Economia

Apartheid marca
consumo regional

ANDRE MARCEL DE LIMA - 12/04/2005

Ninguém do setor público ou das instituições regionais deu a devida atenção ao fenômeno, mas a consolidação de grandes shoppings centers em Santo André e São Bernardo gerou verdadeiro apartheid comercial no Grande ABC. A comparação do cenário de consumo ao regime de segregação racial é forte, mas ajuda a entender a questão. 

Da mesma forma que brancos e negros ocupavam espaços distintos na África do Sul partida pela discriminação, os 2,5 milhões de consumidores do Grande ABC frequentam praças diferenciadas — e a divisão é clara para quem se der ao trabalho de caminhar e observar: o naco seletivo da população de classe média bate ponto em centros planejados de compras como Shopping ABC, ABC Plaza e Metrópole. Já, parcela esmagadora dos deserdados ou pouco aquinhoados recorre ao comércio de rua das áreas centrais — que nos tempos áureos das décadas de 70 e 80 era coqueluche justamente entre os mais abastados.

Não que, a exemplo do regime sul-africano, a delimitação de espaços seja estabelecida por lei. No caso do apartheid regional, a segregação toma forma por razões de ordem prática e econômica. O público bem remunerado e com a conta bancária relativamente recheada transforma shoppings em endereço obrigatório porque encontra roupas de marca e produtos de maior valor agregado que se encaixam ao nível de exigência elevado e ao próprio perfil de consumo mais refinado. Além, obviamente, de priorizar a comodidade de estacionar e fazer compras com segurança. 

Já os populares se restringem ao comércio de rua das áreas centrais para satisfazer necessidades de consumo. Afinal, é no comércio despojado à margem dos shoppings que se encontram produtos ao alcance de quem recebe salários mais baixos. A qualidade pode não ser lá grande coisa, mas quem se importa? A restrição do poder aquisitivo é diretamente proporcional ao grau de exigência. É difícil estacionar? E daí? Para quem não tem carro e depende de ônibus ou trem não faz diferença. 

Claro que esses mundos distintos não são blindados. Os classe média eventualmente visitam o comércio de rua em busca de promoções e dos de conta bancária menos robusta circunstancialmente consomem produtos mais caros em shoppings, atrás de momento fugaz de glamour. Mas esses comportamentos são exceção que confirmam a regra de segregação dos espaços comerciais no Grande ABC. 

A constatação dessa dicotomia é exercício sociológico que contribui para cristalizar o conhecimento sobre as profundas transformações socioeconômicas que alteraram a região na última década. Já ficou claro que a chegada de sistemistas internacionais de autopeças sob a égide da globalização causou ruptura praticamente incontornável no campo produtivo. 

Do lado mais forte ficaram fornecedores transnacionais ligados como unha e carne às montadoras e, do outro, sobraram heróicas metalúrgicas familiares que, para sobreviver, dedicam-se à produção de componentes de menor valor agregado. Vivem de nichos ou de produtos menores que as sistemistas não se interessam em produzir. 

É com base na constatação da complexa situação dos pequenos fornecedores à indústria mais poderosa e competitiva do planeta que os poderes públicos se mobilizaram via Agência de Desenvolvimento Econômico para prestar socorro por meio de alternativas como APLs (Arranjos Produtivos Locais) e consórcios de exportação. Mas a rachadura no universo do consumo nunca foi completamente clarificada e a falta de compreensão sobre o tema tem impedido a adoção de ações pragmáticas à altura dos desafios.

O desembarque de grandes shoppings centers nutridos por poderosos fundos de pensão fez muito mais do que dificultar a vida do comércio de rua no Grande ABC. Com estacionamentos amplos, segurança e mix bem equilibrados, os centros planejados de compras monopolizaram os consumidores de maior poder aquisitivo num contexto econômico marcado pelo afunilamento social. 

Ao mesmo tempo em que Shopping ABC, ABC Plaza e Metrópole aterrissavam em Santo André e São Bernardo, a região sofria longo processo de perdas cumulativas, que atingiram 39% de queda do Valor Adicionado industrial nos oito anos do governo FHC. 

Ao mesmo tempo também em que mega-centros de compras adicionavam lenha na fogueira da competição, a região empobrecia ao sabor do esfacelamento da cadeia automotiva e da pulverização das montadoras pelo País. Deu no que deu. Os shopping mais apetrechados ficaram com o filé-mignon e ao comércio de rua dos centros das cidades — historicamente desarticulado — não restou alternativa a não ser se segurar no segmento popular excluído dos templos de consumo.

O abismo entre o comércio central de rua e os shoppings não é característica exclusiva do Grande ABC. Onde quer que aportem, esses modelos comerciais concebidos nos Estados Unidos e exportados para o mundo inteiro tendem a concentrar riqueza na medida em que atraem lojas mais sofisticadas e consumidores mais exigentes. 

Mas no berço nacional da indústria automobilística e petroquímica o fosso é insuperavelmente mais profundo porque nenhuma região brasileira foi mais prejudicada pela globalização sem salvaguardas. Os mais de 100 mil empregos industriais ceifados durante os anos 90 foram apenas parcialmente recuperados com o saldo de 17 mil postos industriais no ano passado em que as montadoras bateram recorde histórico com produção de 2,2 milhões de unidades. E o incremento de 5,67% no Valor Adicionado em 2003 é apenas pequena fração do que ainda precisa ser recuperado.

Pobre calçadão 

O Calçadão da Coronel Oliveira Lima figurou como o endereço comercial mais nobre do Grande ABC até meados da década de 80. A chegada dos shoppings ABC e ABC Plaza, somada à espiral de perdas econômicas, transformou radicalmente o panorama. Santo André é o município paulista que mais perdeu ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) nos últimos 30 anos — dois-terços do principal tributo estadual atrelado principalmente à performance industrial evaporaram no período. 

E a Coronel Oliveira Lima reflete fielmente essa realidade. O cenário do eixo comercial da cidade de 670 mil habitantes choca os nostálgicos que se acostumaram a enxergar o calçadão como via expressa de bom gosto, alegria e sofisticação, mas se encaixa com perfeição à realidade marcada pela hegemonia dos shoppings, de um lado, e pelo crescimento do desemprego e achatamento da renda, de outro. Afinal, o ajuste automático da oferta à demanda é uma das leis irrevogáveis da economia de mercado. 

Pouco adiantou a Prefeitura, então sob comando de Celso Daniel, construir estrutura para cobrir parte da Oliveira Lima na tentativa de potencializar a atratividade na guerra com os shoppings. A intervenção pública apoiada por entidades como a Associação Comercial de Santo André não reverteu a trajetória de transformação em verdadeiro campo minado. 

Em vários trechos, o calçadão está mais para feira livre e camelódromo do que para comércio minimamente sustentável. Opções mais requintadas como O Boticário, Livraria Saraiva e Calçados Mundial resistem bravamente, mas a maioria esmagadora é formada por estabelecimentos repletos de produtos a preços que não ultrapassam um dígito. 

A presença de mega-lojas de redes especializadas em vender barato é indicador insofismável da especialização na base alargada da pirâmide social. A apenas 30 metros da entrada do Shopping Santo André, Lojão do Brás e Torra Torra se acotovelam na disputa por consumidores do andar de baixo do edifício socioeconômico. Nas duas lojas, como em outras espalhadas por toda extensão do calçadão, as mercadorias se amontoam em bancadas ao alcance das mãos, não em vitrines comuns nos shoppings. “Assim, os consumidores podem manipular as ofertas à vontade, sem recorrer a atendentes” — explica o gerente Márcio André Bessa Lima. 

E que ofertas. A Lojão do Brás oferece calça jeans adulto a R$ 22,00; camiseta por R$ 5,50; conjuntinho de moletom infantil por R$ 5,00; camisa esportiva por R$ 7,50; camisa social de manga longa por R$ 17,00 e travesseiro por R$ 4,00. Somente a título de comparação: uma calça jeans de grife no Shopping ABC pode sair por mais de R$ 300,00.

A Torra Torra — nome emblemático de giro rápido de mercadorias — não fica atrás. Oferece calça jeans por R$ 21,99; jaqueta feminina de microfibra por R$ 16,99; camisa social de manga curta por R$ 9,99; bermuda a R$ 4,99; além de cueca a R$ 1,99 e calcinha a R$ 1,00. 

Assim como o gerente da Lojão do Brás, a encarregada Silvana Dalla Bernardini, não sabe quantificar o exército diário de consumidores. Mas fornece indicação de que o foco voltado aos pobres de Santo André é promissor. “Há cinco meses a loja teve a área de vendas praticamente duplicada com obras sobre antigo estacionamento” — comenta, referindo-se ao espaço de quase dois mil metros quadrados. 

Apesar de vender produtos a preços baratíssimos, Lojão do Brás e Torra Torra podem ser considerados o que há de melhor no comércio popular da Oliveira Lima. São ramificações de redes que mantêm padronização visual e operacional nas várias praças em que atuam. O Lojão do Brás conta com oito unidades: duas no bairro ferroviário paulistano de origem que empresta o nome à rede, duas em Santo Amaro, uma na Lapa, uma no centro de São Paulo, uma em Osasco, além de outra em São Bernardo. 

A Torra Torra tem 32 unidades espalhadas pelo Estado, das quais uma em São Bernardo e outra em Mauá, além de Santo André e em cidades da Grande São Paulo e do Interior. Na Torra Torra de Santo André, por exemplo, há até playground para entreter crianças enquanto os pais fazem compras. Mas a mesma estrutura não é observada na maioria avassaladora dos concorrentes que conciliam o pior dos mundos: mercadorias singelas em instalações caóticas em termos de layout e exposição. 

A estrutura física priorizada pelas redes conta pontos porque a concorrência na Oliveira Lima é predatória. A loja Baratotal anuncia: quase tudo por R$ 1,00. Mas ressalva: “não aceitamos cheques” (será que alguém preencheria cheque de R$ 1,00?). A Sempre Novidade recorre a apelo parecido em letras garrafais: tudo a partir de R$ 1,00. Já a Renascer não chega a ser tão agressiva, mas delimita terreno com o slogan Vende Muito Porque Vende Mais Barato, referindo-se à diversidade formada por artigos de papelaria, presentes, brinquedos e utilidades domésticas. Em frente à Renascer os consumidores avistam a Free S.A., loja especializada em calçados que oferece como iscas tênis a R$ 19,99 e sandálias a R$ 14,99 — preço de um almoço fast-food na praça de alimentação de um shopping. 

Boxes em alta

Num patamar inferior ao das lojas que oferecem de tudo por R$ 1,00 ou pouco mais estão os três centros comerciais de boxes instalados no Calçadão da Oliveira Lima: Plaza Box Centro Comercial, Box Direto da Fábrica e Oliveira Lima Center Box. Visualmente, esses centros comerciais não diferem dos chamados camelódromos definidos pelas prefeituras para centralizar ambulantes e informais. A diferença é que os camelódromos normalmente são alocados à distância do comércio formalizado e em espaços públicos, casos de vãos de viadutos, enquanto os centros de boxes se nutrem da desvalorização imobiliária de áreas privadas. 

Os boxes têm em média seis metros quadrados e oferecem basicamente roupas, cintos, bolsas e bijuterias. Os preços dos produtos são manuscritos em pedaços de cartolina, o espaço de circulação é estreito e a sensação é de sufocamento, já que as mercadorias são penduradas em todos os cantos possíveis para compensar a escassez dimensional dos espaços. Para os ocupantes, o maior atrativo é a praticidade da negociação do ponto comercial. 

Não é preciso pagar luvas nem se comprometer com contratos de locação, já que o aluguel de cerca de R$ 500,00 é renovado mensalmente. “Se não der certo, é só sair sem maiores prejuízos com multas” — comenta um ambulante que trocou a rua pelo box, mas prefere não se identificar. 

Para alguns comerciantes que igualmente preferem não aparecer com receio de represálias, essa precária modalidade comercial assume ares de dor de cabeça. Eles argumentam que os núcleos de boxes rebaixam ainda mais o nível da Oliveira Lima e espantam de vez a clientela de maior poder aquisitivo.  

Ficar ou fugir 

Em meio a ramificações de redes populares como Lojão do Brás e Torra Torra, às lojas que apelam para a unidade monetária nacional e ao notável fenômeno dos centros de boxes, também operam estabelecimentos que não fazem da baixa renda alvo prioritário. Mas entre esses heróis da resistência se nota forte disposição de se adequar ao perfil socioeconômico dos consumidores. A unidade da rede A Esportiva funciona como ponta de estoque para desova de produtos encalhados nas lojas de shopping. 

A loja de calçados Galuzzi utiliza estratégia promocional agressiva ao anunciar tudo em quatro vezes sem juros por meio de grandes placas amarelas afixadas na fachada. E até a tradicional Camisaria Riviera entrou na guerra de preços ao ressaltar super-promoção com descontos de até 50%.

Mas nem todas as marcas valiosas estão dispostas a permanecer como estranhos num ninho predominantemente popular que resvala para o popularesco. A Chocolates Kopenhagen trocou mais de 30 anos na Oliveira Lima por ponto mais adequado no Bairro Jardim, caminho semelhante ao tomado pela Cultura Inglesa. A grife de ensino de línguas se transferiu de um prédio na Praça do Carmo, colada à Oliveira Lima, para sede especialmente projetada no Bairro Jardim. 

O prédio de quatro andares na Praça do Carmo ostenta faixa de aluga-se dois anos após a desocupação. Caso do imóvel gigantesco que acolheu a Mesbla e cujas portas são utilizadas como murais para ofertas de emprego e crédito pessoal.

A força magnética dos shoppings ABC e ABC Plaza sobre os consumidores de melhor poder aquisitivo pode ser notada não apenas na Oliveira Lima, Praça do Carmo e imediações, mas também no Shopping Santo André, fisicamente integrado ao calçadão comercial. As lojas do shoppinho seguem o padrão dos exemplares de rua e as poucas opções de grife utilizam o centro comercial criado em 1990 para desovar sobras de unidades em shoppings mais sofisticados. São os casos das unidades de ponta de estoque da Viv’Leroa, no piso térreo, e da Fiescot, no pavimento superior. 

A Viv’Leroa anunciava a promoção da promoção: camisa de R$ 59,00 por 42,00 e de R$ 42,00 por 36,00. Quem se habilita, se no Lojão do Brás ou no Torra Torra, a apenas alguns passos dali, é possível encontrar oferta ainda mais tentadora? 

A qualidade do mix é problema menor para o Shopping Santo André, que teve o glamour do passado obscurecido com a chegada de concorrentes bem mais robustos nas avenidas Industrial e Pereira Barreto. A ociosidade permanece nas alturas a despeito da força-tarefa entre a administração e a associação de lojistas para atrair novas opções. No pavimento superior integrado à Oliveira Lima a maioria dos espaços tem inquilinos, mas no andar inferior com entrada pelas ruas Álvares de Azevedo e Elisa Fláquer a vacância ultrapassa 50%. 

A diferença do Shopping Santo André em relação ao Calçadão da Oliveira Lima é que, como área privada, está blindado a surpresas que contribuem para distanciar os consumidores mais exigentes. Caminhar pelo calçadão pode ser uma aventura à Indiana Jones. É preciso ter jogo de cintura para se desvencilhar de vendedores de crédito pessoal. Também é preciso desviar dos homens-cartazes que dão visibilidade a negócios de compra e venda de ouro. E sangue frio ao topar com a figura de um pedinte atirado ao chão com uma das pernas literalmente em decomposição.  

Marechal fragilizada

A realidade da rua Marechal Deodoro é outra ducha de água fria sobre quem imagina que o universo de consumo do Grande ABC se resume aos ambientes seletivos das passarelas vitrificadas dos shoppings. Basta caminhar pela principal via comercial de São Bernardo para perceber que as ofertas não se resumem a Casas Bahia, Ponto Frio, Lojas Cem, O Boticário, Lojas Americanas e outras mega-redes de grande visibilidade que determinam investimentos em pontos de alta concentração de consumidores. 

O mix da Marechal Deodoro é forrado de lojas mambembes porque ficou na poeira do Shopping Metrópole — criado há 25 anos e praticamente duplicado em 1997 — assim como o comércio central de Santo André foi jogado ao acostamento pelo Shopping ABC e o ABC Plaza. 

Lojas de bancada que se tornaram marca registrada da Oliveira Lima atingiram profusão fantástica também na Marechal Deodoro. Além de Lojão do Brás e Torra Torra, há opções igualmente hiper-acessíveis como Lojão do ABC, Pelicano, Far-Way, Kallan e Shoebiz, as duas últimas com calçados a R$ 9,99. Estabelecimentos que apelam para a venda de produtos por R$ 1,00 ou um pouco mais também se tornaram febre com pelo menos cinco exemplares da categoria. 

E até os precários centros de boxes surgidos na esteira da desvalorização imobiliária estão representados na Marechal, que sedia o Multi-Box, auto-intitulado shopping de ofertas com mais de 50 boxes em espaço conjunto de no máximo 300 metros quadrados. 

Tudo emoldurado por um quadro social que inspira preocupação. As calçadas estão cheias de pedintes e adolescentes pobres e maltratadas com crianças de colo circulam pelas lanchonetes pedindo trocados. Para coroar a visita, uma cena inusitada que os lojistas das fortalezas de consumo jamais testemunharão: o ladrão aproveita o momento de distração do vendedor de uma modesta loja de confecções e sai em disparada com a mercadoria debaixo do braço. 

O comerciante se desespera, mas o segurança da loja é rápido e retorna orgulhoso com a mercadoria. O meliante havia soltado o produto no meio da fuga para salvar a própria pele. 

Por mais flagrante que seja o apartheid do consumo regional, há quem opte por visão edulcorada. À frente da Esportes Cassettari, uma das lojas mais antigas da região, criada em 1959, o comerciante Ciro Cassettari não titubeia em empunhar a bandeira da Marechal Deodoro como morada de comércio efervescente que não deixa nada a desejar aos melhores shoppings da região. Utiliza a chegada do Marechal Plaza Shopping como argumento de suposta atratividade da via comercial para negócios mais sofisticados. Fica sem graça quando confrontado com informações sobre a alta ociosidade do empreendimento inaugurado há mais de três meses. 

O mais novo centro de compras do Grande ABC conta com apenas meio dúzia de lojas em funcionamento no pavimento superior — um terço do total — das quais apenas uma na praça de alimentação. E no piso inferior, praticamente metade dos espaços continua vago. 

Do alto da suposta sapiência de quem acumulou décadas de experiência no comércio, Ciro Cassettari comete o disparate de afirmar que o ponto comercial da Marechal Deodoro é mais valorizado que nos melhores shoppings, sem notar que a vizinhança próxima desmente a afirmação: de um lado da Esportes Cassettari está a Comercial Nadine, que vende produtos a partir de R$ 1,00. Do outro está a Deck 10, apresentada como loja de oportunidade com malhas a R$ 3,99.

A explicação dissimulada provavelmente explique por que a loja ficou parada no tempo e restrita a um endereço enquanto a concorrente A Esportiva, cujos proprietários nunca esconderam as dificuldades do comércio de rua — saltou da plataforma familiar em direção a vários pontos valorizados em shoppings, incluindo Metrópole e Shopping ABC. 

Situação diferente do Marechal Plaza é a do Shopping do Coração, veterano de 1978 que resiste firme ao poder magnético dos grandes centros planejados. O pequeno shopping não registra ociosidade porque as mais de 60 lojas preenchem a totalidade da chamada ABL (Área Bruta Locável). Se não alcança a sofisticação do Metrópole, instalado a pouco mais de mil metros, e do Shopping ABC, o mix também não sucumbe à apelação do comércio de rua. E a maior prova é que não há sequer um estabelecimento identificado com produtos de R$ 1,00. Lojas de roupas e produtos relacionados ao surfe formam o ponto forte do shoppinho, cujo calcanhar-de-aquiles é a falta de opções em calçados. 

A receita de relativo sucesso do Shopping do Coração é formada pela determinação de buscar nivelamento por cima, por mais que as condições se mostrem adversas. Nos últimos anos as instalações foram completamente remodeladas. Os corredores receberam piso de porcelanato, o teto ganhou forro sofisticado com rebaixamento em gesso e, mais recentemente, a praça de alimentação incorporou mais mesas e cadeiras e a fachada e os banheiros passaram por reformulação. As instalações do Marechal Plaza são mais novas e atrativas, mas a diferença pode ser estabelecida pela tradição. 

Abordagem estratégica 

Não é por acaso que a abordagem recai sobre Santo André e São Bernardo. Apesar de acusarem perdas gigantescas nos últimos anos, acolhem cerca de 60% da população e percentual semelhante do PIB (Produto Interno Bruto) regional. Além disso, ocupam posições de destaque no ranking estadual de Valor Adicionado, indicador de transformação industrial que têm peso de 76% na distribuição estadual de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e no Índice de Desenvolvimento Econômico Equilibrado (IDEE) do IEME — Instituto de Estudos Metropolitanos. 

De acordo com dados da Secretaria Estadual da Fazenda relativos a 2003, São Bernardo ocupa a terceira e Santo André a nona posição no ranking do Valor Adicionado. Além disso, as cidades administradas por William Dib e João Avamileno estão respectivamente na sexta e décima posições do revolucionário Índice de Desenvolvimento Econômico obtido através do cruzamento ponderado de variáveis como inclusão digital, recolhimento de ISS (Imposto sobre Serviços), Valor Adicionado, IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores) e Índice de Potencial de Consumo, aferido pela Target Marketing & Pesquisas. 

A constatação é automática à luz da lógica de amostragem: se o comércio central de rua das cidades relativamente mais ricas e representativas está bem aquém dos tempos anteriores ao advento dos shoppings e da globalização à moda FHC, é sinal que as demais se encontram, no mínimo, em patamar semelhante. Na pequenina e invejada São Caetano, número um do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU (Organização das Nações Unidas) e do IDEE do IEME, o apartheid do consumo expulsa a população abastada das fronteiras municipais — e em direção aos shoppings de Santo André e da reluzente Capital paulista. 

Tal realidade foi captada em pesquisas solicitadas pela administração do antigo Shopping São Caetano, interessada em saber as razões da frustração de expectativas. O Shopping São Caetano foi convertido em centro de prestadoras de serviços atraídas principalmente pelo ISS (Imposto sobre Serviços) rebaixado antes da resolução federal que proibiu a guerra fiscal.  

Bolas cantadas

Os dois ingredientes básicos do apartheid comercial — empobrecimento da população e recrudescimento da competitividade com a chegada de shoppings e redes varejistas — foram objetos de prospecções históricas de LivreMercado. A reportagem de capa da edição de dezembro de 2002 trazia o título Bendita Carteira! em alusão à constatação de que apenas 5,57% dos trabalhadores com carteira assinada do Grande ABC ganhavam mais que R$ 4 mil, ou 20 salários mínimos daquela época. Já o ensaio Quem Salva os Pequenos Negócios? Alçado à capa da edição de fevereiro de 1998, alertava exatamente sobre os riscos que grandes shoppings e cadeias varejistas recém-chegadas representavam para os pequenos comerciantes.

A capa sobre o achatamento da renda com carteira assinada mostrava que de janeiro de 1995 a dezembro de 2001, isto é, durante sete anos do governo Fernando Henrique Cardoso, o universo de privilegiados que ganhava mais que 20 salários mínimos encolheu assustadoramente no Grande ABC: eram 60.977 da massa de trabalhadores, e passaram para 29.194. O que dava para encher duas vezes o Pacaembu foi reduzido a dois estádios Bruno Daniel. 

A reportagem expôs que no outro extremo do trabalho formal estavam os trabalhadores que recebiam até três salários mínimos, ou R$ 600 naquela ocasião. Esse contingente espremido na base da pirâmide social representava 18,13% da força de trabalho legalizada em 1994, ou 93.305 postos de trabalho no ano de lançamento do plano Real, e saltou para 36,01% em janeiro de 2001, ou 188.044 trabalhadores. 

Os números apontaram a ocorrência de indesejado efeito-sanfona: caiu pela metade o pelotão dos bem remunerados na direção oposta da duplicação do exército dos pouco aquinhoados. Na indústria, que tradicionalmente paga melhor que o terciário, sumiram 83.209 postos de trabalho entre janeiro de 1995 e dezembro de 2001.

Apesar da relativa recuperação da economia no ano passado, é improvável que o Grande ABC volte a viver tempos luminosos de profusão de empregos industriais bem remunerados. Níveis hierárquicos ceifados no ajuste pós-globalização fazem parte de remodelamento estrutural sem volta, assim como as indústrias que tomaram o rumo do Interior e de outros Estados para fugir do Custo ABC com empurrão da guerra fiscal. 

Além disso, está literalmente para nascer o terciário de valor agregado que substituiria a indústria de transformação, conforme sonho do então prefeito Celso Daniel. 

Dados recentes compilados pelo boletim Observatório Econômico dão conta da realidade nada entusiasmante: dos 48.890 empregos criados no Grande ABC no 2004 em que as montadoras instaladas no País bateram recorde histórico de produção, 90% oferecem no máximo três salários mínimos, ou R$ 780,00. O Observatório informa ainda que apenas 4% dos novos postos de trabalho foram ocupados por trabalhadores com rendimento igual ou superior a sete salários mínimos, ou R$ 1.820,00.

Já a capa de 1998 intitulada Quem Salva os Pequenos Negócios? assume ares de profecia mais de sete anos depois de publicada. 

A abertura começava assim: “O império do salve se quem puder domina os pequenos negócios do Grande ABC sem que autoridades públicas e lideranças da livre-iniciativa se movam de forma minimamente interessada. Cada novo grande empreendimento comercial ou da área de prestação de serviços que aporta na região, muitos dos quais em reformadas instalações de indústrias que debandaram, é recepcionado com entusiasmo e ufanismo só reservado aos heróis de guerra (...). E os pequenos e tradicionais comerciantes de rua e prestadores de serviços, estimados em cerca de 40 mil pontos de negócios? A cada nova inauguração de hipermercado, supermercado, grandes redes de autopeças, de móveis e material para construção, o pequeno empreendedor amarga retração no caixa e engrossa a lista de mortalidade empresarial”.



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