Numa das mais disparatosas — para não dizer ofensiva à inteligência regional — matérias dos últimos tempos, o Diário do Grande ABC de sábado passado publicou estudo do Instituto de Pesquisas do Imes (Centro Universitário de São Caetano) comandado pela professora Maria do Carmo Romeiro que induz os leitores a acreditar que o Grande ABC de 1994 para cá tornou-se um paraíso. Não estou exagerando. Basta repetir o título de manchete do Caderno Setecidades, com direito a chamada de primeira página: “Em 8 anos, ABC fica menos desigual”.
Seria acintoso não fosse provocativo o conjunto de enunciados do trabalho da pesquisadora do Imes. Para que o entendimento se dê sem qualquer margem de distorção, a reportagem precisa ser transposta para este espaço. Vamos por partes, então:
A distribuição de renda vem se tornando cada vez menos desigual no ABC nos últimos anos. Isso significa que, ainda que a renda média das famílias de Santo André, São Bernardo e São Caetano tenha crescido pouco ou mesmo caído em alguns dos anos entre 1991 e 2000, os mais pobres têm sido muito menos prejudicados do que os mais ricos. É longe da Suíça, mas é muito melhor do que a pernambucana Manari, dona do pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro em 2000, 0,467. Para a pesquisadora Maria do Carmo Romeiro, no entanto, é o nível de escolaridade do ABC o motivo da diferença entre a região e o restante do país. Nas três cidades estudadas pela pesquisadora, desde 1994, cresce o percentual da população com mais de 18 anos com ensino fundamental completo. “Este ano está em 63,2%”. Em 1991, o índice era de 49,6%. Entre as três variáveis que compõem o IDH municipal, no ABC, a educação teve o maior crescimento na década de 90. Já a renda, foi a que menos cresceu e, em Rio Grande da Serra e Mauá, chegou a cair. Os economistas se valem de uma ferramenta estatística, o índice de Gini, para estabelecer o grau de concentração de uma variável qualquer, no caso, a renda. Ele varia de zero a um e, quanto mais próximo de zero, menor a concentração de renda, e, portanto, a desigualdade. O da região é 0,39. O coeficiente coloca a distribuição de renda no Grande ABC no mesmo patamar de países com Nova Zelândia, Austrália, Filipinas e Hong Kong, e distante do índice brasileiro acima de 0,56. Em 1994, o coeficiente nacional era de 0,58.
Compreendendo o índice
Antes de passar para uma segunda etapa da matéria publicada pelo Diário do Grande ABC, vamos a algumas considerações essenciais à compreensão do que significa o índice de Gini. O deputado federal Delfim Netto, economista, professor emérito da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e ex-ministro da Fazenda, escreveu recentemente sobre o índice de Gini. Fossem a jornalista do Diário e a pesquisadora do Imes mais elucidativas, a manchete do jornal não induziria ao erro cometido. Vejam o que disse Delfim Netto:
Quando a economia está em expansão e crescem o emprego e o salário real (o que ocorreu nos anos 1970), a piora do coeficiente de concentração não indica, necessariamente, uma redução do “bem-estar”. Por outro lado, quando a economia tem um crescimento medíocre, uma alta taxa de desemprego e o salário real médio está caindo (como ocorreu nos últimos oito anos), uma melhoria do índice de concentração de Gini não indica necessariamente um aumento de “bem-estar”. É muito pouco provável, portanto, que a pequena redução do índice de concentração de Gini entre 1995 (0,592) e 2001 (0,572) possa permitir ao governo “gabar-se” de um avanço social — escreveu Delfim Netto.
Sim, o texto é mesmo de Delfim Netto, não deste jornalista, quando ele se refere, inclusive, aos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso. O que o ex-ministro explica é exatamente o que cabe no figurino da economia do Grande ABC precipitadamente elevada à condição australiana, entre outros, pela pesquisadora do Imes. Nada foi mais dilacerante para o tecido social do Grande ABC dos anos analisados por Maria do Carmo Romeiro do que o esfacelamento econômico. A redução da concentração de riqueza não se deu, portanto, pela via da melhoria salarial, mas, exatamente, pelos torpedos da globalização sem medidas compensatórias e gradualísticas.
Em novembro do ano passado publicamos um balanço da sistemática perda industrial combinada com a multiplicação de atividades de comércio e principalmente de serviços no embalo da guerra fiscal. Mostramos que em 2000, 82,21% da força de trabalho formal de São Caetano ganhava até três salários mínimos, contra apenas 32,59% três anos antes, em dezembro de 1997. A isso se dá o nome de precarização salarial, que, paradoxalmente, influi na pretensa melhoria do índice de Gini. Em Santo André, o índice de 27,56% de assalariados de até três mínimos saltou para 59,69% em dezembro de 2000. Já em São Bernardo, 83,54% de sua força de trabalho recebia mais de três salários mínimos em 1997, contra apenas 42,75% de dezembro de 2000.
O outro erro da pesquisa do Imes, além de glamourizar a depauperação de renda, é a limitação geográfica dos estudos, presos ao ABC propriamente dito, quando o que nos move a todos é o Grande ABC. Inclusive as áreas mais complexas da periferia, a população favelada. Por isso, o confronto entre os números de Santo André, São Bernardo e São Caetano com o conjunto do País, que não ignora a exclusão social mais enraizada, não se sustenta.
Voltemos ao texto do Diário do Grande ABC:
Segundo Maria do Carmo, a melhora na distribuição da renda foi mais acentuada depois do Plano Real. Em 1994, a renda média familiar dos 10% mais pobres da população era de R$ 344. Em 2002, foi para R$ 405. Entre o grupo dos 10% mais ricos, a renda caiu de R$ 7.796 para R$ 6.187 no mesmo período. Hoje, os 40% mais pobres detêm 15,84% da renda, enquanto os 10% mais ricos, 29,17%, contra 13,79% e 34,41% há oito anos.
Na contramão
Observe-se que o enunciado avaliza integralmente a degringolada regional, expressa na queda de 34% do que poderíamos chamar de PIB industrial, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. A renda média citada pela reportagem, evidentemente, não tem mecanismo estabelecedor do valor de fato da renda média familiar. Sim, porque os 17,7% de aumento não têm suporte, exceto se o Grande ABC e o Brasil vivessem estrondoso crescimento. A maior participação dos mais pobres na renda dos três municípios, em detrimento dos mais ricos, confirma os efeitos dos anos FHC. Reduzimos nossa disparidade de renda pela contramão do empobrecimento da classe média.
Para completar de vez, de novo o texto do Diário do Grande ABC:
“A melhora na distribuição de renda foi em função do processo de transformação da região, que atingiu fortemente o mercado de trabalho dos profissionais mais qualificados”. Maria do Carmo explica que o setor produtivo teve duas etapas de reestruturação: primeiro, os cortes no chão de fábrica; e, depois, a diminuição das pessoas em postos mais elevados. A redução da inflação, para a pesquisadora, teve papel significativo na melhoria na distribuição de renda. “A eliminação da inflação fez com que famílias de menor renda conseguissem manter um padrão de consumo, ainda que pequeno. Se convivêssemos com a inflação, não há dúvida de que a distribuição de renda estaria pior”.
As primeiras declarações aspeadas da pesquisadora do Imes são o coroamento da entrevista como encenação de um desses quadros anedóticos da TV. Só o enunciado — “a melhora na distribuição de renda” — é espantosamente inadequado. Principalmente porque o complemento da frase — “atingiu fortemente o mercado de trabalho dos profissionais mais qualificados” — contradiz o entusiasmo inicial. Definitivamente: a reorganização da distribuição de renda em Santo André, São Caetano e São Bernardo (sem favelas) extratifica o declínio de renda quase generalizado nos anos FHC.
Já no parágrafo final, que, verdadeiramente, só tumultua o entendimento do emaranhado em forma de matéria, a professora do Imes mostra que está preparadíssima para explicar os efeitos sempre deletérios do processo inflacionário. Que, nesse caso específico, não auxilia em nada na avaliação patética da realidade regional.
Mais equívocos
Completando a opereta, na mesma edição de sábado passado do Diário do Grande ABC, ao comentar a queda de seis dos sete municípios da região no ranking do IDHM, Maria do Carmo Romeiro disse, segundo a reportagem, que o resultado não significa a perda de qualidade de vida. “Também não podemos desconsiderar que estão sendo comparados as mesmas variáveis para dimensões diferentes, ou seja, municípios populosos com outros de população bem menor. Quanto menos populosos, maior o crescimento” — disse a professora. Uma meia-verdade, porque não faltam municípios de tamanhos respectivamente semelhantes aos do Grande ABC que apresentaram desempenho muito melhor no mesmo período pesquisado.
Verdade seja dita que os prefeitos da região têm trabalhado intensamente na área social, mas os números do IDHM estão associados também aos fragilizados orçamentos, vitimas do empobrecimento notório que o índice de Gini, mesmo com as deformações metodológicas, captou nos três municípios da região. “Em 8 anos, ABC fica mais pobre e menos desigual” — eis a manchete que o Diário do Grande ABC está devendo porque se fiou numa entrevista de meias-verdades.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES