência expulsa das fábricas. A busca por sobrevivência agravou-se com a chegada de empreendimentos de grandes players nacionais e internacionais.
Ou seja: tanto quanto o avanço tecnológico com ferramentas multiplicadoras de divisionismos temáticos, o sistema econômico estraçalhou o que existia de mais proeminente em potencial de regionalidade desta Província. Vivemos por isso mesmo e mais intensamente um processo aparentemente irrecuperável de gataborralheirismo. Complementarmente, ou na raiz dos problemas, temos o agravante de que mais e mais as perspectivas de que os jornais impressos da região seguirão a cartilha dos donos do poder e, com isso, confirmarão a realidade destes tempos de que não existem movimentos livres o suficiente para engrenarem marcha em defesa do coletivo da sociedade.
Regionalismo sabotado
Em plena Era da interconectividade, nos transformamos numa Província de guetos ideológicos, corporativistas, temáticos, entre outros agrupamentos que estão a léguas de distância de enxergar e de participar do todo ou de partes relevantes de um processo de regionalidade induzido naturalmente pela geoeconomia.
Somos paradoxalmente a negação do regionalismo com que estudiosos tanto sonharam. Celso Daniel morreria de desgosto se estivesse entre nós. Aquela região que excomungava os muros territoriais de municipalistas empedernidos foi retalhada de vez pelas redes sociais que sobrepuseram àquele obstáculo cultural o que existe de pior em forma de barreiras comportamentais.
Costumo dizer que somos um Bicho de Sete Cabeças ao definir as diferenças fundas que separam os sete municípios locais. Entretanto, quando se trata da intervenção das redes sociais, somos uma monstruosidade social. Vamos rezar para que no futuro não identificado no horizonte esta Província possa usufruir das potenciais vantagens de ferramentas tecnológicas disponíveis no mercado. A aproximação dos iguais e a demonização dos diferentes compõem a estrutura sociológica que eterniza disfunções sociais cada vez mais alarmantes.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!